domingo, 13 de setembro de 2020

Empresas de alimentos lucram como nunca

Em meio ao aumento da produção de grãos e maior demanda nos mercados doméstico e externo, fabricantes do setor alimentício ganham mais enquanto as famílias dos brasileiros mais pobres penam para comprar itens da cesta básica
 VERA BATISTA   

(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - 21/3/17)

Enquanto as famílias mais pobres sofrem para botar comida na mesa diante da alta dos preços dos alimentos, empresas exportadoras e grandes produtoras ganham dinheiro com estratégias que incluem exportação, redução do número de funcionários e até incentivos do governo. Os exemplos mais citados pelos especialistas são JBS e Camil, que estão lucrando na contramão da crise provocada pela pandemia.

Levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que, no período da safra 2019-2020, foram produzidas 257,8 milhões de toneladas, sendo, a maior parte, soja, milho e algodão. Esse volume é 4,5% ou 11 milhões de toneladas superior ao da safra anterior. Em meio à pandemia de covid-19, a demanda por alimentos está aquecida no mundo e, com o dólar valorizado, a inflação dos alimentos pesa no bolso dos mais pobres. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revelam que, neste ano, o preço dos alimentos da cesta básica aumentou 6,6% e, em 12 meses, acumula alta de 12,1%.

Não à toa, a JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, teve lucro líquido recorde de R$ 3,4 bilhões, entre abril e junho deste ano, auge da pandemia do novo coronavírus. Contabilizou salto de 54,8% na rentabilidade em relação ao mesmo período do ano anterior. Já a Camil, uma das maiores no ramo de alimentos da América do Sul, especializada no beneficiamento de arroz e feijão, mais do que dobrou o lucro líquido, entre o primeiro trimestre de 2020 e o mesmo período de 2019, passando de R$ 49,8 milhões para R$ 109,5 milhões, um avanço de 120%.

Os motivos da explosão de lucros e dos resultados extraordinários são muitos. Essas companhias, desde o início do ano, vinham experimentando desempenho acima da média, lembram os analistas. “E melhorou, nos últimos dias, quando a China, que ao contrário da maioria dos países, registrou crescimento de 10% mesmo com a pandemia, comprou praticamente todo o estoque de arroz nacional. Mas, a escassez interna e a alta dos preços só aconteceram porque o governo falhou. Não tinha suficiente estoque regulador”, destaca o economista Cesar Bergo, sócio consultor da Corretora OpenInvest. Com o dólar equivalente a R$ 5,40, o produtor preferiu exportar. Ajudou, também, o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, que jogou mais de R$ 170 bilhões na economia e fez o consumo aumentar. Tudo isso, aliado ao aumento dos insumos e do petróleo que seriam repassados aos preços, contribuiu para essa conjuntura, de acordo com ele.

Eduardo Velho, economista-chefe da JF Trust, lembra que, durante o auge da pandemia, todas as grandes empresas perderam. “Agora, começam a se recuperar. Beneficiaram-se com a alta do dólar”, reforça. Ele cita os dados de companhias abertas na Bolsa de Valores de São Paulo (B3) para a comparação. As ações da JBS tiveram alta de 0,40% desde o início do mês, mas caíram 10,65%, em 2020. Os papéis da Marfrig Global Foods, uma das maiores empresas de alimentos à base de proteína animal do mundo, bombaram 61,84% somente neste ano, mas registraram perdas de 9,43% no mês até sexta-feira (12). Já a BRF (fusão de Perdigão e Sadia) teve alta de 2,6% em setembro, mas despencou, no ano, em 42,89%. “Temos que esperar mais tempo para afirmar com certeza quem perdeu e quem ganhou”, afirma.

Na análise de Pedro Paulo Silveira, economista-chefe da Nova Futura Investimentos, não houve exatamente um oportunismo das empresas que estão lucrando. “O primeiro momento foi ruim para todo o mundo. E as grandes certamente repassaram seus custos aos preços e reduziram o número de empregados. Foi um choque”, afirma. Quando aos lucros e dividendos, Silveira ressalta que, neste ano, foram distribuídos apenas os intermediários, porque algumas companhias, em obediência ao estatuto, têm que repassar aos acionistas 25% dos juros sobre capital próprio. A surpresa e a exceção foi a Vale, segundo Silveira. A mineradora retomou o pagamento de dividendos depois das tragédias de Brumadinho e Mariana. Registrou lucro líquido de US$ 995 milhões no segundo trimestre deste ano, revertendo o prejuízo do mesmo período de 2019. Vai pagar R$ 2,41 em proventos por ação. Pelas contas do analista, equivale a um rendimento de 4% — o dobro da taxa básica de juros (Selic), que está em 2% ao ano.

Criatividade para driblar a inflação


Com a disparada dos preços dos alimentos, muita gente está se virando como pode para colocar comida à mesa e reduzir o impacto da inflação no bolso. E, nesse malabarismo em meio à crise provocada pela pandemia, o jeito é ser criativo na hora de escolher o que vai para o carrinho, optando por opções mais baratas ou mudando o cardápio, substituindo produtos.

Ávilla Cristina Dias dos Santos, de 18 anos, é atendente de caixa em um supermercado. Por trabalhar no varejo, ela reconhece que é impossível não notar a diferença dos preços. “Dá para perceber a inflação no dia a dia. E pensar que grande parte da população não tem condições de comprar o alimento básico devido a essa variação de preços, gera preocupações em várias áreas. Tenho tentado diminuir o consumo de arroz, mas é um alimento essencial na vida de qualquer brasileiro”, revela.

Para ela, decidir sobre a substituição de alimentos é algo que varia de pessoa para pessoa, mas acredita que o governo deveria intervir para tentar conter a inflação de produtos que estão sendo exportados, reduzindo os estoques domésticos, como aconteceu com o arroz. “Considero ruim a atuação do governo, pois as exportações deveriam ser controladas. Não é justo retirarem algo nosso, chegando a ponto de prejudicar os brasileiros”, desabafa.

Já o consultor de vendas Lucas Moreira, 22, mora com o pai, o microempresário Francisco Chagas de Oliveira, 45, em Cidade Ocidental (GO). Francisco é chef de cozinha e, com o isolamento social, os eventos diminuíram ou foram cancelados e ele e o filho passsaram a vender marmitas para sustentar a família. “Agora, estamos dependendo do dinheiro do auxílio emergencial ou de quando vendemos marmita”, conta Lucas. Ele diz que começou a perceber a alta nos preços há 15 dias, mas de forma generalizada. “Um absurdo, na verdade não só o arroz está caro. O quilo do tomate, por exemplo, passou de R$ 1 para R$ 7”, reclama o consultor. Buscando minimizar o impacto da inflação no bolso, Lucas reformulou as compras e o cardápio em casa. “Precisei diminuir as porções de arroz e substituir por outra coisa, como purê e macarrão”, afirma.

Paulo Melo, CEO da Pricebook e Ph.D em pesquisas voltadas para Inovação pelo WIT, na Irlanda, orienta que é importante o acompanhamento do histórico de preços dos produtos de consumo recorrente. “É uma estratégia importante na hora de tomar a decisão de compra e, ainda, não se deixar levar pelos anúncios atrativos de promoções, que não levam em consideração a variação de preço ao longo do tempo”, avalia.

Para o especialista, a redução do valor do auxílio emergencial de R$ 600 para R$ 300, como prevê o governo, não afetará a demanda por alimentos, porque ela deverá continuar em alta. “O efeito dessa redução do benefício não afetará a demanda de alimentos na mesma proporção. Esta, por sua vez, deverá permanecer em patamares mais altos do que o período pré-confinamento. Talvez, outros setores que vislumbraram aumentos de vendas expressivos, como os setores de móveis, de eletrodomésticos e até de materiais de construção, deverão, sim, ter suas vendas reduzidas por essa possível queda no valor do auxílio emergencial”, conclui.

* Estagiários sob a supervisão de Rosana Hessel

Acionistas mais ricos

Estudo recente divulgado pela Oxfam Brasil, organização que atua na busca de solução para as desigualdades, aponta que o lucro de grandes empresas disparou em meio à pandemia de coronavírus enquanto os mais pobres pagam o preço do aumento do desemprego e o fechamento de pequenos negócios.

O relatório Poder, Lucros e Pandemia destaca as 32 empresas mais rentáveis do mundo. Elas conseguiram US$ 109 bilhões (mais de R$ 577 bilhões) a mais em lucros durante a pandemia de covid-19 em 2020 do que a média nos quatro anos anteriores (2016-2019). Isso aconteceu porque “não reduziram riscos nas cadeias de fornecimento e usaram toda sua influência política para moldar as ações tomadas pelos governos para conter a crise”, aponta a pesquisa. “Enquanto isso, a crise econômica global provocada pela pandemia deixa meio bilhão de pessoas no limiar da pobreza. Quatrocentos milhões de empregos não existem mais e 430 milhões de pequenos negócios estão sob risco de falência”, reforça a Oxfam Brasil.

Porém, mesmo diante desse quadro, os acionistas ficaram protegidos. As 100 empresas campeãs do mercado de ações acrescentaram mais de US$ 3 trilhões ao seu valor de mercado desde o início da pandemia, em março deste ano. Como resultado, os 25 maiores bilionários do mundo aumentaram suas riquezas em quantidades assombrosas. O relatório destaca que, em todo mundo, a distribuição de dividendos aumentou 3,6%, atingindo um pico sem precedentes de US$ 275 bilhões no primeiro trimestre de 2020.

Segundo Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da Oxfam Brasil, os efeitos da pandemia também foram desiguais no Brasil. “As empresas aqui tiveram resultados mais modestos, mas o modelo estrutural na direção dos negócios, para beneficiar uns poucos, foi o mesmo. A nossa legislação não tributa os dividendos. Ou seja, os mais ricos não contribuem sobre essa parte para o erário. Basta observar que apenas cerca de 900 mil pessoas aplicam na Bolsa e o Brasil tem mais de 210 milhões de habitantes”, exemplifica Ferroni. Além da chamada solidariedade zero, destaca, as grandes ainda pressionam por apoio governamental, empréstimos a juros baixos e interferem nas normas de regulação.

“Enquanto a maioria da população perdeu emprego e renda (país tem, hoje, cerca de 13 milhões de desempregados e 40 milhões de trabalhadores informais) e mais de 600 mil micro, pequenas e médias empresas já fecharam as portas, os 42 bilionários brasileiros tiveram sua riqueza aumentada em US$ 34 bilhões (mais de R$ 180 bilhões) durante a pandemia”, destaca. O patrimônio líquido desses super-ricos aumentou de US$ 123,1 bilhões (mais de R$ 650 bilhões), em março, para US$ 157,1 bilhões (mais de R$ 832 bilhões), em julho. (VB)


 

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