Chamados de 'criptorom', esquemas envolvem criptomoedas e manipulação emocional
Com o fim do seu casamento de 20 anos, a administradora de empresas Aline Fernandes dos Santos, 41, criou um perfil em aplicativos de namoro, o caminho quase natural de um solteiro em São Paulo.
Teve alguns encontros pouco animadores até dar match com Jack, um britânico atraente de 33 anos a um quilômetro de distância dela. "Sou de Londres, homem de negócios e investidor" dizia sua biografia no aplicativo.
Eles começaram a trocar mensagens em 11 de março. Ela jamais imaginou que, um mês depois, o flerte resultaria em um prejuízo de cerca de R$ 600 mil. "É o dinheiro de toda minha vida, mais as dívidas que acabei fazendo", diz.
O perfil de Jack (que provavelmente é brasileiro e não tem esse nome) estava ativo no aplicativo até o fim de abril. Para ele, a plataforma era uma isca para conquistar a confiança das pessoas.
Aline recebia mensagens como "chegou bem em casa?", "tenha um bom dia de trabalho" e "você é a primeira pessoa que converso no Brasil".
"É uma amarração, vai envolvendo você. Aí tem um momento que ele fala do trabalho dele, que ele é muito apaixonado e dedicado", conta a vítima.
Jack dizia trabalhar com investimento em criptomoedas. Contava ter uma empresa e que estava no Brasil para cuidar de um tio doente, com idade avançada e em processo de demência –o que ele usa como justificativa para não marcar encontros. Aline até tentou conhecê-lo por vídeo, mas o tio também foi usado como desculpa.
No primeiro dia, a conversa em inglês já migrou para o WhatsApp. O código de área dele era 44, do Reino Unido.
No segundo dia, ele deu um jeito de introduzir o assunto principal. Disse "o mercado hoje está agitado", para falar sobre criptomoedas. Enviou uma foto com sua suposta mesa de trabalho, que tem um computador com a tela cheia de gráficos de ações. Foi o gancho para a pergunta que mudou tudo na vida de Aline: "Você entende de investimento?".
Ela, que até então só investia em ativos de baixo risco, como CDB (Cerficado de Depósito Bancário), respondeu que não, mas se mostrou aberta a aprender. "Eu tinha curiosidade, mas não sabia operar ações, quanto mais criptomoedas. Ele explicou como funcionava e disse que me ensinaria se eu quisesse. Aí as explicações vieram corretas, eu chequei, e decidi fazer um aporte." Não contou para ninguém.
Essas explicações eram conceitos sobre criptomoedas e sobre o funcionamento do mercado –algumas copiadas na íntegra de sites de corretoras. Dois especialistas em criptoativos ouvidos pela Folha analisaram essas mensagens e afirmaram que as informações eram coerentes.
Embora sem trabalho há alguns meses, Aline tinha segurança financeira. O dinheiro que perdeu veio da venda de metade do apartamento que dividia com o ex-marido e de outros bens.
A primeira aplicação foi de US$ 1.000 (R$ 4.700 na atual cotação) em uma corretora internacional certificada, a Crypto.com, cujo garoto-propaganda é o ator Matt Damon.
"É aí que está o pulo do gato, ele te ensina a investir numa corretora idônea, que existe. Ele não pede seus dados, sua senha, ele só vai orientando." Ela enviava prints da tela do celular e ele os devolvia sinalizando onde ela deveria clicar.
Uma hipótese entre analistas é que esse site tenha sido usado pelo golpista apenas para converter os dólares em criptomoeda.
O dinheiro rendeu, Aline se animou e Jack então sugeriu que ela transferisse tudo para uma corretora que "valia mais a pena". Noutra frente da relação virtual, ele começou a dizer que queria se estabelecer no Brasil e que estava interessado em um relacionamento sério.
Aline passou a quantia para uma corretora chamada BTX Exchange. Dessa vez, não checou a procedência na internet. Segundo o site Scamosafe, que detecta a veracidade de alguns sites de investimento, trata-se de uma corretora fraudulenta, que oferece "investimento com moedas fictícias" e não tem nenhuma empresa associada a ela, de acordo com um relatório.
A Folha entrou em contato com a BTX Exchange por email, mas não obteve resposta. Não há número de telefone e nem localização da empresa no site. Na internet, há mais três relatos de pessoas que também não conseguiram resgatar a aplicação nessa plataforma.
"Uma hipótese é que o fraudador tenha criado uma exchange [que é a BTX], com regras de negócio próprias, usando vários recursos de código aberto disponíveis no mercado e que isso seja uma quadrilha internacional. As vítimas conseguem entrar com recursos, mas não conseguem mais tirar dinheiro de lá", diz Courtnay Guimarães, cientista chefe de blockchain na empresa de tecnologia Avanade, que trabalha há oito anos no mercado de criptomoedas e há mais de 30 anos com criptografia.
Quando o investimento chegou a cerca de US$ 47 mil (dos cerca de US$ 89 mil aplicados, cerca de R$ 425 mil), Aline quis resgatá-lo.
"Ele some por dois dias e depois reaparece no celular, feliz, bem feliz, muito empolgado. Diz que levou o tio embora para a Inglaterra, que os parentes de lá vão cuidar dele e que gostaria de me conhecer", conta. "Logo depois, manda mensagem dizendo que caiu na triagem [de Covid] do aeroporto e que vai ficar de quarentena."
Nesse momento, Aline começou a ficar nervosa porque Jack ficava indisponível e ela não conseguia fazer o resgate sozinha pelo aplicativo. Ele mostrou-se triste por não poder ajudá-la –mais uma manipulação emocional. Ao entrar em contato com o atendimento ao cliente, a corretora disse que tinha taxas e impostos a serem pagos.
"Cada vez que eu conseguia pagar uma taxa nova, e eram muito altas, tipo R$ 30 mil, R$ 45 mil, chegava outra. Aí tinha a lista de espera, se eu quisesse passar na frente, tinha que pagar mais uma taxa." Nada disso havia sido dito por Jack.
Ao todo, foram exigidos 37.568 USDT (código para tether, uma moeda digital atrelada ao dólar) em taxas e impostos, quase R$ 180 mil. Para conseguir reaver seu dinheiro, Aline começou a pedir novos cartões de crédito no mercado. Para pagar as faturas, começou a fazer novas dívidas.
Enquanto isso, a relação começou a ruir. "Ele provocou uma discussão sem sentido, dizendo que estava naquela situação de suposta fragilidade, de quarentena, que eu não confiava nele, e me bloqueou."
Veja imagens das mulheres vítimas do golpista do Tinder
A ficha de Aline caiu. Uma amiga sua que entende do setor leu todo o histórico de mensagens e concluiu que era atípico ela não conseguir descongelar seu próprio dinheiro. Quando as duas entram em contato com o setor de atendimento ao cliente, Jack imediatamente desbloqueou Aline do WhatsApp.
Jack passou a ser evasivo nas respostas. Restaram, ao fim, três caminhos para Aline: fazer mais um depósito, dessa vez equivalente a R$ 10 mil, e sacar o dinheiro; fazer o depósito e não conseguir sacar o dinheiro; procurar ajuda na polícia.
Aline foi acolhida na delegacia de crimes cibernéticos, próxima à estação da Luz, no centro de São Paulo. Registrou boletim de ocorrência, mas o escrivão disse tratar-se de um golpe e levantou a hipótese de aquele dinheiro já estar a léguas de distância, sendo quase impossível rastreá-lo. Sem muita esperança, ela ainda poderia abrir um inquérito para que o caso fosse investigado, explicou.
Para o delegado Thiago Cirino Chinellato, da divisão de Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de São Paulo, golpes aplicados em apps de paquera têm alguns padrões e configuram estelionato: a pessoa normalmente diz não morar no Brasil, rouba fotos de outros na internet (o que é crime de falsidade) e em pouco tempo fala sobre dinheiro.
"O link que ela clicou ao baixar o app da BTX também pode ser uma carteira de criptomoeda dele, que ele transformou numa carteira fria [como se tirasse do sistema blockchain e colocasse num dispositivo físico], tornando muito difícil de rastrear", diz.
O "Golpe do Amor"
Golpes envolvendo criptomoedas em aplicativos de namoro são chamados de criptorom (fusão de cripto e romance) no exterior. No Brasil, a polícia apelidou esse tipo de fraude de "golpe do amor".
O caso levou Aline a um trauma, que vem sendo tratado. Ela ficou mais um tempo em aplicativos porque mantinha contato com "a única pessoa que mexeu com ela" depois dessa confusão, mas decidiu desinstalar tudo. Está concentrada em buscar recolocação profissional e quitar as dívidas com os bancos. Ela vive com ajuda dos irmãos até conseguir um novo posto.
A partir de uma pesquisa pelo Google Lens, um recurso que leva à imagem indexada no Google a partir de uma fotografia, é possível encontrar o dono da foto que Jack usava no Tinder.
Trata-se de Thiago Lazzarato, 37 anos, brasileiro, morador de Londres. Por mensagem em uma rede social, disse à Folha que outras pessoas já haviam o alertado que perfis estavam usando suas fotos no Tinder. "Eu não moro no Brasil há 17 anos. Nem sei como fazer B.O. aí."
Aline mostrou à reportagem outras mensagens que trocou com um francês chamado Thomas.
"Eu vim aqui principalmente para examinar o mercado e visitar meu tio. Eu sou um empresário e um investidor, eu investir (sic) principalmente em imóveis com criptomoedas."
Desta vez, Aline já estava vacinada.
Em nota, o Tinder diz lamentar o caso e ter uma política de tolerância zero para esse tipo de comportamento.
"Investimos constantemente em maneiras de manter os membros seguros enquanto usam o Tinder, incluindo um conjunto robusto de recursos de segurança e educação de segurança no aplicativo, tecnologia de detecção de fraudes e trabalho direto com aplicação da lei quando necessário."
"Incentivamos os membros a denunciar qualquer comportamento suspeito diretamente para nós, para que possamos identificar, parar e remover criminosos antes que alguém seja prejudicado."
A empresa recomenda aos usuários que procurem perfis verificados (com o "tique azul", que não vale apenas para famosos, mas indica que o perfil é genuíno).
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