E se você não perguntar pelo ponto final ou inicial de tudo e entregar-se
ao ponto do agora?
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
23 Setembro 2018 | 02h00
De todas as expressões que eu conheço, a mais difícil é o “sentido da vida”. Dirigem-me muito essa pergunta em palestras e redes sociais. Tenho sempre dificuldade em dizer de forma direta que eu acho a vida extraordinária porque destituída de qualquer sentido. Todos estranham.
Claro, sou muito tranquilo com as construções de sentido que cada um possa desenvolver. “O sentido da vida é amar intensamente.” “O sentido da vida é visitar muitos países e experimentar comidas.” “O sentido da vida é ser feliz.” Todas são propostas válidas, desde que saibamos, invenções nossas, sem uma régua objetiva que valide.
Fui muito marcado pelo existencialismo como corrente filosófica. A falta de sentido reforça nossa liberdade de ser e de projetar algum sentido. Apenas por má-fé achamos que o direcionamento deve vir de fora, ou ser dado por algo exterior a mim.
Alguns se inquietam com o caráter aleatório do sentido. Olham para o mundo externo e perguntam: isso é tudo? Termina aqui? Tudo o que eu vejo é o que existe? Eu penso que o mundo já é muito, excessivo, além da minha capacidade de absorver. Nunca lerei tudo, nunca conhecerei todas as pessoas, nunca irei a todos os lugares. Todos vivemos um mundo simples, único e isolado, distinto da experiência do outro ao meu lado. Quem pergunta se o que eu vejo é tudo está associando sentido ao campo material/imaterial ou, mais longe, ao físico e metafísico. Tal questionador quer algo além, mais abstrato, maior do que abarca seu olhar. Quando eu respondo que já há bastante para preencher os olhos e o tempo, estou dizendo que perceber e viver coisas é o sentido em si, e que ocupar o tempo é um valor. Ambos estamos certos, apenas precisamos colocar nosso eu como o arquiteto das duas ideias. Para mim, quem diz que não existe nenhum sentido ou quem afirma que existe uma causa maior, acima de todos, estão ambos estão no mesmo patamar: criam uma lógica que reforça seu próprio universo.
Eu cantava uma música do padre Zezinho nos ofertórios das missas: “Minha vida tem sentido, cada vez que eu venho aqui e Te faço o meu pedido, de não me esquecer de Ti”. Religião é um extraordinário preenchedor de sentido, pois excede o tempo de uma vida e invade a eternidade. Da mesma forma, família é bastante popular desde o século 19, quando inventamos lar como espaço de felicidade. “Minha família é tudo para mim” é frase boa, correta, impressiona e facilita aceitação social.
Quase sempre existe a confusão entre sentido e preenchimento de tempo. Manter-se ocupado parece ser um sentido muito difundido. Minha mãe lidava conosco, com a casa e empregadas o dia todo e, à noite, diante da televisão, fazia tricô. Mãos ocupadas e com coisas familiares combinavam um duplo sentido para o mundo doméstico.
Afinal, sentido é o que eu coloco como meta suprema ou como eu preencho o tempo para atingi-la? Uma parte expressiva da reflexão filosófica e dos livros de autoajuda mira na mesma meta: afinal, existe sentido? Sartre escrevia de forma relativamente fácil e era um intelectual popular. Se não tivesse morrido em 1980, estaria dando palestras em empresas sobre “projeto de vida”? Acho pouco provável, primeiro porque era pessimista, feio atrás dos seus óculos grossos, pouco sorridente e não diria para os funcionários algo que os motivasse a atingir metas. Dentro de um momento de Guerra Fria e sendo ele identificado com a esquerda, ainda diria que o sentido seria sair das amarras do capitalismo e viver seu próprio projeto.
Sim, os sentidos são aleatórios, pessoais e devem ser criados, inventados, no conteúdo positivo dos termos. Mas façamos um exercício: e se o sentido que você elaborou for, digamos, pouco consistente? E se você estiver reduzido às demandas imediatas e insuperáveis da chamada “pirâmide de Maslow”? Respirar, ingerir alimentos, excretar e dormir. Quatro verbos que não podem ser indefinidamente adiados ou ignorados por muito tempo. Acordar, comer, urinar, dormir de novo, beber, dormir, defecar, dormir de novo: insuportável pensar que seja só isso, não é? O sexo é vital, o instinto de reprodução é programado em quase todas as espécies, mas, sabemos bem, pode ser bastante adiado ou ressignificado. Os animais vivem dessa forma e jamais são depressivos, entediados, entusiasmados, ciclotímicos ou algo assim. Eles apenas agem dentro de códigos prévios e nunca perguntam pelo sentido ou, seguindo Heidegger, existem, mas não são.
“Torna-te quem tu és” é uma linda ideia de Nietzsche. Apesar de todo esforço demolidor do alemão, tornar-se aquilo que eu sou parece implicar uma verdade densa e interna, algo que eu possa descobrir com esforço racional e biográfico. “E se eu for nada, absolutamente nada, sem essência, sem sentido ou propósito?” A frase me conduziria à liberdade ou ao suicídio?
Lanço um desafio dominical. E se em vez de você procurar na Filosofia ou no Céu o sentido último de tudo, você, hoje, apenas tomar um bom café? E se a água do chuveiro fluir sem perguntas sobre seu corpo e você usar aquela roupa de baixo e de cima que estava guardando para uma ocasião especial? E se olhar para as pessoas próximas com intensidade, interesse e zelo? Havendo alguém querido por perto, e se você o abraçar por mais tempo? Se, seguindo certa névoa budista, você não perguntar pelo ponto final ou inicial de tudo, todavia entregar-se ao ponto do agora, o único sobre o qual você tem certo controle? E se a falta de qualquer origem e de qualquer destino supremo for, em si, um bom sentido libertador que faz o aqui e agora fascinantes? Eis uma experiência para hoje.
Se não der certo, há milhares de livros e pessoas que falarão das estratégias de futuro e da busca de sentido para os próximos 30 anos e para o além eterno. Seguindo meu conselho ou o deles, como sempre, a escolha será sua.
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