segunda-feira, 28 de outubro de 2019

RESPONSABILIDADE SOCIAL é tão importante quanto responsabilidade fiscal

Bandeira hasteada em Brasília (DF): cores são herança do período pré republicano
BANDEIRA HASTEADA EM BRASÍLIA (DF): CORES SÃO HERANÇA DO PERÍODO PRÉ REPUBLICANO

Medidas liberalizantes podem ser adotadas, mas 

nunca em detrimento da responsabilidade social, 

deixando parcela da sociedade desvalida

A convulsão que neste momento toma conta do Chile – e também as massivas 
manifestações que aconteceram no Equador, na Colômbia e na Argentina – nos 
impele à reflexão sobre uma questão urgente. A situação de emergência social 
em que todos, de uma forma ou de outra, estão inseridos é fruto, em grande medida, 
do descuido de seus governantes com a ideia de responsabilidade social, que emana 
da democracia como princípio constitucional – e mesmo como princípio universal 
estruturado nos Direitos Humanos.
Nas últimas décadas, muito se propagou a ideia de que a responsabilidade fiscal deve 
ser o compromisso primordial de qualquer governo. A América Latina e o Brasil, 
evidentemente, não escaparam dessa teoria. Em geral, aponta-se como temerária a 
conduta do governante que supostamente realiza despesas em excesso, aumenta os 
gastos públicos de forma “demagógica”, “populista”, e, com isso, acaba por criar 
ônus às finanças públicas.
Há, evidentemente, uma razoabilidade nesse argumento. É da essência da concepção 
de República e de Estado de Direito a noção de responsabilidade do governante. Num 
primeiro sentido, significa que os administradores devem estar sujeitos a sanções em 
caso de ilicitudes. Mas se depreende daí um compromisso maior que o de responsabilidade 
jurídica, o de responsabilidade política. O governante deve agir ponderando seus interesses 
pessoais com os reais interesses públicos, de forma que estes preponderem sobre seus 
objetivos particulares e de continuidade de poder. 
 
Como identificou Maquiavel, faz parte da política, em certa medida, disputar o poder, 
alcançá-lo e nele permanecer o máximo de tempo possível. Por outro lado, embora 
muitos pensadores sejam céticos à ideia de uma moralidade política – entendendo-se 
a expressão no sentido de bem viver coletivo – e questionem a própria eficácia do 
direito público como direito que regula a atividade política por meio de valores morais 
e políticos que tentam dar racionalidade à vida comum, essa dimensão moral é essencial. 
Ao menos desde a revolução agrícola do neolítico o ser humano cria mecanismos 
deônticos de comportamento, de relação social pautados numa intensificação da 
linguagem simbólica, que levam à deontificação, ou seja, ao dever ser das relações 
coletivas, moralizando-as. 
A política não deve ser entendida apenas como disputa pelo poder, mas como a 
construção de valores que freiam as relações antagônicas e criam relações agônicas, 
nas quais o oponente não é tido como inimigo, mas adversário. Trata-se de uma 
diferença fundamental, pois o inimigo é aquele a quem se quer banir do ambiente 
social, enquanto o adversário tem sua legitimidade reconhecida, inclusive como 
condição para que haja uma sociedade livre. Essas formas morais e deônticas de 
relacionamento social são essenciais para se conter a barbárie, inerente às relações 
de antagonismo entre os seres humanos. Portanto, a política faz-se pela construção 
desses valores gerais do ambiente social, que não se dá de forma abstrata e idealista, 
como pensaram muitos teóricos liberais, mas por meio de um common ground, ou seja, 
da construção de um solo comum, de uma prática social que se realiza no correr da 
história e que constitui os valores que caracterizam as civilizações. 
Em face dessa natureza, pode-se dizer que não cabe dar menor importância à ideia de 
responsabilidade social do governante do que se tem dado à de responsabilidade fiscal. 
O governante não pode adotar medidas de restrição fiscal que levem a uma 
irresponsabilidade social. Medidas liberalizantes podem e, às vezes, devem ser 
adotadas – a depender do governo, da sociedade e de uma série de fatores –, mas 
nunca em detrimento da responsabilidade social, deixando grande parcela da sociedade 
desvalida, empobrecida, sem o mínimo de proteção social a que todo ser humano 
tem direito.                                                                                        
A proteção social, mais do que apenas direito e valor jurídico, é um valor moral da 
vida política com o qual o governante tem um compromisso e com o qual não pode 
romper, sob pena de causar grave desagregação social, acumulando riqueza nas mãos 
de poucos e espalhando miséria na vida de muitos. Ao desnivelar a vida social em 
exagero, o problema deixa de ser meramente econômico e passa a ser social e político. 
A noção de direitos e de uma moralidade comuns é assolada pela desigualdade social, 
inviabilizando a democracia, a sociedade livre e produzindo conflitos, em vez de 
consensos – o que, no limite, esgarça o tecido social.
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Pode-se dizer, assim, que o que acontece hoje na América Latina é resultado da adoção 
de uma receita que, administrada sob pretexto de remédio necessário a uma suposta 
austeridade e responsabilidade fiscal, produz efeitos colaterais gravíssimos. 
Instaura-se a barbárie e afasta-se cada vez mais de um patamar mínimo de civilização.

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