Em meio ao aumento da produção de grãos e maior demanda nos mercados doméstico e externo, fabricantes do setor alimentício ganham mais enquanto as famílias dos brasileiros mais pobres penam para comprar itens da cesta básica
Enquanto as famílias mais pobres sofrem para botar comida na mesa diante da alta dos preços dos alimentos, empresas exportadoras e grandes produtoras ganham dinheiro com estratégias que incluem exportação, redução do número de funcionários e até incentivos do governo. Os exemplos mais citados pelos especialistas são JBS e Camil, que estão lucrando na contramão da crise provocada pela pandemia.
Levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que, no período da safra 2019-2020, foram produzidas 257,8 milhões de toneladas, sendo, a maior parte, soja, milho e algodão. Esse volume é 4,5% ou 11 milhões de toneladas superior ao da safra anterior. Em meio à pandemia de covid-19, a demanda por alimentos está aquecida no mundo e, com o dólar valorizado, a inflação dos alimentos pesa no bolso dos mais pobres. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revelam que, neste ano, o preço dos alimentos da cesta básica aumentou 6,6% e, em 12 meses, acumula alta de 12,1%.
Não à toa, a JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, teve lucro líquido recorde de R$ 3,4 bilhões, entre abril e junho deste ano, auge da pandemia do novo coronavírus. Contabilizou salto de 54,8% na rentabilidade em relação ao mesmo período do ano anterior. Já a Camil, uma das maiores no ramo de alimentos da América do Sul, especializada no beneficiamento de arroz e feijão, mais do que dobrou o lucro líquido, entre o primeiro trimestre de 2020 e o mesmo período de 2019, passando de R$ 49,8 milhões para R$ 109,5 milhões, um avanço de 120%.
Os motivos da explosão de lucros e dos resultados extraordinários são muitos. Essas companhias, desde o início do ano, vinham experimentando desempenho acima da média, lembram os analistas. “E melhorou, nos últimos dias, quando a China, que ao contrário da maioria dos países, registrou crescimento de 10% mesmo com a pandemia, comprou praticamente todo o estoque de arroz nacional. Mas, a escassez interna e a alta dos preços só aconteceram porque o governo falhou. Não tinha suficiente estoque regulador”, destaca o economista Cesar Bergo, sócio consultor da Corretora OpenInvest. Com o dólar equivalente a R$ 5,40, o produtor preferiu exportar. Ajudou, também, o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, que jogou mais de R$ 170 bilhões na economia e fez o consumo aumentar. Tudo isso, aliado ao aumento dos insumos e do petróleo que seriam repassados aos preços, contribuiu para essa conjuntura, de acordo com ele.
Eduardo Velho, economista-chefe da JF Trust, lembra que, durante o auge da pandemia, todas as grandes empresas perderam. “Agora, começam a se recuperar. Beneficiaram-se com a alta do dólar”, reforça. Ele cita os dados de companhias abertas na Bolsa de Valores de São Paulo (B3) para a comparação. As ações da JBS tiveram alta de 0,40% desde o início do mês, mas caíram 10,65%, em 2020. Os papéis da Marfrig Global Foods, uma das maiores empresas de alimentos à base de proteína animal do mundo, bombaram 61,84% somente neste ano, mas registraram perdas de 9,43% no mês até sexta-feira (12). Já a BRF (fusão de Perdigão e Sadia) teve alta de 2,6% em setembro, mas despencou, no ano, em 42,89%. “Temos que esperar mais tempo para afirmar com certeza quem perdeu e quem ganhou”, afirma.
Na análise de Pedro Paulo Silveira, economista-chefe da
Nova Futura Investimentos, não houve exatamente um oportunismo das
empresas que estão lucrando. “O primeiro momento foi ruim para todo o
mundo. E as grandes certamente repassaram seus custos aos preços e
reduziram o número de empregados. Foi um choque”, afirma. Quando aos
lucros e dividendos, Silveira ressalta que, neste ano, foram
distribuídos apenas os intermediários, porque algumas companhias, em
obediência ao estatuto, têm que repassar aos acionistas 25% dos juros
sobre capital próprio. A surpresa e a exceção foi a Vale, segundo
Silveira. A mineradora retomou o pagamento de dividendos depois das
tragédias de Brumadinho e Mariana. Registrou lucro líquido de US$ 995
milhões no segundo trimestre deste ano, revertendo o prejuízo do mesmo
período de 2019. Vai pagar R$ 2,41 em proventos por ação. Pelas contas
do analista, equivale a um rendimento de 4% — o dobro da taxa básica de
juros (Selic), que está em 2% ao ano.
Criatividade para driblar a inflação
Com a disparada dos preços dos alimentos, muita gente está se virando como pode para colocar comida à mesa e reduzir o impacto da inflação no bolso. E, nesse malabarismo em meio à crise provocada pela pandemia, o jeito é ser criativo na hora de escolher o que vai para o carrinho, optando por opções mais baratas ou mudando o cardápio, substituindo produtos.
Ávilla Cristina Dias dos Santos, de 18 anos, é atendente de caixa em um supermercado. Por trabalhar no varejo, ela reconhece que é impossível não notar a diferença dos preços. “Dá para perceber a inflação no dia a dia. E pensar que grande parte da população não tem condições de comprar o alimento básico devido a essa variação de preços, gera preocupações em várias áreas. Tenho tentado diminuir o consumo de arroz, mas é um alimento essencial na vida de qualquer brasileiro”, revela.
Para ela, decidir sobre a substituição de alimentos é algo que varia de pessoa para pessoa, mas acredita que o governo deveria intervir para tentar conter a inflação de produtos que estão sendo exportados, reduzindo os estoques domésticos, como aconteceu com o arroz. “Considero ruim a atuação do governo, pois as exportações deveriam ser controladas. Não é justo retirarem algo nosso, chegando a ponto de prejudicar os brasileiros”, desabafa.
Já o consultor de vendas Lucas Moreira, 22, mora com o pai, o microempresário Francisco Chagas de Oliveira, 45, em Cidade Ocidental (GO). Francisco é chef de cozinha e, com o isolamento social, os eventos diminuíram ou foram cancelados e ele e o filho passsaram a vender marmitas para sustentar a família. “Agora, estamos dependendo do dinheiro do auxílio emergencial ou de quando vendemos marmita”, conta Lucas. Ele diz que começou a perceber a alta nos preços há 15 dias, mas de forma generalizada. “Um absurdo, na verdade não só o arroz está caro. O quilo do tomate, por exemplo, passou de R$ 1 para R$ 7”, reclama o consultor. Buscando minimizar o impacto da inflação no bolso, Lucas reformulou as compras e o cardápio em casa. “Precisei diminuir as porções de arroz e substituir por outra coisa, como purê e macarrão”, afirma.
Paulo Melo, CEO da Pricebook e Ph.D em pesquisas voltadas para Inovação pelo WIT, na Irlanda, orienta que é importante o acompanhamento do histórico de preços dos produtos de consumo recorrente. “É uma estratégia importante na hora de tomar a decisão de compra e, ainda, não se deixar levar pelos anúncios atrativos de promoções, que não levam em consideração a variação de preço ao longo do tempo”, avalia.
Para o especialista, a redução do valor do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300, como prevê o governo, não afetará a demanda por alimentos, porque ela deverá continuar em alta. “O efeito dessa redução do benefício não afetará a demanda de alimentos na mesma proporção. Esta, por sua vez, deverá permanecer em patamares mais altos do que o período pré-confinamento. Talvez, outros setores que vislumbraram aumentos de vendas expressivos, como os setores de móveis, de eletrodomésticos e até de materiais de construção, deverão, sim, ter suas vendas reduzidas por essa possível queda no valor do auxílio emergencial”, conclui.
* Estagiários sob a supervisão de Rosana Hessel
Acionistas mais ricos
Estudo recente divulgado pela Oxfam Brasil, organização que atua na busca de solução para as desigualdades, aponta que o lucro de grandes empresas disparou em meio à pandemia de coronavírus enquanto os mais pobres pagam o preço do aumento do desemprego e o fechamento de pequenos negócios.
O relatório Poder, Lucros e Pandemia destaca as 32 empresas mais rentáveis do mundo. Elas conseguiram US$ 109 bilhões (mais de R$ 577 bilhões) a mais em lucros durante a pandemia de covid-19 em 2020 do que a média nos quatro anos anteriores (2016-2019). Isso aconteceu porque “não reduziram riscos nas cadeias de fornecimento e usaram toda sua influência política para moldar as ações tomadas pelos governos para conter a crise”, aponta a pesquisa. “Enquanto isso, a crise econômica global provocada pela pandemia deixa meio bilhão de pessoas no limiar da pobreza. Quatrocentos milhões de empregos não existem mais e 430 milhões de pequenos negócios estão sob risco de falência”, reforça a Oxfam Brasil.
Porém, mesmo diante desse quadro, os acionistas ficaram protegidos. As 100 empresas campeãs do mercado de ações acrescentaram mais de US$ 3 trilhões ao seu valor de mercado desde o início da pandemia, em março deste ano. Como resultado, os 25 maiores bilionários do mundo aumentaram suas riquezas em quantidades assombrosas. O relatório destaca que, em todo mundo, a distribuição de dividendos aumentou 3,6%, atingindo um pico sem precedentes de US$ 275 bilhões no primeiro trimestre de 2020.
Segundo Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da Oxfam Brasil, os efeitos da pandemia também foram desiguais no Brasil. “As empresas aqui tiveram resultados mais modestos, mas o modelo estrutural na direção dos negócios, para beneficiar uns poucos, foi o mesmo. A nossa legislação não tributa os dividendos. Ou seja, os mais ricos não contribuem sobre essa parte para o erário. Basta observar que apenas cerca de 900 mil pessoas aplicam na Bolsa e o Brasil tem mais de 210 milhões de habitantes”, exemplifica Ferroni. Além da chamada solidariedade zero, destaca, as grandes ainda pressionam por apoio governamental, empréstimos a juros baixos e interferem nas normas de regulação.
“Enquanto a maioria da população perdeu emprego e renda
(país tem, hoje, cerca de 13 milhões de desempregados e 40 milhões de
trabalhadores informais) e mais de 600 mil micro, pequenas e médias
empresas já fecharam as portas, os 42 bilionários brasileiros tiveram
sua riqueza aumentada em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) durante
a pandemia”, destaca. O patrimônio líquido desses super-ricos aumentou
de US$ 123,1 bilhões (mais de R$ 650 bilhões), em março, para US$ 157,1
bilhões (mais de R$ 832 bilhões), em julho. (VB)
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