quarta-feira, 3 de junho de 2020

Estupidez em cima de estupidez


Fala de Guedes na reunião de 22 de abril revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal

Monica De Bolle, O Estado de S.Paulo 
 
27 de maio de 2020 | 
O título deste artigo é autoplagiado do meu livro Como Matar a Borboleta Azul: uma Crônica da Era Dilma, publicado em 2016. No capítulo sobre os anos 2014 e 2015, tratei da má condução da economia e das escolhas que se revelariam estúpidas, ainda que não mal-intencionadas. Falava ali sobre o ensaio de Carlo Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, sobre o qual já escrevi diversas vezes neste espaço, em que neste mês completo dez anos e que me rendeu colunas que acabaram sendo fonte para o livro sobre Dilma. 
Recapitulo aqui para o leitor as cinco leis de Cipolla. A primeira reza que sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação. A segunda lei estabelece que a probabilidade de certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dela própria. A terceira defende que uma pessoa estúpida é aquela que causa danos a outras sem tirar nenhum proveito para si, podendo até sofrer prejuízo com isso. A quarta lei mostra que as pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das estúpidas. A quinta advoga, enfim, que o estúpido é o tipo de pessoa mais perigoso que existe.
Tenho refletido muito sobre o ensaio de Cipolla, pois há tempos ele retrata bem a realidade brasileira. Na verdade, constatei que temos nos aprimorado em nos tornarmos a representação viva de tudo o que o historiador falecido em 2000 elaborou de forma sublime. Penso que Cipolla estaria muito fascinado em ver como as leis da estupidez funcionam na prática e como a sua tentativa de traçar as linhas mestras da natureza humana, sobretudo da natureza dos estúpidos, está tão bem representada no Brasil de Bolsonaro.
A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 que o diga. Lá há estúpidos aglomerados, falando sem freio, sem noção de si ou do cargo que ocupam, sobre o País estraçalhado pela pandemia e pelo governo de Jair Bolsonaro. Nada daquilo surpreende, embora tudo choque. Choca a fala do ministro do Meio Ambiente quando menciona “passar a boiada” na Amazônia. Choca a fala do ministro da Educação sobre as instituições democráticas do País. Choca a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que essa – a crise humanitária – é uma espécie de oportunidade para o governo ganhar dinheiro ajudando as grandes empresas. As pequenininhas, afinal, não valem o esforço, segundo Guedes. Com elas, o governo perderia dinheiro. 
Embora todas as falas sejam chocantes e profundamente estúpidas pelos danos que causam ao País e a quem as profere – sim, eles todos se prejudicam com os despautérios proferidos, ainda que o mercado brasileiro prefira enxergar uma realidade paralela –, ative-me à de Guedes. 
Guedes é o ministro da Economia, logo, sua responsabilidade é com todas as entidades e indivíduos que formam o que chamamos de economia brasileira. Mais do que isso, seu dever é com o coletivo, com a ideia de entregar um País melhor para todos do que aquele que encontrou. Mas o que fez Guedes? Sua fala revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal ao afirmar que seria possível o governo lucrar dando dinheiro para as grandes empresas. Reflitam por um momento: eu não comecei este artigo falando sobre a gestão Dilma à toa. Quando foi a última vez que o governo lucrou dando dinheiro para grandes empresas? Ou não houve esse dia, esse momento não aconteceu? Guedes conseguiu a proeza de sair-se muito pior do que Guido Mantega, quando este defendia as políticas de campeões nacionais. Porque lá, ao menos, a ideia era fazer o País crescer. Agora, a ideia é lucrar no meio de uma crise humanitária, com dezenas de milhares de mortos e com o Brasil tornando-se, rapidamente, o epicentro da pandemia. Mais. Guedes falou em lucrar com grandes empresas enquanto as pessoas penam para receber o auxílio emergencial, enquanto o governo faz de tudo para dificultar o pagamento. E ele ainda tem o desplante de dizer que não haverá dinheiro para prorrogá-lo. Não se trata de não saber fazer conta. Trata-se de má intenção mesmo. Sem contar que salvar grandes empresas geraria uma imensa distorção no Brasil, já demasiado concentrado.
O que sobra, então? Sobra fazer um gráfico. Num eixo, mede-se do menos ao mais estúpido. No outro, medem-se as intenções: dos mal-intencionados aos bens intencionados. Peguem uma folha de papel e tracem os quadrantes. Agora, ponham os nomes de cada ministro no gráfico. Trata-se de terapia para tempos de estupidez galopante. 
*ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY 

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