BRASIL
Indígenas dizem ter identificado até 20 mil invasores em busca de ouro em suas terras desde o início do ano. MPF já alertou para risco de genocídio, apontando que garimpeiros trazem poluição, doenças e conflitos.
Imagem captada pela associação Hutukara em abril de 2019 mostra mineração de ouro ilegal na TI Yanomami em Roraima
Dário Vitório Kopenawa Yanomami está ameaçado de morte. Ele e o pai, Davi Kopenawa, liderança do povo Yanomami, presidem a Hutukara Associação Yanomami, em Roraima. Desde que voltaram a denunciar o garimpo ilegal na terra indígena, as perseguições aumentaram.
"Eles estão falando que a Hutukara está atrapalhando o trabalho de garimpagem na Terra Indígena Yanomami", afirmou Dario, por telefone, à DW Brasil. "Se vocês continuarem denunciando, a gente vai matar você", disse sobre as ameaças anônimas que recebe.
Os indígenas afirmam que as invasões dispararam nos últimos sete meses. Segundo a contagem feita por eles, até 20 mil garimpeiros estão atualmente no território atrás de ouro. Eles desmatam, abrem cavas na terra e contaminam o solo e a água com mercúrio.
A maior parte deles monta acampamento a poucos minutos de caminhada das aldeias. "Eles entram com drogas no nosso território. O aliciamento é muito grande, dão comida, cachaça, arma de fogo e cartucho aos indígenas e depois dizem que são garimpeiros ‘bons', que vão ajudar", denuncia Dario.
No meio do território Yanomami, localizado nos estados de Roraima e Amazonas, pistas de pouso clandestinas são construídas para trazer suprimentos e levar o ouro encontrado. Sobrevoos feitos recentemente identificaram, além de casas improvisadas, bares, pontos de wifi e cabarés nas áreas de garimpo.
"Esses garimpeiros não trabalham sozinhos. Eles têm muito apoio e financiamento de políticos importantes e empresários grandes", acusa Dario, vice-presidente da Hutukara.
As denúncias são ecoadas por ONGs dentro e fora do país, como a Survival International. "Achamos extremamente importante mostrar para o mundo o que está acontecendo. Vemos que a pressão internacional é a melhor maneira de se obter mudança duradoura para comunidades indígenas e seus territórios", disse Sarah Shenker, pesquisadora da organização sediada em Londres.
No Ministério Público Federal (MPF) de Roraima há diversas investigações criminais envolvendo a atividade, mas todas correm em sigilo.
Na última semana, outra terra indígena foi alvo de uma violenta invasão de garimpeiros, chamando atenção para o problema. O território dos Waiãpi, no Amapá, foi invadido por um grupo de garimpeiros armados, e um líder indígena foi assassinado, provocando tensão e reações de entidades e políticos.
O presidente Jair Bolsonaro já se manifestou diversas vezes a favor da exploração de minerais e de outras atividades econômicas em terras indígenas, uma de suas promessas de campanha. Nos últimos dias, o governo federal finalizou a minuta de um projeto de lei para regulamentar a mineração nas reservas, e o presidente falou sobre a TI Yanomami.
"Terra riquíssima. Se junta com a Raposa Serra do Sol, é um absurdo o que temos de minerais ali. Estou procurando o 'primeiro mundo' para explorar essas áreas em parceria e agregando valor", disse Bolsonaro em evento no Rio de Janeiro no sábado.
Falta de vigilância
No Brasil, a Terra Indígena (TI) Yanomami foi homologada em 1992 e compreende 96 mil km² espalhados por Roraima e Amazonas. O território do povo, porém, se estende até a Venezuela. Dados mais recentes, de 2011, indicam uma população de 19 mil indígenas Yanomami no território brasileiro e 16 mil do lado venezuelano.
A recente onda de invasões de garimpeiros ganhou força depois que a vigilância na TI Yanomami diminuiu. A Funai mantinha quatro Bases de Proteção Etnoambiental (Bape) no local, mas três foram desativadas.
Apenas a de Ajarani está em funcionamento, a qual é voltada para o atendimento aos povos Yanomami de recente contato. Duas bases do Exército montadas na área após uma operação, em 2018, também foram desmobilizadas.
Em novembro último, a Justiça determinou a reabertura das Bapes para proteção dos indígenas e do território. A ação, movida pelo MPF em Roraima, alerta para o risco de genocídio na TI.
Segundo o processo, a exploração criminosa do ouro aumentou consideravelmente, "ensejando novos conflitos, surtos epidêmicos, exploração laboral, poluição ambiental, redução dos recursos ambientais, desagregação de comunidades, sobrecarga do subsistema de saúde indígena e riscos de dizimação ou genocídio dos grupos isolados".
Para a procuradora Manoela Lins Cavalcante, a reabertura das Bapes é importante para garantir a sobrevivência dos indígenas. "Se isso não for feito de forma efetiva, é impossível ter um controle efetivo do Estado naquela região. Consequentemente, a ampliação do garimpo é algo que se pode esperar e que tem sido observado", argumenta.
Questionada, a Funai afirmou que "está desenvolvendo atividades de sua competência a fim de atender às demandas em decorrência das denúncias recebidas".
O órgão reconhece que as bases desativadas - Demarcação, Serra da Estrutura e Korekorema - são importantes para a proteção territorial, ambiental e para o combate ao garimpo ilegal nas calhas dos rios Mucajaí e Uraricuera.
"A metodologia das bases de proteção possibilita a presença contínua do Estado em campo, barrando a entrada irregular de estranhos na Terra Indígena e interrompendo o acesso fluvial ao garimpo", respondeu a Funai por e-mail à DW Brasil.
Por outro lado, o inquérito mostra que União, o estado de Roraima e a Funai recorreram da sentença alegando, principalmente, problemas orçamentários. Até agora, as bases não foram reabertas.
Ouro e política
A TI Yanomami sofreu a primeira grande invasão ainda na década de 1980, com a chegada de cerca de 40 mil garimpeiros. Demarcada em 1992, a TI foi alvo de diversas operações para expulsão dos invasores, sempre movidas por denúncias feitas pelos próprios indígenas.
Trata-se do ponto no mapa mais cobiçado por mineradoras. Um levantamento feito pelo ISA, Instituto Socioambiental, mostrou que existem pelo menos 534 pedidos de pesquisa para exploração de minérios no local.
A legislação brasileira proíbe esse tipo de atividade em território indígena, mas empresas fazem os requerimentos na expectativa de uma mudança na lei.
No Congresso, uma proposta em tramitação desde 1996 tenta autorizar a mineração nos territórios indígenas. O autor do projeto é Romero Jucá: presidente da Funai em 1986 e 1987, ele apresentou a proposta dez anos depois de ter chefiado o órgão indigenista, durante mandato como senador por Roraima, onde também foi governador.
Há pouco mais de um mês, a associação Hutukara protocolou em Brasília as denúncias sobre o aumento das invasões de garimpeiros. Dario fez parte da comissão que entregou diversos documentos ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, à pasta da Defesa e à Funai. A denúncia incluía pontos de garimpo marcados com GPS pelos indígenas.
"O presidente da República não se posicionou, não se moveu para tirar os garimpeiros da nossa terra. Esse atual presidente é pior que os anteriores. Ele está apoiando grande mineração nas terras indígenas", afirma Dario. "Ele está tentando acabar com os povos indígenas do Brasil, as violações de nossos direitos são muito graves."
Os indígenas vem buscando apoio no exterior. "Estamos falando como denunciantes fora do Brasil, viajando e falando sobre garimpo ilegal, pedindo apoio, pedindo socorro, para pressionar o governo federal", diz Dario.
Rota do crime
O antropólogo Marcos Wesley, que atua na região há mais de 20 anos por meio do ISA, reafirma a seriedade da situação. "Esse é o momento mais grave desde a primeira grande invasão na Terra Indígena Yanomami", afirma. Segundo Wesley, até os locais mais remotos, onde antes não se registrava a presença de garimpeiros, estão sendo afetados.
Embora as investigações corram em segredo, fontes que preferiram não se identificar por questões de segurança afirmam que os inquéritos tentam localizar os financiadores da extração de ouro ilegal, que podem também ter associação com o crime organizado internacional.
Em março, o jornal Folha de Boa Vista repercutiu uma nota oficial emitida pela Coordenadoria-Geral de Estudos Econômicos e Sociais da Secretaria Estadual de Planejamento que contabilizava mais de cem quilos de ouro exportados para a Índia nos quatro primeiros meses de 2019. O estado, por outro lado, não tem sequer uma única mina legalizada para a extração do minério.
Segundo o jornal, o valor da exportação chegou a 4,5 milhões de dólares. O ouro proveniente de Roraima seria vendido aos indianos por empresas sediadas no município de Caieiras, em São Paulo.
Questionada sobre providências tomadas para a retirada de invasores da TI Yanomami, a Polícia Federal não respondeu a tempo do fechamento desta reportagem.
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