Medidas liberalizantes podem ser adotadas, mas
nunca em detrimento da responsabilidade social,
deixando parcela da sociedade desvalida
manifestações que aconteceram no Equador, na Colômbia e na Argentina – nos
impele à reflexão sobre uma questão urgente. A situação de emergência social
em que todos, de uma forma ou de outra, estão inseridos é fruto, em grande medida,
do descuido de seus governantes com a ideia de responsabilidade social, que emana
da democracia como princípio constitucional – e mesmo como princípio universal
estruturado nos Direitos Humanos.
Nas últimas décadas, muito se propagou a ideia de que a responsabilidade fiscal deve
ser o compromisso primordial de qualquer governo. A América Latina e o Brasil,
evidentemente, não escaparam dessa teoria. Em geral, aponta-se como temerária a
conduta do governante que supostamente realiza despesas em excesso, aumenta os
gastos públicos de forma “demagógica”, “populista”, e, com isso, acaba por criar
ônus às finanças públicas.
Há, evidentemente, uma razoabilidade nesse argumento. É da essência da concepção
de República e de Estado de Direito a noção de responsabilidade do governante. Num
primeiro sentido, significa que os administradores devem estar sujeitos a sanções em
caso de ilicitudes. Mas se depreende daí um compromisso maior que o de responsabilidade
jurídica, o de responsabilidade política. O governante deve agir ponderando seus interesses
pessoais com os reais interesses públicos, de forma que estes preponderem sobre seus
objetivos particulares e de continuidade de poder.
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Como identificou Maquiavel, faz parte da política, em certa medida, disputar o poder,
alcançá-lo e nele permanecer o máximo de tempo possível. Por outro lado, embora
muitos pensadores sejam céticos à ideia de uma moralidade política – entendendo-se
a expressão no sentido de bem viver coletivo – e questionem a própria eficácia do
direito público como direito que regula a atividade política por meio de valores morais
e políticos que tentam dar racionalidade à vida comum, essa dimensão moral é essencial.
Ao menos desde a revolução agrícola do neolítico o ser humano cria mecanismos
deônticos de comportamento, de relação social pautados numa intensificação da
linguagem simbólica, que levam à deontificação, ou seja, ao dever ser das relações
coletivas, moralizando-as.
A política não deve ser entendida apenas como disputa pelo poder, mas como a
construção de valores que freiam as relações antagônicas e criam relações agônicas,
nas quais o oponente não é tido como inimigo, mas adversário. Trata-se de uma
diferença fundamental, pois o inimigo é aquele a quem se quer banir do ambiente
social, enquanto o adversário tem sua legitimidade reconhecida, inclusive como
condição para que haja uma sociedade livre. Essas formas morais e deônticas de
relacionamento social são essenciais para se conter a barbárie, inerente às relações
de antagonismo entre os seres humanos. Portanto, a política faz-se pela construção
desses valores gerais do ambiente social, que não se dá de forma abstrata e idealista,
como pensaram muitos teóricos liberais, mas por meio de um common ground, ou seja,
da construção de um solo comum, de uma prática social que se realiza no correr da
história e que constitui os valores que caracterizam as civilizações.
Em face dessa natureza, pode-se dizer que não cabe dar menor importância à ideia de
responsabilidade social do governante do que se tem dado à de responsabilidade fiscal.
O governante não pode adotar medidas de restrição fiscal que levem a uma
irresponsabilidade social. Medidas liberalizantes podem e, às vezes, devem ser
adotadas – a depender do governo, da sociedade e de uma série de fatores –, mas
nunca em detrimento da responsabilidade social, deixando grande parcela da sociedade
desvalida, empobrecida, sem o mínimo de proteção social a que todo ser humano
tem direito.
A proteção social, mais do que apenas direito e valor jurídico, é um valor moral da
vida política com o qual o governante tem um compromisso e com o qual não pode
romper, sob pena de causar grave desagregação social, acumulando riqueza nas mãos
de poucos e espalhando miséria na vida de muitos. Ao desnivelar a vida social em
exagero, o problema deixa de ser meramente econômico e passa a ser social e político.
A noção de direitos e de uma moralidade comuns é assolada pela desigualdade social,
inviabilizando a democracia, a sociedade livre e produzindo conflitos, em vez de
consensos – o que, no limite, esgarça o tecido social.
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Pode-se dizer, assim, que o que acontece hoje na América Latina é resultado da adoção
de uma receita que, administrada sob pretexto de remédio necessário a uma suposta
austeridade e responsabilidade fiscal, produz efeitos colaterais gravíssimos.
Instaura-se a barbárie e afasta-se cada vez mais de um patamar mínimo de civilização.
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