Reportagem flagrou caminhões carregados com toras
retiradas de área proibida; sucessão de assassinatos e
ameaças marcam vida de lideranças
*Por Daniel Camargos, de Novo Progresso (PA)
Com uma cuia de chimarrão em uma mão e um rádio-transmissor na outra, um
senhor passa os dias sentado em uma cadeira de praia em Cachoeira da Serra
(190 km de Novo Progresso, no Pará), na beira da BR-163, avisando os madeireiros
sobre a chegada de veículos de órgãos de fiscalização ambiental. A 150 quilômetros
dali, a Repórter Brasil flagrou dois caminhões carregados de toras de madeira roubadas
da área do assentamento Terra Nossa indo em direção à rodovia, cujas margens estão
repletas de serrarias ilegais.
A cena mostra que, mesmo após o ‘Dia do Fogo’ ter aumentado em 196% o número
de focos de incêndio na Amazônia em agosto, a destruição da floresta segue inalterada
em Novo Progresso. A cidade está cercada pela Floresta Nacional (Flona) do
Jamanxim, a terceira área de proteção mais desmatada da Amazônia, segundo
o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
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O roubo de madeira, como o flagrado pela reportagem em 27 de setembro, é apenas
uma das ameaças sofridas pelas 350 famílias de pequenos produtores rurais que
vivem no Terra Nossa. Isso porque o Projeto de Desenvolvimento Sustentável
(PDS) Terra Nossa foi concebido sob um conceito de reforma agrária que prevê
a preservação da floresta – o que contraria o interesse dos madeireiros e grileiros.
Nesta região do Pará não há manejo de madeira autorizado, o que evidencia a
ilegalidade das serrarias e da extração das toras.
Foi por defender esse modelo de reforma agrária e preservação ambiental que a
freira missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada em 2005, em
Anapu. Como Dorothy, uma das lideranças do PDS, Maria Márcia Elpídia de Melo,
vem sofrendo ameaças desde que outras duas lideranças do Terra Nossa foram
assassinadas no ano passado. “Eu não quero confusão. Quero apenas defender os
pequenos agricultores e a floresta”, afirma.
Quem a ameaça, segundo Maria Márcia, são pessoas poderosas da cidade, que
estariam relacionadas ao ‘Dia do Fogo’ – articulação feita por fazendeiros e
empresários de Novo Progresso para queimar a floresta nos dias 10 e 11 de agosto,
conforme revelou a Repórter Brasil na terça-feira (22) com base em entrevistas
com os investigadores.
Os responsáveis pelo ataque se organizaram em um grupo de WhatsApp, racharam
os custos do combustível usado para alimentar o fogo e contrataram motoqueiros
para espalhar as chamas – um dos alvos foi o assentamento, que apenas nesse final
de semana de agosto teve 197 focos de incêndio em seu território, segundo dados da
Agência Pública.
Um dos poderosos que, segundo Maria Márcia, já a ameaçou de morte é o vice-prefeito
de Novo Progresso, Gelson Dill (MDB). Além de ocupar o segundo cargo do poder
Executivo da cidade, Dill também é vice-presidente do sindicato dos produtores rurais,
cujo presidente, Agamenon Menezes, foi alvo de uma operação da Polícia Federal nesta
terça (22), é suspeito de ser um dos organizadores do ‘Dia do Fogo’.
terça (22), é suspeito de ser um dos organizadores do ‘Dia do Fogo’.
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A Repórter Brasil teve acesso a um áudio de WhatsApp que indica como se deram
as combinações para se incendiar parte da floresta. Na gravação, um homem não
identificado confirma que estaria cumprindo um combinado feito com o vice-prefeito
Dill, sobre uma queimada que ocorreria no domingo, 11 de agosto. “Ô Gilson [Gelson],
estou avisando o pessoal para todo mundo ir para aí no domingo para queimar esse
negócio aí, beleza?”, diz o homem.
Dill nega que tenha recebido o áudio. “Essa história do ‘Dia do Fogo’ é uma fantasia.
Agosto sempre teve queimada e esse ano foi mais seco”, afirma ele, que planeja ser
candidato a prefeito de Novo Progresso no ano que vem.
Dill já foi multado duas vezes por desmatamento ilegal na região de Novo Progresso.
Em um dos episódios, recebeu multa de 288 mil reais do Ibama. Seu irmão, Evandro
Carlos Dill, também foi multado por extração ilegal de madeira dentro da Flona
Jamanxim. Os dois atuavam como madeireiros e tinham uma serraria em Novo
Progresso, segundo entrevista de Dill à Repórter Brasil, em que se queixou do
fechamento dessa madeireira após a criação da Flona do Jamanxim, em 2006.
Sucessão de assassinatos
Maria Márcia vive com a sensação de que vai ser assassinada a qualquer momento
por conta das ameaças e das denúncias que faz. A violência se intensificou no
assentamento no último ano, quando outra liderança do assentamento foi morta.
Quem exigiu a punição dos responsáveis também foi assassinado.
Segundo Maria Márcia, além de Dill, outras três pessoas influentes de Novo
Progresso a ameaçam: o presidente do sindicato dos trabalhadores na agricultura
familiar (Sintraf) de Novo Progresso, Raimundo Barros Cardoso (conhecido como Dico);
o chefe do departamento de Regularização Fundiária da prefeitura, Roberto Aparecido
de Passos e o fazendeiro Messias Floriano Ferreira.
Os três foram presos em 10 de outubro, mais de um ano após o desaparecimento
de Antônio Rodrigues dos Santos, o Bigode. Ex-liderança do Terra Nossa, Bigode
desapareceu quando denunciava extração ilegal de madeira dentro de seu lote.
Roberto e Messias já foram libertados e apenas Dico permanece preso. Os três
são investigados pela morte de Bigode.
Dill afirma que nunca ameaçou Maria Márcia. “Ela inventou isso para me
prejudicar politicamente”, diz. O vice-prefeito registrou uma queixa acusando
Márcia de calúnia. Os advogados de Messias e Roberto disseram que eles não
tiveram participação na morte de Bigode e que não têm conhecimento das ameaças.
A reportagem enviou as perguntas para o advogado de Raimundo, mas não obteve
respostas.
Após o assassinato de Bigode, o presidente de outro Sintraf – o de Castelo dos
Sonhos-, Aluísio Sampaio (conhecido como Alenquer), passou a exigir publicamente
a investigação do crime. Também foi assassinado. Antes de morrer, gravou um vídeo
denunciando os responsáveis pelas ameaças que sofria – , dentre eles, o Dico, que há
onze anos foi indiciado pela morte de outra uma liderança rural de Marabá.
O PDS Terra Nossa tem o mesmo tamanho da cidade de São Paulo e, além dos
assentados, há 76 fazendas ilegais (fruto de grilagem de terra). Os fazendeiros
pressionam o Incra e os pequenos produtores para que aconteça uma redução na
área do assentamento e uma regularização de um número maior de grandes
propriedades.
Floresta sob pressão
A pressão que ocorre no PDS é corriqueira na região.A Floresta do Jamanxim é
dominada por conflitos agrários, grilagem de terras, garimpos e extração de madeira
ilegal desde que área de proteção ambiental foi criada, em 2006, pela então ministra
do Meio Ambiente Marina Silva. Produtores rurais argumentam que a Flona do
Jamanxim foi estabelecida em áreas que já estavam sendo exploradas comercialmente
com criação de gado e extração de madeira.
“Criaram a Flona do Jamanxim, em 2006, onde nós já trabalhávamos e passamos a
ficar na ilegalidade de um dia para o outro”, reclama o vice-prefeito em entrevista à
Repórter Brasil. O ICMBio, entretanto, estima que 67% dos ocupantes da Flona
entraram pouco antes ou logo após a criação da área.
Com área equivalente à da Irlanda do Norte (1,3 milhão de hectares), a Flona está
sob pressão não apenas dos produtores locais, mas também de políticos ligados à
bancada ruralista, que articularam durante o governo de Michel Temer uma redução
da área protegida. Depois de pressão de ambientalistas e de uma campanha que
contou com a participação de celebridades como a modelo Gisele Bündchen, Temer
vetou a medida.
Após o veto, o Planalto tentou reduzir novamente a Flona, desta vez por meio de um
projeto de lei enviado ao Congresso. Foi um aceno à bancada ruralista, já que o então
presidente precisava dos votos desses parlamentares para se livrar de pedidos de
impeachment (feitos após escândalo envolvendo os irmãos Wesley e Joesley Batista,
da JBS).
O projeto aguarda a criação de uma comissão temporária para analisar a proposta.
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