quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Cientistas em fuga

 

Cientistas em fuga

Forçados a deixar o país por oportunidades, eles refletem sobre a carreira no exterior e o futuro do Brasil

Janaina Garcia Colaboração para Ecoa, de São Paulo Getty Images/iStockphoto 
 
O paulista Gustavo é doutor: lida com biologia molecular e bioquímica, área pela qual estuda a relação entre proteínas e processos celulares relacionados ao envelhecimento. A mineira Luísa é doutoranda: estuda os relógios que regulam o funcionamento de algas azuis, um dos organismos mais antigos do planeta Terra. A doutora gaúcha Gabriela pesquisa física teórica de partículas e se engaja pela participação de mais mulheres em pesquisa científica. A também gaúcha Andréa fez o doutorado em biologia ao estudar evolução e hoje faz o pós-doutorado sobre as características de rios capazes de promover padrões de adaptação local em populações de peixes.


Nenhum desses quatro pesquisadores se conhece. Em algum momento da vida, no entanto, cada um deles decidiu que só conseguiria levar adiante o sonho de se tornar cientista em países com melhores condições de estrutura para a pesquisa - coisa que, no Brasil, parece ser elemento cada vez mais raro, muito embora a atual pandemia de Covid-19 venha revelando a necessidade de um quadro radicalmente diferente disso.

Gustavo, Luísa, Gabriela e Andréa são alguns dos "cérebros" que trocaram o conforto da língua-mãe e das relações afetivas construídas ao longo da vida pela chance de trabalharem com uma visão de pesquisa fincada em raízes mais profundas e em solo mais fértil. Ou, em outras palavras, em países para os quais o desenvolvimento científico é uma das chaves para a soberania nacional - condição em que, portanto, é encarado como "investimento", e não, "gasto".

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Ação mapeia e divulga cientistas que deixaram o Brasil

Quantos pesquisadores e pesquisadoras brasileiros estão hoje fora do Brasil em busca de condições menos adversas de trabalho?

Desde junho passado, esses profissionais vêm sendo mapeados nas redes sociais por uma ação anônima não por acaso batizada de "Diáspora Científica do Brasil" - especialmente porque "diáspora" define o deslocamento, em geral forçado ou incentivado, de um grande número de pessoas de um local determinado em busca a destinos que proveja a elas acolhida.

O mapeamento ganhou força por meio de um perfil homônimo no Twitter no qual o autor lista cientistas brasileiros pelo nome, local, instituição a que estão vinculados e áreas de estudo.

Até ontem, o perfil contabilizava 704 brasileiros que atuam com pesquisa em 34 países - quase metade, apenas em universidades dos Estados Unidos.

"A 'fuga de cérebros' não precisa ser algo necessariamente ruim, desde que se saiba aproveitar essa valiosa rede formada. Quem mais ganha ou perde é algo que está sempre em disputa", diz a pessoa por trás do perfil preferiu manter-se no anonimato, em receio a retaliações. Em entrevista por e-mail, disse não ser cientista, mas admitiu interesse na vida acadêmica.

"Pesquisando alguns programas de mestrado e doutorado, por curiosidade, vi que seria importante, para entender melhor as pesquisas, ter contato com outros brasileiros que já estivessem ali, mas percebi que essa informação não é encontrada tão facilmente. Outras pessoas (com interesse ainda mais necessário que o meu) podem ter essa mesma dificuldade -o mapa seria então uma forma de ajudar, se possível, a facilitar esses encontros, seja de quem está no Brasil com suas contrapartes brasileiras no exterior que estejam pesquisando assuntos correlatos, para colaboração; seja dos brasileiros em uma mesma região, para que se congreguem e possam atuar conjuntamente como grupo", explicou.

A iniciativa não segmenta áreas de estudo, raça, gênero ou localização geográfica, por exemplo, embora o autor saliente que busca um equilíbrio entre esses recortes antes de publicar as informações.

"Não há ainda uma amostragem suficiente para detectar uma característica recorrente, mas, ao menos por ora, vejo que há uma grande concentração nos EUA e no Reino Unido, e pouca gente na América Latina -- embora fosse de se esperar que, pela proximidade, houvesse mais", avalia.

A exposição dos perfilados não busca apenas facilitar eventuais conexões e cooperações com/entre eles, segue o autor do perfil, mas "uma forma de reconhecimento ao trabalho desses cientistas e de divulgação".

Arquivo Digital da Biblioteca Nacional Arquivo Digital da Biblioteca Nacional

Mundo viveu diásporas de judeus e africanos

O termo "diáspora" é usado de maneira metafórica no mapeamento dos cientistas brasileiros espalhados pelo mundo. A expressão remete à dispersão do povo judeu no mundo antigo, especialmente após o exílio babilônico, e na era moderna, com as perseguições na Europa que resultaram em novas dispersões, já no século 20.

As Américas, por sua vez, foram o principal reduto da diáspora africana - caracteriza pela imigração forçada de africanos durante o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. A estimativa é que o tráfico tenha transportado pelo menos 11 milhões de africanos às Américas, pouco menos de 5 milhões, só para o Brasil.

Para o autor do mapeamento, um caso marcantes da "diáspora científica brasileira" é o da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que, em 2016, decidiu ir embora para os EUA permanentemente. Ele citou um artigo da cientista na revista "Piauí" de maio daquele ano. No texto, a carioca Suzana explicava o que a havia motivado a partir.

"Aqui sinto que já não tenho mais como gerar nem cultivar coisa alguma. A escolha inteligente que me resta a fazer é ir embora para abrir novas portas e possibilidades futuras. Na [Universidade] Vanderbilt poderei fazer ciência abordando as questões que importam, e não apenas as que cabem no orçamento; dedicar meu tempo à pesquisa, e não trabalhando como minha própria contadora ou eletricista; receber colaboradores e alunos brasileiros ou de outras nacionalidades, sem me preocupar se sua bolsa de estudos será paga ou desviada para cobrir rombos fiscais do governo. Quem sabe de lá eu consiga fazer mais pela ciência brasileira do que insistindo em ficar no meu próprio país", concluiu, na ocasião.

Para o autor do mapa iniciado este ano, o caso da pesquisadora carioca foi especialmente tocante: ela era uma referência dentro e fora do Brasil, mas sem condições para fazer jus à deferência a seu nome dentro do próprio país.

"Imagino que vários tenham histórias parecidas; é uma descrição do que poderia ter sido e não foi para a ciência brasileira, após um período promissor em que o financiamento à ciência teve seu auge, até a primeira metade dos anos 2010, e o que ocorreu quando começaram os cortes orçamentários e perda de prioridade do tema, que só se agravou desde então", lamentou.

Divulgação Divulgação

Nicolelis: repercussão de corte de verbas é mundial

Apesar da diáspora que dá nome ao perfil, um pesquisador brasileiro a usou em tom quase profético, ano passado, ao comentar o resultado prático de sequenciais cortes de bolsas a pesquisadores brasileiros face o contexto do atual governo.

"Não consigo lembrar, nos últimos 50 anos, de um país que ceifou sua base científica de forma rápida, dramática e sem justificativa lógica. Porque a economia que está sendo feita é nada comparado com o impacto que isso vai trazer para o futuro do país. A economia dessas bolsas não vai resolver nenhum problema de caixa, há outras áreas que poderiam ser usadas para isso", avaliou o neurocientista Miguel Nicolelis (foto acima), 59, um dos principais nomes da ciência brasileira em todo o mundo, em entrevista ao blog do jornalista Leonardo Sakamoto.

"A comunidade científica internacional sabe que o Brasil estava entrando para o clube das maiores potências científicas do mundo. Cresci cientificamente no Brasil, nos anos 1980, quando não havia nada para fazer ciência, apenas muita criatividade. Essa foi uma das razões que me levaram a participar da diáspora científica. Nós agora vamos ter uma ainda maior por causa de tudo isso. O cientista que quer perseguir a sua carreira sabe que o mercado científico é global. Vai procurar, portanto, outro lugar no mundo que o queira, não há dúvida. A repercussão desse retrocesso é mundial."

Considerado pela revista "Scientific American" como um dos 20 cientistas mais influentes do planeta, Nicolelis lidera uma equipe de pesquisadores na Universidade Duke, nos Estados Unidos, onde está desde o começo dos anos 1990. Este ano, deixou de lado as pesquisas em neurofisiologia para se dedicar integralmente ao combate do coronavírus - com Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, assumiu em março a coordenação do comitê científico do consórcio de governadores do Nordeste.

Jovens pesquisadores contam o porquê de suas diásporas

Arquivo pessoal

"Só amor não é suficiente se não tem financiamento"

Luísa Jabbur

Outra brasileira trilha o caminho na pesquisa na mesma universidade para onde foi a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, no estado americano do Tennessee: a mineira de Montes Claros Luísa Jabbur, 25, está desde 2017 na instituição.

Formada em biologia pela USP (Universidade de São Paulo), ainda na graduação, Luísa passou um ano estudando e trabalhando em um laboratório da Universidade de Michigan pelo programa Ciências Sem Fronteiras, criado no governo Dilma Rousseff (PT), em 2011, e extinto na gestão Michel Temer (MDB), em 2017. Pelo programa, estudantes brasileiros de graduação e pós-graduação recebiam bolsa de intercâmbio para um estágio no exterior — a finalidade deveria ser a de "manter contato com sistemas educacionais competitivos em relação à tecnologia e inovação", segundo o governo, além de "atrair pesquisadores do exterior que queiram se fixar no Brasil ou estabelecer parcerias com os pesquisadores brasileiros nas áreas prioritárias definidas no programa".

"O Ciências ainda dava a oportunidade de trabalhar, no verão, em um laboratório que nos aceitasse; meu orientador lá acabou me convidando para eu voltar como aluna de doutorado", conta. "Talvez tenha faltado regulação e fiscalização, mas a ideia do programa, em si, foi muito boa, ele abriu muitas oportunidades a quem as aproveitou", define.

Mesmo se definindo como "talvez de uma das últimas levas de estudantes que veio a outro país por opção", a jovem reconhece que o amor pela ciência, no Brasil, não estava sendo suficiente. "Eu achava que, amando o que eu fazia, as coisas eventualmente iriam dar certo, mas agora vejo que só o amor não é suficiente se não tem financiamento para esse trabalho", constata.

No doutorado que cursa na cidade de Nashville, ela estuda os relógios circadianos - que regulam ritmos importantes no organismo, como sono e temperatura - na pesquisa que faz com algas azuis. "Essas algas são o organismo mais velho que a gente conhece, e mesmo assim elas têm esses relógios; agem evolutivamente", anima-se.

Megan Mendenhall/Duke University Communications

"Nos EUA, querem que você seja bem-sucedido e vire uma referência"

Gustavo M. Silva

"Nascido e cresci na zona norte de São Paulo, no Parque Peruche. Apesar de ninguém na minha família ter tido uma carreira acadêmica, muito menos na área científica, minha mãe sacrificou muito da sua vida para que meu irmão e eu pudéssemos focar nos estudos e termos a liberdade de escolhermos os nossos caminhos — sou infinitamente grato a tudo que ela fez por nós".

O desabafo é do biólogo Gustavo Monteiro Silva, doutor em genética pela USP, pós-doutor pelo Centro de Genômica e Biologia de Sistemas da Universidade de Nova York, e atualmente professor e pesquisador na Universidade Duke, na Carolina do Norte, onde comanda um laboratório de pesquisas biológica e bioquímica.

Ele relata que, após o término do doutorado, queria a chance de fazer ciência "em uma universidade de ponta na qual os recursos e burocracias não seriam o fator limitante, e sim a minha capacidade criativa e a minha dedicação".

"Quando as instituições o contratam como professor-pesquisador, aqui nos EUA, querem que você seja bem-sucedido e vire uma referência na área. As universidades então investem para isso. Por exemplo: você recebe um financiamento inicial para montar seu laboratório, recebe espaço adequado, não leciona no primeiro ano para ter tempo de se estabelecer e é protegido de funções administrativas excessivas; os pesquisadores mais experientes têm a responsabilidade de apoiar os mais novos, e ainda muito do nosso trabalho é destinado ao desenvolvimento profissional e ao sucesso dos alunos", observa.

A comparação com a realidade brasileira é pouco animadora, avalia.

"Conheço diversas histórias de colegas no Brasil que precisam brigar para usar laboratórios ociosos, que são sobrecarregados desde o primeiro dia com aulas e serviços administrativos e não conseguem desenvolver suas pesquisas. Sem contar os inúmeros casos nos quais os alunos ficam completamente desamparados sem uma mentoria adequada e sem perspectivas para o futuro. É preciso reimaginar e reconstruir o ambiente acadêmico para que seja acolhedor e enriquecedor para todos", defende Silva.

Após falar a Ecoa, o biólogo paulista recebeu uma notícia que o deixou animado: recebeu um financiamento do "Maximizing Investigators' Research Award" de aproximadamente US$ 1,8 milhões (R$ 9,55 mi) concedido pelo NIH (National Institutes of Health), o Instituto Nacional de Saúde dos EUA, para conduzir as pesquisas pelos próximos cinco anos.

Arquivo pessoal

"Estava muito desiludida, estressada com o cenário"

Andrea Thomaz

Graduada e mestre em biologia pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e doutora pela Universidade de Michigan, a pesquisadora gaúcha Andréa Thomaz, 35, fazia o pós-doc na UBC British Columbia, em Vancouver, no Canadá, quando foi obrigada a mudar os rumos de uma viagem a trabalho em função da pandemia de Covid-19.

Ela havia viajado em março passado por um trabalho de campo em Bogotá, na Colômbia, para onde tinha planos de se mudar, finalizado o pós-doc - o namorado, professor na mesma universidade, é colombiano. A quarentena agilizou o processo de mudança ao mantê-la 'presa' no país sul-americano.

"Não tinha voo internacional, tentei voltar em um voo de repatriação, mas, como como não sou cidadã canadense, não deu. No fim, meus amigos encaixotaram minhas coisas em Vancouver e conseguiram me mandar em junho", diz.

Andréa é de Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Saiu do Brasil pela primeira vez para um estágio na Universidade George Washington, na capital dos EUA, porque "estava muito desiludida, estressada com o cenário". O ano era 2010. Viajou, aprendeu e se viu empolgada com as possibilidades de trabalhar com pesquisa sob remuneração. Dali, emendou para o pós-doc canadense.

"As diferenças de metodologia e de laboratórios são muito grandes nos EUA e no Canadá, em relação ao Brasil. Acho muito positivo que, nesses países, a gente possa ter um contrato de 20h semanais para a prática didática - ainda que o background do estudante brasileiro sobre biodiversidade, como na minha área, seja muito maior", analisa.

Andréa estuda peixes e Mata Atlântica. No pós-doc, analisa como características de rios podem promover padrões de adaptação local em populações de peixes.

"A gente dedica muito tempo de vida a entender os processos e ter uma ideia mais correta sobre tata coisa — biodiversidade, conservação, pandemia... Imagina o que poderia ser feito no Brasil se o cientista fosse ouvido? Se com um pouco de pequenas conquistas já houve o sequenciamento do genoma do coronavírus, e fazendo isso no meio de uma pandemia, imagine isso fora de uma pandemia?"

Arquivo pessoal

"Minha faculdade não tinha dinheiro para viajar a congressos estaduais"

Gabriela Bailas

Atualmente na pesquisa sobre física de altas energias pelo High Energy Accelerator Research Organization (KEK), em Tsukuba, no Japão, a gaúcha Gabriela Bailas, 29, fez graduação e mestrado em seu Estado natal - respectivamente, na Furg (Universidade Federal do Rio Grande) e na UFPEL (Universidade Federal de Pelotas).

Pela graduação, participou do Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), promovido pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculada ao MEC), dentro do qual cursou dois anos de Física na Universidade de Coimbra, em Portugal.

Em 2015, partiu para um doutorado em Clermont-Ferrand, na França, com uma bolsa oferecia pelo CNRS, o maior órgão público francês de pesquisa científica. Em 2018, conseguiu uma vaga de pós-doc pela entidade japonesa, onde segue desde então.

No caso de Gabriela, a opção pela pós-graduação fora do país acabou servindo também como desvio de São Paulo, cidade onde havia a opção em física teórica de partículas, área de estudos da jovem, mas "grande e cara" na avaliação da estudante de Bagé, cidade com pouco mais de 120 mil habitantes - diante de quase 13 milhões da capital paulista.

"A Europa ainda facilita muito para se viajar a diferentes países e ter acesso a diferentes oportunidades de congresso, por exemplo. A cidade onde moro, no Japão, tem menos de 200 mil habitantes, mais de 200 centros de pesquisa e é muito internacional, com gente de todo o mundo - tanto que praticamente só falo inglês aqui", diz.

A jovem conta que a saída do Brasil também foi impactada pela forma como a pesquisa é tratada.

"No meu mestrado, minha faculdade não tinha dinheiro para a gente viajar a congressos em outros Estados; não tinha como imprimir nada na universidade, era uma situação muito precária. No Japão, se você precisa de algo na pesquisa, eles pedem apenas para mandar a conta, pois confiam que aquilo é importante", compara. "Eu sinto muito, porque o Brasil tinha tudo para ser um país com a ciência muito desenvolvida - temos pesquisadores de ponta, mas não temos dinheiro."

Além das pesquisas em física teórica, Gabriela se dedica também às questões de gênero no universo da ciência, participa de lives nas redes sociais com mulheres físicas brasileiras em suas próprias diásporas, e ainda faz o que chama de "desmistificação científica" em um canal no YouTube com mais de 150 mil inscritos.

"Precisamos de mais gente fazendo divulgação científica, e é importante que os nossos cientistas, especialmente as mulheres cientistas, saibam que isso é possível", define, sobre o conteúdo do trabalho como influenciadora digital.

Como o brasileiro é visto pelos anfitriões estrangeiros?

Criativos, dedicados e com muita gana de trabalho.

Se no Brasil o atual cenário atual de investimentos públicos coloca o pesquisador quase como um pária, em outros países, esses são predicados comuns por parte de professores e coordenadores que lidam com os brasileiros que migraram em busca do sonho científico.

Ao menos, é essa a percepção relatada pelos cientistas brasileiros que conversaram com Ecoa para esta reportagem. Para eles, de um modo geral, o pesquisador do Brasil é tido por seus anfitriões acadêmicos como um profissional criativo, uma vez habituado a criar em condições adversas.

"Eles adoram o brasileiro, porque a gente tem muita gana de trabalho, é interessado, e, algo que notei quando cheguei já para o doutorado: a gente tem uma experiência de vida mais ativa, em algumas áreas do conhecimento, do que o estrangeiro - afinal, no meu caso, o Brasil é o melhor lugar para trabalhar biologia no mundo; é o mais risco e diverso", define a bióloga Andréa Thomaz, que fez pesquisa nos Estados Unidos e no Canadá, e, desde março, vive na Colômbia.

De Nashville, no estado americano do Tennessee, a doutoranda em biologia Luísa Jabbur reforça: "Biólogo brasileiro costuma ter uma perspectiva um pouco distinta, porque a gente é cercado de tanta biodiversidade no Brasil que meio que acostuma a ter uma visão um pouco menos centrada em humanos e mais centrada em diversidade", destaca.

Ela, própria, já ouviu sobre a criatividade vista no compatriota - e, no caso, em si própria. "A falta de recursos força as pessoas a serem criativas. E isso aqui acaba sendo visto", destaca.

Uma das brasileiras ilustres no prédio em que Luísa faz o doutorado é a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que, embora de departamento diferente do da jovem, trabalha um andar abaixo e é amiga do orientador da bióloga.

"De fato, quando ela [Suzana] veio dar uma palestra para nosso grupo, mesmo o meu orientador destacou a criatividade da forma dela de pensar", exemplifica.

É como conseguir um patrocínio quando já se é campeão olímpico; é importante, mas precisamos de apoio para desenvolver os jovens talentos.

Gustavo Monteiro Silva, sobre o fomento à ciência

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"Receptividade depende também da sua raça e gênero"

Para o professor Gustavo Monteiro Silva, em uma perspectiva local, "os chefes costumam gostar de cientistas brasileiros porque são dedicados, trabalham pesado e são inventivos com os recursos disponíveis", analisa. Por outro lado, ele ressalva ver algumas nuances distintas quando a perspectiva de análise é a geral.

"A receptividade depende da sua origem, mas também da sua raça, gênero, e de como é percebido socialmente", explica o paulistano, que disse já ter se sentido "invisível" no ambiente acadêmico americano - algo que ele já havia experimentado antes, porém, na universidade brasileira.

"Durante minha passagem pela USP não existiu nenhum mentor que pudesse me aconselhar sobre os desafios de ser um jovem negro no ambiente acadêmico científico. Isso só aconteceu quando conheci um pesquisador negro americano que visitava o Brasil, Dr. Jamaine Davis, que me aconselhou muito além da ciência e realmente mudou o rumo da minha carreira. Por isso é tão importante que tenhamos modelos inspiradores que se pareçam com a gente e que tenham vivências que empatizem com a nossa", explica.

O trabalho de Gustavo voltado para diversidade e inclusão rendeu a ele citação em uma lista de 100 cientistas negros inspiradores dos Estados Unidos organizada pela Cell Press, especializada em publicações científicas.

Ele defende o acesso e oportunidade para que mais jovens possam ver um futuro na ciência. "A luta é para que essa discussão se converta em ações e politicas públicas para que a sociedade possa finalmente avançar de forma mais igualitária e que não somente uma camada da população continue se beneficiando dos recursos e oportunidades disponíveis. E também para que possamos contar com a contribuição e com o talento de todos que estiverem interessados e determinados em seguir essa carreira", diz.

Tanto no Brasil quanto nos EUA, a demografia da cidade, do estado ou do país jamais se reflete nas universidades, principalmente nas áreas de ciências. Estes são ambientes altamente homogêneos mas finalmente estamos vendo uma movimentação antiracista e por mais equidade e justiça social em todas as esferas do saber.

Gustavo Monteiro Silva, sobre a questão racial dentro da ciência

Perdas e ganhos: o que pesa para estes jovens pesquisadores?

A imersão em outra cultura, a diversidade de experiências decorrente desse processo e, finalmente, a tão almejada chance de se viver de/para a pesquisa são algumas das principais vantagens elencadas pelos brasileiros que resolveram se distanciar alguns milhares de quilômetros e seguir a própria diáspora científica mundo afora.

É também a distância, no entanto, o que geralmente lembra esses brasileiros pelo mundo que a travessia deles não é feita só de ganhos.

"Profissionalmente, me tornei um cientista muito melhor, interajo com os melhores cientistas do mundo, ao mesmo tempo em que sou exposto aos melhores pensadores em diversas áreas pelas quais me interesso. Tenho a liberdade de fazer a ciência que eu quero e recebo muito apoio da instituição para ser bem-sucedido, além de desenvolver várias habilidades de gestão, mentoria e liderança, que pessoalmente me trazem muito crescimento'", enumera o professor paulista Gustavo, na Carolina do Norte (EUA).

"A maior perda são as relações pessoais. Apesar de desenvolver novas amizades, minha família e grande parte dos meus amigos estão no Brasil. Acabei abdicando de diversas relações importantes por priorizar a carreira, e isso faz falta", completa.

A cientista pós-doc Andrea faz coro: "A gente perde muito pelo lado pessoal. Se sopesá-lo, não dá vontade de sair nunca", admite.
Com a física gaúcha Gabriela, no Japão, não é muito diferente: "Ganhei experiência de vida e muito conhecimento - e não só sobre física, mas sobre outras culturas, povos, nações, e isso também vai me ajudar, no futuro, a encontrar um emprego que valha a pena", acredita. "Mas perdi momentos com minha família no Brasil, tanto que a última vez que fui faz quase três anos, embora os tenha encontrado na Europa. Não me arrependo jamais de ter ido embora", conclui.

A doutoranda mineira Luísa, no Tennessee (EUA), sintetiza os colegas: "Mesmo com bolsa de doutorado, consigo ter um estilo de vida bem decente, sem ter de viver contando os dias do mês. A gente tem acesso a uma quantidade muito maior de recursos aqui, o que facilita também ter mais acesso a congressos e à chance de fazer um networking mais amplo", cita.

Sobre as perdas, ela justifica com a própria condição que antecede a de doutoranda: "Aqui somos imigrantes; temos visto de estudante para viver em um outro país. Então, é torcer e agir para as coisas não darem errado, ou para não ficar doente - algo de que eu tenho muito medo aqui."

Luísa conta que, mesmo longe do país e da própria cultura, ainda sente por alguns episódios que podem gerar menos empatia por parte dos colegas estrangeiros ou nativos.

"Existem certas coisas que só sendo brasileiro e, nesse caso, se preocupando com o futuro da floresta, tem como sentir. Quando vejo ou leio que a Amazônia está pegando fogo, eu choro, isso me afeta, e nem todo mundo entende esse sentimento - é como se a gente conseguisse de fato criar alguns laços que não se desmancham", diz.

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O sonho de voltar permanece

A experiência de atuar com pesquisa fora do Brasil, por necessidades estruturais, acaba impondo, na prática, uma das formas de distanciamento social mais eficientes quando o "gap" em questão separa jovens e adultos de seus familiares e amigos.

As bolsas de doutorado e pós-doutorado oferecidas pelas instituições ou por outros organismos até garantem a possibilidade de bancar um custo de vida mensal satisfatório, segundo relatos ouvidos ela reportagem. No entanto, são um recurso que não permite ao pesquisador retornar ao país natal em uma frequência passível de não se acumularem tantas saudades e ausências. Mesmo a rotina da pesquisa, na maior parte dos casos, naturalmente pesada, não permitiria isso para além de datas festivas universais, como Natal e Ano Novo.

Mesmo assim, nenhum dos pesquisadores aqui ouvidos, embora saudosos de seus laços, se sentiu apto a responder, de pronto, sobre a possibilidade de um dia voltar ao Brasil. Ou se, em outras palavras, se vê no país de origem atuando com pesquisa.
O professor Gustavo se faz esse tipo de pergunta "com frequência". O paulistano não é conclusivo sobre um possível ou improvável retorno. Mas propõe: "É preciso reimaginar e reconstruir o ambiente acadêmico para que seja acolhedor e enriquecedor para todos."

Nem a bióloga Andrea Thomaz tem a resposta definitiva - embora, admita, o sonho sempre tenha sido voltar.

"Quando acabei o doutorado em Michigan [EUA], foi justamente o que pensei: em voltar. Mas com corte de bolsas, de investimentos em pesquisa, decidi que não era o momento. Sempre tive para mim que quero voltar, ainda é um sonho, mas este momento também é uma das poucas vezes na vida que eu não sei mesmo o que pensar sobre isso—eu prestaria um concurso que foi cancelado, por exemplo, e tive que cancelar passagem meio em cima da hora".

No caso de Andréa, bióloga por formação e agora com um pós-doutorado na área, a incerteza sobre a própria atividade profissional no Brasil ganhou um balde de água fria também pela forma como a pauta ambiental tem sido tratada pelo atua governo.

"A incerteza, no meu caso, não é só sobre poder fazer pesquisa no Brasil: tem tanta coisa ruim acontecendo contra a conservação da biodiversidade da Amazônia que é difícil imaginar como arrumar condições para pesquisar sob esse cenário", confessa.

Também a doutoranda em biologia Luísa Jabbur se divide entre um sonho antigo e a realidade colocada: "Gostaria muito de poder voltar ao Brasil, no sentido de ele ser a minha casa e também porque acho que devo muita coisa e quero ter a possibilidade de fazer algo de volta pela universidade pública", define. Mas arremata: "Só não sei que cenário eu escolheria se tivesse de procurar um emprego fora da pesquisa científica, nesse momento. É um pouco desalentador pensar nisso."

No Japão, a física teórica Gabriela Bailas não descarta o retorno, embora a vida na cidade de 200 mil habitantes, na avaliação dela, não ofereça a insegurança nem mesmo de cidades menores em solo brasileiro.

"Até penso que sim, eu voltaria ao meu país, mas tenho muito medo de como seria por questões de violência. Da última vez que fui, há três anos, fiquei incomodada com a sensação de ser perigoso sair com celular, algo que não me afeta no Japão e já não me afetava na França", comenta.

Gostaria muito de poder voltar ao Brasil, no sentido de ele ser a minha casa e também porque acho que devo muita coisa e quero ter a possibilidade de fazer algo de volta pela universidade pública

Luísa Jabbur, sobre voltar ao país

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