June 07, 2020
É sabido que o desmatamento desequilibra o clima e reduz a oferta de
água, mas a epidemia de Covid-19 evidencia outro efeito perverso. Fogo,
correntões e motosserras libertam vírus mantidos longe do ser humano por
florestas e afetam a saúde humana até nas cidades. Coronavírus de
morcegos, por exemplo, foram descobertos na Mata Atlântica, onde o
desmatamento voltou a crescer e aumentou 27,2%, segundo dados divulgados
semana passada. A preservação da floresta é capaz de proteger o homem e
reduzir infecções.
É o princípio de Saúde Única (One Health), adotado pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), e que ganhou relevância com a atual pandemia,
nascida do contato de homens com um coronavírus de morcegos na China.
As florestas controlam doenças ao diluir o risco de transmissão
multiplicando os hospedeiros para os vírus em suas milhares de espécies
de animais. Toda doença infecciosa nova está ligada a desequilíbrios
ambientais, diz Edison Durigon, do Instituto de Ciências Biomédicas da
USP.
O grupo dele descobriu na Mata Atlântica de São Paulo quatro tipos de
coronavírus com potencial de sofrer mutações e passar a infectar seres
humanos: dois de morcegos e os outros dois, de aves. Encontraram ainda
um vírus da influenza em morcegos, o HL18NL11, achado relatado em 2019
na revista “Emerging Infectious Diseases”.
A Amazônia, com sua colossal biodiversidade, é um dos lugares mais
prováveis para o surgimento de vírus com potencial de causar pandemias.
Porém, muito mais devastada, a Mata Atlântica, em cujos domínios vivem
dois terços da população do país, é onde coronavírus e outros têm sido
descobertos.
Noventa por cento das doenças emergentes no planeta, como a Covid-19,
o Ebola, a Sars, a Mers e a Aids, vêm de animais silvestres que saíram
de áreas degradadas.
— A China tem mais gente, mas temos mais desmatamento, que aumenta sem controle — lamenta Durigon.
Vigilância e pesquisa
Durigon explica que a diversidade de vírus na Mata Atlântica é
imensa, principalmente em morcegos, cujo sistema imune peculiar permite
que carreguem patógenos sem adoecer. O Brasil abriga 15% das espécies de
morcegos do mundo. São 178, das quais 113 da Mata Atlântica.
— Na floresta, eles são mantidos em segurança. Mas se um vírus tiver
alguma mutação que permita pular de espécies, como o Sars-CoV-2 na
China, pode passar para seres humanos — diz o cientista.
Os coronavírus que o grupo da USP encontrou na Mata Atlântica são
parecidos com o Sars-CoV-2, mas não têm receptores para se ligar a
células humanas. Não podem nos infectar. O vírus que causa a Covid-19
originalmente também não podia, e passou a fazer isso após sofrer uma
mutação que lhe permitiu invadir células humanas.
— O encontro de um vírus silvestre com capacidade de infectar um ser
humano não é um evento fácil. Mas a Covid-19 nos mostra que acontece.
Temos que nos preparar para futuras pandemias. Vigilância e pesquisa são
essenciais. Desmatamento e caça trazem doenças — salienta.
Segundo Durigon, a Mata Atlântica em volta da cidade de São Paulo é
como um escudo contra doenças. Resta muito pouco dela e os vírus estão
sempre em busca de novos hospedeiros. Coronavírus estão longe de ser
raros. O grupo do professor André Santos, do Departamento de Genética da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), encontrou uma nova
espécie em catetos (porcos selvagens). Ele explica que não existe um
número estimado de vírus no Brasil e seu grupo tem um projeto para
estudar coronavírus de morcegos em todo o país.
O zoólogo Hugo Fernandes, da Universidade Estadual do Ceará, cujo
trabalho é apoiado pelo Instituto Serrapilheira, também se preocupa com o
impacto da caça na transmissão de doenças.
— Criticamos o chinês por comer ratos. Mas os brasileiros caçam e
comem roedores como paca, cutia, mocó, preá e capivaras. Sem falar em
macacos e outros bichos comidos ou traficados. Desmatamento,
fragmentação de florestas e caça criam a receita para um desastre — diz.
Marcia Chame, coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre
da Fiocruz, enfatiza que caça e o tráfico de animais silvestres
espalham patógenos. Ela lembra que surtos atuais de doenças como febre
amarela, malária e leishmaniose estão associados ao desmatamento.
O maior descobridor de vírus do Brasil, Pedro Vasconcelos, presidente
da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, diz que na Amazônia os
efeitos da destruição da floresta já são vistos no processo de
urbanização de vírus como o mayaro e o oropouche, que causam infecções
com sintomas semelhantes aos da dengue.
— Os vírus jamais desaparecerão da Terra. À medida que nos tornamos
mais numerosos, precisamos aprender a mantê-los distantes. Proteger a
floresta é uma questão de saúde.
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