quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Por que ricos ficaram mais ricos e a pobreza explodiu na pandemia?

Por que ricos ficaram mais ricos e pobreza explodiu na pandemia?. Foto: AFP.

Por que ricos ficaram mais ricos e pobreza explodiu na pandemia?. Foto: AFP.

Relatório mostra que as fortunas analisadas passaram de US$ 2,95 trilhões, em março, para US$ 3,8 trilhões, em setembro

Diferentes relatórios de organizações internacionais indicam que os milionários ficaram ainda mais ricos durante a pandemia de coronavírus. Os ligados ao setor digital e de novas tecnologias foram os mais beneficiados no período. Ao mesmo tempo, o surto de Covid-19 acentua as desigualdades sociais e aumenta a pobreza no mundo, seja nos países desenvolvidos ou nos emergentes.

 

O estudo do Institute for Policy Studies e a Americans for Tax Fairness revela que a fortuna dos 643 americanos mais ricos cresceu 29% desde meados de março, quando o coronavírus se espalhava pelo planeta e obrigava populações inteiras a entrar em quarentena. Comércios fechados, economia paralisada e explosão do desemprego não abalaram a saúde financeira desses multimilionários – pelo contrário. O relatório mostra que as fortunas analisadas passaram de US$ 2,95 trilhões, em março, para US$ 3,8 trilhões, em setembro.

Os resultados não surpreendem o pesquisador Fernando Burgos, especialista em desigualdades sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). “A desigualdade já estava aumentando e a Covid acelerou um processo que já vinha acontecendo no mundo todo. Os bilionários ficaram mais ricos ainda e, do outro lado, temos uma parcela da população que estava relativamente sob controle – embora sempre  estivesse sob o risco de exclusão social – e agora, efetivamente, caiu”, comenta. “São pessoas que entraram em uma situação de altíssima vulnerabilidade.”

 

Valor das ações disparou

 

O que explica uma performance tão robusta dos ultrarricos? Valorização das ações na bolsa durante a pandemia. No início de setembro, outra pesquisa, realizada pela britânica Oxfam, já havia mostrado que, ao mesmo tempo em que a economia mundial levava um tombo sem precedentes, algumas das empresas mais valiosas do mundo registravam lucros extraordinários. As 32 maiores multinacionais devem somar US$ 109 bilhões de dólares a mais do que o lucro médio que tiveram nos últimos quatro anos.

“A maior parte desses lucros excepcionais devem ser distribuídos para os acionistas. Nós estimamos que cerca de 90% desse dinheiro será compartilhado entre eles, uma escolha que tem consequências, afinal exacerba as desigualdades e faz com que a fortuna dos que já são ricos aumente ainda mais”, afirma o porta-voz da Oxfam na França, Quentin Parinello. “Nosso relatório mostra que os 25 bilionários mais ricos do mundo ficaram US$ 255 bilhões mais ricos durante a crise, e considerando apenas até meados de maio.”

Entre eles, estão os CEOs do Facebook, Mark Zuckerberg, da Microsoft, Bill Gattes, e da Tesla, Elon Musk, que viu sua fortuna aumentar 274%, conforme o relatório das entidades americanas. Já o dono da Amazon, Jeff Bezos, que já é o homem mais rico do mundo, ficou 65% ainda mais afortunado durante a pandemia, beneficiado pelo crescimento mundial da plataforma em meio à quarentena.

 

Desinteresse por compartilhamento dos lucros

 

Quentin Parinello lamenta a escolha das grandes empresas, que privilegiam a remuneração dos acionistas em detrimento da promoção, dentro da companhia, de planos estratégicos a longo prazo para compartilhar melhor os lucros. “Apenas com o dinheiro extra que ganhou durante a crise, Jeff Bezos poderia distribuir um bônus de US$ 105 mil para os 875 mil funcionários da empresa – e, mesmo assim, continuaria tão rico quanto ele era antes da pandemia de coronavírus”, avalia o porta-voz da Oxfam.

Do outro lado da pirâmide, 176 milhões novos pobres podem emergir da crise sanitária, conforme alerta da ONU. As Nações Unidas afirmam que as medidas de proteção social tomadas até agora pelo mundo somam € 496 bilhões, mas permanecem insuficientes. O pior da pobreza gerada pela pandemia, adverte a ONU, ainda está por vir.

No Brasil, Fernando Burgos frisa que as consequências da pandemia atingiram em cheio as pessoas que já estavam na extrema pobreza, e muitas delas sequer conseguiram acessar o auxílio emergencial oferecido pelo governo federal. Depois, foram os trabalhadores que já tinham uma certa estabilidade profissional mas, por conta das mudanças de hábito geradas pela chegada do coronavírus, perderam trabalho e renda e passaram a engrossar a lista dos que dependem dos benefícios sociais. Por fim, num processo que ainda está em curso, a crise revela o impacto da automatização acelerada do mercado de trabalho, que corta milhares de postos, principalmente nos setores menos qualificados.

 

Doações não resolvem o problema

 

Neste contexto, o pesquisador da FGV ressalta que grandes empresas e milionários brasileiros promoveram altas doações para os mais necessitados. Entretanto, a iniciativa está longe de bastar para tornar a sociedade brasileira mais desenvolvida e equilibrada.

“A onda de solidariedade foi muito importante, mas se mostrou insuficiente. A gente não viu nenhum esforço do ponto de vista de mudanças estruturais, como aumentar a carga tributária. Nenhum esforço nem de governos, nem dessa elite, para mexer nos modelos de negócios e garantir os empregos das pessoas nesse momento”, diz Burgos.

Para o professor de administração pública, mexer na alíquota de impostos é uma urgência – o Brasil é considerado um paraíso para os ricos, com uma tabela pouco progressiva de tributação em relação à renda. O maior presente é a isenção de impostos sobre dividendos no mercado financeiro.

“Não é possível que a gente, de um lado, fique falando da necessidade de diminuir as desigualdades no Brasil e, de outro, não tribute os dividendos. No Brasil, a gente tem muitas pessoas que, se tirarem um cochilo à tarde, acordam mais ricas. Mas, uma pessoa que é motorista de aplicativo, se tira um cochilo à tarde, talvez não terá dinheiro para levar comida para casa à noite”, compara o pesquisador. “A gente não pode mais  continuar a conviver com isso.”

Segundo o ranking da ONU sobre o tema, em 2019 o Brasil era o sétimo país mais desigual do mundo e o segundo com maior concentração de renda: o 1% mais rico centraliza 28,3% de toda a riqueza do país.

 

 

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