O impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba sendo menor do que parece
Monica De Bolle*, O Estado de S. Paulo
A
ideia de se instituir um programa de renda básica permanente está
ganhando adeptos mundo afora. Em resposta à crise, o governo da Espanha
aprovou, na sexta-feira, um programa de renda mínima para reduzir a
pobreza. Governos de outros países estão considerando medidas
semelhantes, como é o caso do Chile.
No Brasil, o debate sobre a renda básica ganhou fôlego no âmbito da adoção do auxílio emergencial de R$ 600
em abril, cuja prorrogação é necessária para o enfrentamento da
pandemia e dos efeitos macroeconômicos dela provenientes. Mas a renda
básica que hoje é assunto de artigos diversos – inclusive da série de
colunas que tenho escrito neste espaço sobre o tema – transcende a
emergência. A ideia é fazer o que fez a Espanha e torná-la um benefício
permanente, reforçando as redes de proteção social do País.
Há
muitos pesquisadores no Brasil debruçados sobre esse tema, fazendo
simulações, contas, analisando os dados e as possibilidades. Destaco em
especial o trabalho de pesquisadores do Ipea, da USP, e do Cedeplar da UFMG.
Esses são os estudos que mais têm recebido a atenção dos parlamentares
no Congresso, ao contrário de outras propostas que nem sequer estão em
discussão. Insisto: não há uma só proposta para a renda básica. Há
várias. Algumas são perfeitamente viáveis do ponto de vista
macroeconômico e sustentáveis do ponto de vista fiscal. Outras são
impagáveis.
Recentemente, uma proposta impagável foi objeto da coluna do economista Samuel Pessôa,
que ficou impressionado com seus potenciais efeitos sobre a redução da
desigualdade, mas, depois de mostrar ser a proposta inviável, lamentou e
ficou por isso mesmo. É compreensível que existam temores de natureza
fiscal sobre a adoção de um programa que, à primeira vista, pode parecer
impossível de custear. Não é compreensível, entretanto, deixar de lado
propostas que hoje fazem parte do debate interno.
É evidente que
um programa de renda básica formulado como simples extensão do atual
auxílio emergencial é custoso: os cálculos mostram que o gasto com esse
programa alcançaria facilmente cerca de 7 pontos porcentuais do PIB.
Além disso, tal programa poderia ter consequências indesejáveis do
ponto de vista do trabalhador, estimulando a informalidade quando essa
já é elevada e tende a aumentar em razão da crise. Por fim, o
financiamento da renda básica exigiria, no mínimo, a extinção de outros
programas focalizados, como o Bolsa Família,
que hoje alcança as famílias mais pobres. Por que não simplesmente
ampliar o Bolsa Família, alguns perguntam? Porque o Bolsa Família deixa
vulnerável uma massa de brasileiros que não são suficientemente pobres
para atender aos seus critérios, mas ainda assim vivem na precariedade,
oscilando entre o emprego formal e a informalidade.
Quais as
alternativas? Uma delas, proposta por pesquisadores do Ipea e da USP e
hoje tema de intensas discussões e simulações, seria pagar uma renda
mínima para todas as crianças, universalizando o benefício. Quais
crianças? Uma ideia é começar pela primeira infância, a faixa de 0 a 6
anos, que receberiam meio salário mínimo. Tal programa abrangeria um
enorme contingente de famílias pobres e vulneráveis, cobrindo as lacunas
deixadas pelos programas sociais existentes. Ao preencher essas
lacunas, o programa seria complementar aos já existentes. Não
deixaríamos de ter o Bolsa Família, ou o Benefício de Prestação Continuada,
por exemplo. Esse programa universal de proteção infantil custaria
cerca de 1,5 ponto porcentual do PIB, não elevaria a razão dívida/PIB,
não geraria inflação, e atenderia tanto à necessidade de
responsabilidade fiscal quanto a de responsabilidade social.
O
impacto total desse tipo de programa sobre as contas públicas acaba
sendo menor do que parece, e a razão é simples: trata-se de uma
transferência de renda que resulta em aumento do consumo, e o aumento do
consumo eleva a arrecadação de impostos, o que financia, em parte, o
programa. Além disso, o consumo aquece a economia e gera crescimento, de
modo que há um efeito multiplicador: com mais renda, há mais consumo e,
no fim, mais arrecadação.
O Brasil atravessa um momento único.
Nele se abre uma fresta pela qual podemos finalmente emplacar um reforço
às redes de proteção social que preencham as lacunas dos demais
programas. São dezenas de milhões de pessoas que poderão ser
beneficiadas. E tudo isso é perfeitamente pagável. E também impagável:
seu valor para a sociedade é inestimável.
*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY
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