sábado, 26 de outubro de 2019

A AGITAÇÃO SOCIAL que inflama a AMÉRICA DO SUL

AMÉRICA LATINA

Chile, Equador, Bolívia, Venezuela, Argentina: sejam de direita, sejam
de esquerda, governos se encontram sob pressão em países sul-americanos.
O que está por trás das convulsões sociais que incendeiam a região?       
    

Protestos no Chile
Protestos já se estendem por uma semana no Chile
Protestos violentos contra o aumento da gasolina no Equador, manifestações cada vez
mais acirradas contra a reeleição controversa de Evo Morales na Bolívia, uma
mudança dramática iminente diante do caos econômico na Argentina e
a agonizante Venezuela: governos de esquerda e de direita se encontram à beira do
abismo em países da América do Sul.
No Chile, onde os protestos continuam apesar das concessões do governo, o único
bastião liberal da região está de pernas bambas. Esse turbilhão pode atingir até
mesmo o Brasil, que vivenciou sua própria onda de manifestações em 2013.
No início de outubro, o Equador foi o primeiro país a testemunhar protestos violentos
que forçaram o presidente Lenín Moreno a suspender medidas de austeridade
econômica. "No Equador, ficou claro afinal o que as pessoas querem. Ou seja,
mais direitos e manutenção de subsídios", diz à DW o cientista político Oliver Stuenkel,
da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Não foi por acaso que o presidente esquerdista Moreno introduziu medidas de
austeridade. Ali, "a esquerda também não pode mais governar como antes, como
sob Rafael Correa [2007-2017], porque o Equador não tem mais dinheiro", explica
Stuenkel.
A situação econômica no Chile é, de fato, melhor. "No Chile, é muito mais difícil
identificar o que as pessoas querem, e por isso estou mais pessimista nesse caso",
avalia o cientista político.
No país considerado um modelo do liberalismo econômico, com sua economia
completamente privatizada e crescimento robusto, mais de um milhão de pessoas
foram às ruas novamente nesta sexta-feira (25/10). Após 18 mortos na recente onda
de protestos, o presidente Sebastian Piñera se encontra sob pressão.
"Por um lado, todos reconhecem que o país fez um grande progresso", afirma
Stuenkel. "Mas, ao mesmo tempo, isso gerou expectativas que não puderam ser
cumpridas e levou a frustrações."
"Na realidade, nem todo mundo está em situação melhor e, em certas áreas, o Chile
continua sendo um país em desenvolvimento, com uma elite típica
de um país em desenvolvimento que não parece conhecer realmente seu país, e
é por isso que os protestos são contra todos, contra a esquerda e a direita",
completa. Segundo Stuenkel, isso deve trazer ao plano representantes da antipolítica.
"Os liberais brasileiros sempre colocaram o Chile como sua grande referência na
América Latina. É uma imagem exagerada que deixou de lado muitos dos
problemas sociais. Em particular, foi subestimado o impacto da desigualdade
socioeconômica no país", aponta Maurício Santoro, professor de Relações
Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
O cientista político lembra ainda que há anos tem havido ondas de protestos
contra a privatização da política educacional chilena.
Mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Santiago para protestar
Mais de um milhão de pessoas foram às ruas de Santiago para protestar
Mas a cegueira para os problemas sociais é universal, diz Santoro. "Não é algo exclusivo
dos liberais. A esquerda brasileira, por exemplo, tem um problema grande em aceitar
as dificuldades da Venezuela, da Bolívia e de Cuba. A vida política na América Latina
está hoje muito polarizada, e isso acaba refletindo também nas relações internacionais.
Fica muito difícil ter uma conversa aberta sobre os problemas."
Boom das commodities
Tal conversa aberta seria urgentemente necessária. "Houve um boom de commodities
nos anos 2000, e os países da América do Sul cresceram muito. Mas talvez não tenham
aproveitado o momento para fazer reformas importantes, tendo se preparado para
tempos de vacas magras", avalia o cientista político e professor do Insper Carlos Melo,
em entrevista à DW. "Diferente do que ocorreu na Ásia, onde se investiu fortemente
em educação e tecnologia. E se desenvolveram."
O declínio nos preços das commodities contribuiu para a queda da esquerda no Brasil,
em 2016, e na Argentina, em 2015. Mas mesmo os novos governos conservadores
de direita não encontraram soluções, avalia Melo.
"Fez-se uma opção conservadora, que talvez tenha sido radical demais, cheia de
vingança e de raiva contra a esquerda, e passado do ponto. E se preocuparam de
menos em fazer um bom diagnóstico de quais seriam os problemas econômicos. Então,
parece que está chegando a vez da crise dos governos conservadores."
Na Argentina, os peronistas provavelmente vencerão a eleição presidencial neste
domingo, e Alberto Fernández substituirá o liberal-moderado Mauricio Macri. No
entanto, devido aos cofres vazios, Fernández terá que governar de forma
mais pragmática do que Cristina Kirchner, presidente do país de 2007 a 2015 e
agora vice em sua chapa, avalia Oliver Stuenkel.
Também está em aberto qual caminho deverá seguir o Uruguai, que, assim, como
a Argentina, vai às urnas neste domingo.
"Não é uma crise dos liberais, da direita nacionalista ou da esquerda
latino-americana", afirma Santoro, da Uerj. "É uma crise regional, que tem afetado
todas as correntes políticas e partidárias. Não há hoje, na América Latina, um governo
que seja capaz de oferecer uma resposta para os problemas sociais e econômicos da
região, e a maior parte dos países está em recessão ou com crescimento muito baixo,
mais fraco que a média global."
Novos problemas se anunciam com o Brexit e com a guerra comercial entre os
Estados Unidos e a China. "A América Latina tem sentido essas turbulências
de uma maneira muito mais dura. E tem faltado, entre os governos e intelectuais
latino-americanos, uma reflexão da importância desse cenário internacional, talvez
pelo momento muito polarizado que a gente vive na região", diz Santoro.
"A maior parte das discussões acaba sendo um blame game (jogo de culpar o outro)
entre os vários partidos e grupos ideológicos. Como se apenas um deles fosse o
culpado por essa crise. Quem dera fosse isso, pois bastaria uma eleição para
resolver o problema", completa o cientista político.
Segundo ele, nem a esquerda nem a direita investiram na modernização. "Em última
instância, existe a dificuldade de se inserir numa economia global mais aberta, mais
competitiva. E há uma dificuldade das elites nacionais em promover as reformas
necessárias em seus países para combater a desigualdade, para fornecer um sistema
educacional de qualidade. Todas essas questões são fundamentais, mas estão paralisadas."
Bolsonaro preocupado com respingo no Brasil
Stuenkel, da FGV, lembra como os atuais protestos no Chile, também iniciados
pelo aumento da passagem de transporte público e que mais tarde ganharam
novas demandas, são semelhantes aos registrados no Brasil em 2013.
"Trata-se de demandas igualmente difusas que não puderam ser resolvidas por
reformas como, por exemplo, na política previdenciária. Ninguém pode conseguir
isso simplesmente com um truque de mágica. E vimos que efeitos isso
provocou no Brasil", diz o cientista político, referindo-se à queda da presidente
de esquerda Dilma Rousseff (2011-2016) e à eleição do populista de direita
Jair Bolsonaro, como um resultado da agitação social em longo prazo.
Mas também Bolsonaro está preocupado com a possibilidade de os protestos
chegarem ao Brasil. Na última quinta-feira, o presidente chamou as manifestações
no Chile de "atos terroristas" e disse que as tropas brasileiras precisam estar
preparadas para manter a ordem.
A economia brasileira está estagnada há cinco anos, e justamente uma cópia
do modelo chileno proposta pelo "Chicago boy" Paulo Guedes deve ser agora
a solução. "O Chile não é só um revés no discurso, mas também um alerta",
adverte Carlos Melo, do Insper. "Qualquer aumento de 20 centavos pode ser
a gota d'água."
Devido à dependência do mercado global de commodities e ao turbulento
comércio global, é provável que a oscilação continue nos países da América do Sul,
aponta Stuenkel. "É uma montanha-russa que não se consegue controlar. Às vezes
funciona bem, às vezes mal, mas basicamente é sempre imprevisível. E assim
se está condenado à instabilidade política, porque é muito difícil planejar
economicamente."
Segundo o especialista da FGV, as iminentes turbulências deverão custar, mais
cedo ou mais tarde, os cargos de presidentes, sejam eles de esquerda ou de direita,
como Evo Morales, Sebastian Piñera, Jair Bolsonaro e também Alberto Fernández.
"A festa das commodities acabou, e toda a região está pegando fogo."

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