Rafael
estava brincando no fliperama com um primo quando sentiu um homem
estranho se aproximar demais. O menino ficou incomodado – o desconhecido
estava com o pênis ereto e o esfregou nele. Rafael empurrou o primo
para o lado e saiu – tinha 10 anos.
Marcelo* costumava ficar sob supervisão
da vizinha quando a mãe não tinha com quem deixá-lo. Ele tinha 11 anos,
mas ela insistia em lhe dar banhos que duravam mais do que o normal. O
menino achava esquisito.
João Vitor* sempre brincava de “lutinha”
com o pai. Depois de um tempo, porém, começou a perceber que a
brincadeira tinha alguns toques por baixo do shorts que ele não gostava.
Depois de muito tempo sendo abusado e
ameaçado pelo vizinho da família, Daniel* teve problemas de saúde e
precisou recorrer à mãe. Ele foi para o hospital e, aos 12 anos, se
descobriu com uma DST (doença sexualmente transmissível).
A BBC Brasil decidiu abordar o tema do
assédio e violência sexual contra meninos após pedido de leitores em
mídias sociais. “Vamos falar também das vítimas masculinas?”, pediu um
internauta no Facebook em discussões sobre a repercussão da campanha
criada sob a hastag #primeiroassedio.
Em meio aos milhares de depoimentos de
mulheres, em número bem menor, homens também revelaram episódios de
assédio e violência sofridos no passado como os reunidos pela reportagem
da BBC Brasil. Em outros casos, mulheres revelaram a violência sofrida
por homens próximos. “Namorei um cara que tinha sido abusado sexualmente
quando criança e vi o quanto isso tinha transformado ele”, disse.
Proporção semelhante se encontra nos
dados oficiais, que mostram um número bem inferior de vítimas
masculinas. Mas essa é apenas uma das razões pelas quais o tema ganha
menos espaço.
Cultura machista
Segundo especialistas ouvidos pela BBC
Brasil, há uma tendência a se subestimar o problema da violência sexual
contra meninos pelo fato de o tema ser visto como um grande tabu na
sociedade.
“É algo que precisa realmente ser mais
investigado. Nas pesquisas sobre o abuso sexual de meninos, eles notam
que esses casos são mais subnotificados ainda do que o de meninas”,
disse à BBC Brasil Flávio Debique, gerente técnico de proteção infantil
da ONG Plan International Brasil, que lida com direitos das crianças.
“Essa dificuldade de falar sobre esse
tema tem a ver com nossa cultura machista e patriarcal de considerar que
isso para os meninos significaria a ‘perda’ de sua condição de homem.”
Um estudo feito nos Estados Unidos
revelou recentemente que um em cada seis homens sofreu algum tipo de
abuso antes dos 16 anos no país. No Brasil, há poucos dados sobre o
assunto; mas o Disque Denúncia (o Disque 100, serviço nacional de
denúncia de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes)
registrou em 2014 uma média diária de 13 denúncias de abusos de meninos.
O número ainda representa menos de 30% dos casos com meninas, mas de acordo com especialistas, também é alarmante.
“O número de meninos abusados é bastante
subnotificado, e isso se deve à nossa cultura. O caso de meninos
assediados não vem à tona por conta do constrangimento em assumir que
eles passaram por isso”, disse à BBC Irene Pires Antonio, psicóloga
judiciária da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo.
Desde 2012, Irene atende meninos e
meninas que passaram por experiências de abuso sexual. “Tanto os meninos
quanto as meninas têm bastante dificuldade de falar sobre isso. Mas os
meninos chegam aqui muito mais constrangidos, apreensivos. Vivemos em
uma cultura que ‘homem não chora’ e ‘sabe se defender sozinho’. Admitir
uma fraqueza é difícil.”
Denúncias
Em 2014, foram 22.450 denúncias feitas
de abuso sexual de crianças e adolescentes – uma média de 61,5 por dia.
Dessas, 17.630 fora abusos envolvendo meninas e 4.820 envolvendo
meninos.
Fazer a denúncia já é, segundo
especialistas, uma experiência traumática para crianças de ambos os
sexos. Mas no caso dos meninos, o processo é ainda mais complexo.
Enquanto meninas que sofrem crimes sexuais recorrem à Delegacia da
Mulher (delegacia especializada para tratar casos de violência contra a
mulher), os meninos precisam ir a delegacias comuns para relatar os
casos de abuso.
“O mesmo delegado que está ali ouvindo o
caso de roubo, de assassinato, é o que vai ouvir o caso de abuso do
menino”, explicou Irene.
Em algumas cidades, existem Ambulatórios
de Atendimento para Violência Sexual Contra a Mulher, mas quando a
vítima é um menino, não há local específico para que ele possa fazer
esse atendimento.
“Não existe Ambulatório de Violência
Sexual, existe um Ambulatório de Violência Sexual contra a Mulher. Lá,
são apenas ginecologistas atendendo. São macas ginecológicas. O lugar
não é preparado para receber meninos. Ele vai entrar em um ambiente
exclusivamente feminino”, disse Irene.
“É muito possível que os meninos tenham
mais dificuldade pra enfrentar isso porque a própria sociedade não está
pronta para receber os casos.”
Alguns Estados implementaram um esquema
para reduzir o constrangimento da criança ao denunciar uma situação de
abuso ou violência sexual.
Antes disso, o procedimento padrão no
tratamento de casos de abuso infantil previa que a criança ou
adolescente tivesse de repetir várias vezes sua história, passando pelo
delegado, IML (Instituto Médico Legal, onde se faz o exame de corpo de
delito para detectar as provas do abuso), juiz, etc.
Mas o “Depoimento Especial” mudou isso,
segundo Irene. “Antes, a criança tinha que falar sobre o abuso na frente
do juiz, sozinha. Hoje, nesse método, ela precisa contar o que sofreu
apenas 2 vezes e o depoimento é feito para a psicóloga, com o juiz
assistindo fora da sala. O que melhorou bastante, porque antes era um
constrangimento muito grande”, diz ela.
“Nós fazemos um atendimento psicológico
com essa criança e com a família dela, procuramos descobrir de onde veio
o abuso, qual é a situação atual e tratar esse problema.”
Preconceito
Na raiz da dificuldade de um menino para
relatar casos em que sofreram assédio ou abuso está o temor do
preconceito que pode surgir quanto a sua orientação sexual, segundo os
especialistas.
“A ‘pior’ condenação que um menino pode
ter na sociedade machista em que vivemos é ser gay”, explica Flávio
Debique. “Aqui o homem precisa ser macho. Então se ele for abusado por
uma mulher e reclamar disso, será ‘tachado’ de gay, e se for abusado por
um homem e denunciar, também pode ser considerado gay.”
“Se a mulher aborda um homem, ainda que ele seja criança ou adolescente, espera-se que ele esteja pronto para isso.”
Para Debique, a “cultura machista é a
grande vilã” na maior parte dos casos de assédio ou abuso sexual de
crianças, porque é ela que estabelece o “poder” do homem com relação à
mulher e que determina que o homem não pode assumir a condição de
vítima, ele precisa ser “durão”.
A psicóloga do Tribunal de Justiça de
São Paulo, no entanto, destaca um outro elemento na questão também
cercado por um tabu: o papel muitas vezes ativo de mulheres como autoras
da violência.
“Os cuidados maternais podem encobrir
muita coisa, por exemplo. A mulher fica com o papel de dar banho, de
levar ao banheiro. E às vezes o abuso acontece aí, seja pela mãe ou por
uma conhecida que está tomando conta da criança”, disse Irene,
acrescentando, no entanto, que o número de casos é muito pequeno: 0,4%
do total de casos que chegaram ao tribunal.
Segundo Debique, uma das soluções para a
questão seria a de dar mais peso ao ensino de igualdade de gênero.
“Tudo começa na forma como a gente assume o que é ser homem e o que é
ser mulher, a desvantagem que as meninas têm, e as aparentes vantagens
que os homens têm. As desigualdades de gênero afetam as pessoas de
maneira diferente, mas todos saem perdendo.”
Irene aponta também a importância de
falar mais sobre o abuso sexual de meninos e meninas. Campanhas de
prevenção e conscientização ajudam a chamar a atenção para o caso. “Toda
vez que começa uma campanha ou que sai uma matéria sobre isso no
jornal, aumenta muito o número de denúncias. Isso prova a importância de
falar sobre o tema e acabar com o tabu”, concluiu.
*Os nomes são fictícios.
–
Papo de Mãe recomenda:
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