terça-feira, 17 de outubro de 2017

Tratando da questão da gravidez precoce ou na adolescência


Autores: Naiana Dapieve Patias1; Ana Cristina Garcia Dias2
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Como citar este Artigo

Descritores: Gravidez na adolescência, vulnerabilidade, psicologia.
Keywords: Teen pregnancy, vulnerability, psychology.
Resumo:
Objetivo: Nas últimas décadas tem se estudado a ocorrência da gestação na adolescência, sendo que um bom número de trabalhos busca compreender os fatores associados a sua ocorrência bem como suas consequências, em diferentes domínios do desenvolvimento. Fonte de dados: O presente trabalho apresenta uma breve revisão de literatura a respeito desses fatores que contribuem para que ocorra a gestação na adolescência. Síntese dos dados: Constata-se que múltiplos fatores encontram-se envolvidos na gênese da gestação na adolescência, no contexto socioeconômico e cultural, nas relações familiares, nas características dessa fase de desenvolvimento, sendo que todos esses fatores interagem contribuindo para ocorrência do fenômeno. Conclusão: Assim, considera-se necessário levar em conta esses múltiplos fatores (e a interação entre os mesmos) na elaboração e execução de programas de prevenção à gestação, uma vez que a gravidez nesse período de vida pode estar associada a problemas biológicos, psicológicos e sociais.

INTRODUÇÃO

Adolescência é um período de transição entre a infância e a vida adulta, que assume diferentes configurações psicossociais. Em termos cronológicos, segundo a Organização Mundial da Saúde, a adolescência compreende a fase entre os 10 e os 19 anos1. Em termos psicológicos e fisiológicos, esse período do desenvolvimento é marcado por intensas modificações biológicas, psicológicas e sociais, que anunciam a passagem da infância para a vida adulta2. Embora não se resuma à questão biológica, a adolescência frequentemente está associada às transformações físicas decorrentes da puberdade, que transformam o corpo infantil em corpo adulto, capacitando-o à reprodução. Assim, as diferenças sexuais que antes não eram tão evidentes na infância, na puberdade tornam-se explícitas, ficando o exercício da sexualidade mais evidente.

Nesse contexto de transformações biológicas, psíquicas e sociais pode ocorrer a gestação na adolescência, já que os jovens, frequentemente, não são educados a cuidar do próprio corpo3. Benincasa et al.4 observam que há falta de oportunidade para os jovens refletirem sobre os riscos aos quais estão expostos diariamente. Isso os impede de reformular suas opiniões e repensar seus hábitos e possíveis soluções protetoras para tais riscos. Assim, os jovens tornam-se vulneráveis a experiências sexuais sem proteção, que podem lhes trazer consequências irreversíveis (por exemplo: gravidez, doenças sexualmente transmissíveis).

O presente trabalho pretende refletir sobre os diferentes fatores que contribuem para a ocorrência do fenômeno, através de uma breve revisão crítica da literatura, considerando quatro eixos norteadores: 1) a iniciação sexual precoce e o não uso de métodos contraceptivos; 2) representações de gênero e ambiguidade nos valores sociais; 3) fatores socioeconômicos e culturais; 4) o contexto familiar.

Partimos do pressuposto de que a gestação nesse período de vida é um fenômeno complexo, resultado de múltiplos fatores, sendo a ausência de informações sobre sexualidade e métodos contraceptivos apenas um dentre outros fatores que contribuem para a ocorrência do fenômeno3.


INICIAÇÃO SEXUAL PRECOCE E NÃO UTILIZAÇÃO DE MÉTODOS CONTRACEPTIVOS

A atividade sexual do jovem sem medidas contraceptivas adequadas pode resultar em gestação na adolescência. De fato, os comportamentos de risco associados ao exercício da sexualidade têm sido bastante investigados no contexto brasileiro2,5,6.

Ximenes Neto et al.2 destacam que a gestação encontra-se relacionada à idade de surgimento da menarca e da primeira relação sexual da adolescente, para eles: quanto mais cedo ocorre a menarca e o início da atividade sexual maiores são as chances de ocorrência da gravidez. Tanto no que se refere à menarca como à atividade sexual precoce observa-se que quando essas ocorrem em idades precoces, as meninas podem não se encontrar preparadas em termos psicológicos ou mesmo de informações para lidar com a própria sexualidade e com a necessidade de adotar comportamentos preventivos frente ao exercício da mesma. Santos e Carvalho6 apontam que, apesar da maior difusão de informações sobre métodos contraceptivos, cerca de 45 a 60% dos adolescentes brasileiros iniciam sua vida sexual sem a adoção de alguma forma de contracepção. Contudo, não é apenas a falta de informação que interfere na adoção de métodos contraceptivos.

Estudos indicam que os jovens não fazem uso da informação contraceptiva por apresentarem dúvidas quanto à validade das mesmas, por essas informações serem parciais ou ainda por estarem associadas a ideias equivocadas a respeito da sexualidade e contracepção7,8. O estudo realizado por Dias e Gomes8, por exemplo, aponta que a comunicação entre pais e filhos a respeito da sexualidade e contracepção é incompleta e parcial, sendo frequentemente comprometida pela falta de intimidade entre os envolvidos. Assim, os adolescentes podem buscar informações em outras fontes, que nem sempre se apresentam como adequadas ou eficientes no fornecimento dessas informações. Além disso, o receio do uso de certos métodos contraceptivos, o desconhecimento ou impossibilidade de compra dos contraceptivos, as chantagens do parceiro que percebem a relação sexual desprotegida como prova de amor contribuem para o não uso dos contraceptivos de forma adequada2,9.

Além disso, outro estudo mostrou que apesar das adolescentes possuírem um bom nível de conhecimento sobre métodos contraceptivos, 67,3% delas não utilizaram nenhum método na primeira relação sexual. As razões para a não utilização citadas foram: 32,4% não pensarem nisso na hora; 25,4% desejarem a gravidez; 12,7% não esperavam ter relação sexual naquele momento; 11,3% não conhecerem nenhum método contraceptivo; 8,5% os parceiros não queriam que elas usassem; 5,6% não se importavam em ficar grávidas e 5,6% achavam caro ou inconveniente usar alguma forma de método contraceptivo9.

Assim vemos que inúmeros fatores contribuem para a não utilização de contraceptivos. Além dos fatores já descritos, observamos que o amadurecimento orgânico do adolescente ocorre antes do amadurecimento emocional e cognitivo, podendo determinar a vivência da sexualidade de uma maneira imatura8,10.

Em termos afetivos, o surgimento da gravidez pode estar relacionado a dificuldades de assumir a própria autonomia emocional e de identidade, na qual, inconscientemente, por não conseguir separar-se psicologicamente da mãe, a adolescente tentaria manter-se em um estado simbiótico (com o bebê), transferindo esta dependência para o(a) filho(a)7 . Do ponto de vista cognitivo, os adolescentes apresentam dificuldades de prever as situações e relações causais possíveis entre as situações, sendo difícil para os mesmos pensarem nas consequências do ato sexual sem proteção. Além disso, o egocentrismo, característico do pensamento adolescente (comigo não vai acontecer, sou diferente dos outros), pode contribuir para ocorrência da gravidez3.

Até então vimos características mais relacionadas ao indivíduo que podem contribuir para ocorrência da gestação. A seguir veremos como fatores contextuais, sejam sociais ou familiares, contribuem para o surgimento da gravidez adolescente.


REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E AMBIGUIDADE NOS VALORES SOCIAIS

Considera-se, ainda, que há ambiguidade nos valores sociais referentes ao corpo, sexualidade e gênero que são transmitidos aos adolescentes e estão associados ao exercício da sexualidade sem a adoção de métodos contraceptivos. A partir da década de 60 o advento da pílula anticoncepcional proporcionou o surgimento de novos padrões de comportamentos sexuais, desvinculando o sexo da função reprodutiva necessariamente. No entanto, essa desvinculação ocorreu de tal forma que, hoje, parece ser complicado para os jovens associarem esses fenômenos11,12. Cabe lembrar ainda que essas transformações não necessariamente modificaram os papéis de gênero, da mesma maneira que influenciaram o comportamento dos indivíduos.

Um estudo realizado por Desser13, por exemplo, observa que o discurso social veiculado sobre a sexualidade voltado ao público feminino é contraditório. Ao mesmo tempo em que a "mulher moderna" deve possuir um controle de sua sexualidade, exercendo-a livremente, ela deve legitimá-la através de sua "inocência". Nesse sentido, o ato sexual está vinculado à ideia de descontrole emocional, provocado por uma "grande paixão", não sendo jamais planejado ("inocência" torna-se inerente ao ato). Essa produção de "inocência" na jovem sexualmente ativa substitui o valor que a virgindade antes possuía na regulação da sexualidade feminina, assumindo um papel fundamental na construção da identidade feminina. Para Desser13 (p. 140), "o não sancionamento do exercício da sexualidade e utilização da virgindade como método contraceptivo são os principais fatores associados ao não uso ou uso ineficaz de contracepção, seja a adolescente ainda virgem, seja depois de iniciada sua atividade sexual" (p. 140).

Essa ambiguidade de valores ainda é vivida, sendo descrita em alguns estudos5,11. Observa-se que ainda é predominante a representação que o homem é ativo e deve exercer sua sexualidade de maneira livre, levando em conta apenas a obtenção da satisfação das necessidades corporais e busca de prazer. No entanto, as meninas que adotam os mesmos comportamentos ou valores que eles são consideradas promíscuas e "mal vistas". Assim, é reprovada a curiosidade e as iniciativas femininas frente à sexualidade, assim como a prática de relações sexuais fora do casamento pelas meninas. Essas concepções afetam diretamente a utilização de métodos contraceptivos, uma vez que utilizar os mesmos significa a antecipação do exercício da atividade sexual, fato que não permitiria a associação ao descontrole emocional fruto da paixão e, consequente, legitimação através da "inocência". Assim, em alguns segmentos, podemos encontrar a ideia de que usar métodos contraceptivos pode ser sinônimo de promiscuidade.

De fato, Heilborn et al.11 consideram que é utilizada uma lógica assimétrica, na qual o gênero masculino é dominante, sendo essa lógica desigual um importante fator de risco que predispõe a gestação na adolescência. Essa lógica dificulta a negociação do uso de contraceptivos e práticas preventivas entre os parceiros, quando os mesmos vão exercer sua sexualidade.


FATORES SOCIOECONÔMICOS E CULTURAIS

O contexto econômico, histórico, político e cultural é importante de ser analisado na situação de gestação adolescente, pois essa pode ser vista como um problema de saúde pública ou não, dependendo desses fatores3. De fato, alguns estudos2,7,11,12,14,15 mostram que a gravidez nesse período ocorre predominantemente em um contexto no qual os jovens possuem menores oportunidades de vida, tanto em termos educacionais como profissionais. A gestação e a maternidade, nesse contexto, podem fazer parte de um "projeto de vida", que possibilita à adolescente a inserção no mundo adulto, de maneira valorizada, através do papel de mãe11.

Dadoorian7 considera que, nas camadas populares, o papel e status feminino estão associados à maternidade; assim, é possível que as jovens sejam estimuladas, mesmo inconscientemente, a engravidar, para encontrar reconhecimento. Além disso, a gestação e a consequente maternidade, ao constituírem um novo núcleo familiar, podem representar a autonomia econômica e emocional em relação às figuras paternas.

É possível que nos estratos populares o desejo de ter um filho apareça mais cedo, uma vez que a maternidade funciona como uma estratégia de aliança, na qual uma rede de arranjos domésticos e de consanguinidade é revisada e fortalecida. A criança, nesse contexto, produz sentido para a vida, sendo, muitas vezes, desejada e considerada um objetivo a ser alcançado e não um problema a ser tratado12,15.

Rangel e Queiroz16, por sua vez, ao compararem jovens de dois estratos socioeconômicos diferenciados, mostraram que para as jovens de camadas populares a gravidez representa o destino natural do feminino e a forma única de realização pessoal. O mesmo não acontece com as jovens dos estratos médios, para as quais a gravidez é representada como algo que destruiria os planos futuros de continuação dos estudos e uma inserção profissional qualificada no mercado de trabalho.


O CONTEXTO FAMILIAR

Além dos valores presentes no contexto social próximo, os fatores e valores familiares são fundamentais tanto para compreender como os mesmos podem influenciar para a ocorrência da gestação adolescente quanto para entender como a mesma será vivenciada e representada pela jovem. Por exemplo, Caputa e Bordin17 observam que a baixa escolaridade paterna e o uso frequente de drogas ilícitas por um familiar residente no domicílio podem ser fatores de risco importantes para ocorrência da gestação. Esses fatores geram estresse e dificultam as relações familiares, tornando a comunicação mais difícil entre os membros do grupo.

Além disso, outros autores7,12,14,15,18, por sua vez, demonstram que práticas educativas parentais abusivas, bem como a presença de uma configuração familiar monoparental, podem fazer com que a jovem se torne mais vulnerável à ocorrência da gestação precoce. Nesse contexto, a menina pode se sentir menos apoiada e pode perceber na gestação uma forma de receber afeto e compreensão. Brandão e Heilborn19 observam que a gravidez ainda pode representar tanto uma atitude de rebeldia contra a família como a busca de libertação de um ambiente familiar hostil.

Outro fator familiar que contribui para a ocorrência da gestação é a repetição da história reprodutiva da família. Estudo de Persona, Shimo e Tarallo20 demonstra que meninas grávidas possuem pais que, em sua maioria, passaram por essa experiência durante a adolescência. Além disso, a presença de outros membros da família (tias, irmãs, primas) que estão passando pela experiência de gravidez adolescente está mais associada à ocorrência do fenômeno, no caso de certas meninas.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma breve revisão de literatura não sistemática acerca dos fatores que tornam as jovens mais vulneráveis à gestação na adolescência, compreendeu-se que esta é multideterminada e não deve ser considerada a partir de um único fator. Falar de gestação na adolescência é falar de um fenômeno complexo e multifatorial. Nesse sentido, é importante ressaltar a importância de se conhecer os diferentes fatores e a interação entre os mesmos que possibilitam a ocorrência de gestação na adolescência para a elaboração e desenvolvimento de programas de prevenção, promoção e atendimento a essa população. Assim, é fundamental que os profissionais de saúde possam ampliar seus olhares, percebendo os diferentes significados envolvidos nesse fenômeno. Considera-se que a gestação deve ser, de fato, uma opção, mas isso só será possível se as jovens dos diferentes estratos sociais tiverem oportunidades similares de escolarização, profissionalização e inserção social.

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