quarta-feira, 25 de outubro de 2017

"Achava que o reconhecimento e a riqueza bastavam para ser feliz, mas quando os alcancei senti-me mais miserável"


Em entrevista à VISÃO, James R. Doty, neurocirurgião e filantropo, revela como "ser compassivo tem repercussões na fisiologia e traduz-se em ganhos de saúde, desde a diminuição das proteínas inflamatórias no sangue até ao fortalecimento do sistema imunitário"

Clara Soares
Jornalista e Psicóloga
James poderia ter sido apenas mais um miúdo pobre, com fome, condenado a crescer numa família disfuncional e a viver à margem até final dos seus dias numa pequena aldeia da Califórnia. Tinha 12 anos quando entrou numa loja de magia. A misteriosa mulher que o atendeu foi o seu porto de abrigo: durante um mês e meio, ensinou-lhe "truques" que lhe mudariam a vida. Meio século depois, o prestigiado neurocirurgião dedica-lhe o livro Dentro da Loja Mágica (Lua de Papel, 230 págs, €14,90).
Nesta obra, o médico explica como superou a adversidade e alcançou o sonho de vencer na vida através de técnicas milenares - relaxando o corpo, acalmando a mente, visualizando o que desejava. James teve tudo - tornou-se milionário - e quase tudo perdeu, na bolha das dot.com. Restavam-lhe ações de uma empresa que valiam 30 milhões de euros, aplicadas num fundo universitário. Apesar de ter dívidas de 3 milhões de euros, Doty decidiu doar todas essas ações ao fundo, aplicando a quarta técnica que a tal mulher misteriosa lhe ensinara: abrir o coração. Hoje, continua a acreditar que a generosidade e a compaixão transformam o mundo. Decidiu fundar o Centro de Investigação e Educação da Compaixão e Altruísmo (CCARE), apoiado pelo Dalai Lama. Aos 61 anos, James vive cada dia como se fosse único. Porque é mesmo.
Dorme pouco por natureza?
Por norma, costumo precisar de quatro a seis horas. Mas, se estiver realmente muito cansado, sou pessoa para dormir 12 horas seguidas. Outras vezes opto por fazer uma pequena sesta.
É raro encontrar médicos e investigadores que tenham um discurso próximo do místico.
Se pensarmos no que nos torna humanos, seja através da religião, da cultura ou da sociedade, chegamos sempre à compaixão. Deve haver uma razão para isso. Como cientista, sou ateu. Não acredito num Deus que olha por mim nem que existe algo mais para além do presente. Tal não impede que haja uma maioria a acreditar nisso, nem que eu reconheça a beleza da vida e a capacidade para amar e cuidar que as pessoas têm. Fascina-me como os líderes filosóficos e religiosos estão disponíveis para motivar as pessoas a serem melhores. Os budistas, por exemplo, usam técnicas validadas pela ciência para melhorar a saúde física e mental.
Diz que o coração é um órgão inteligente. Quer explicar isso um pouco melhor?
Começa a provar-se cientificamente o que diziam os líderes espirituais: a ligação entre a mente e o coração, que está ligado ao nervo vago, situado entre a base da cabeça e o tronco cerebral. Estes dois órgãos comunicam entre si através do sistema nervoso autónomo, que é formado por dois sistemas, o simpático e o parassimpático.
Um gera a resposta de stresse e o outro a de relaxamento, é isso?
Sim. O sistema nervoso simpático é ativado em face de uma ameaça ou perigo e conduz à libertação de neurotransmissores. A pressão arterial e o ritmo cardíaco aumentam, o fluxo sanguíneo é desviado da zona abdominal para o sistema musculoesquelético, de modo a podermos correr e as pupilas dilatam para que possamos ver melhor. Quando a sobrevivência não está em jogo, o sistema nervoso parassimpático, cujo lema é "descansar e digerir", permite funcionar sem correrias e com discernimento.
À primeira vista, a "loja mágica" confunde-se com "pensamento mágico" e "profecias que se autorrealizam", que são considerados sintomas de perturbações psicológicas...
Suspeito que quer saber se sou alvo de críticas. Entendo que quem nunca é criticado dificilmente estará a fazer algo interessante. Dito isto, tive educação científica e vivi coisas invulgares, diria mágicas até, como o estar entre a vida e a morte, e que aceitei apenas como ocorrências.
Ter passado por uma experiência de quase-morte, depois de um acidente de carro, abalou as suas crenças?
Pessoas que passaram por isso passaram a acreditar na vida depois da morte, mas tal não se passou comigo. Eu reconheço que há uma validação científica para certos fenómenos.
Atribui a sua realização a "truques" aprendidos numa loja de magia e que são validados pela ciência. O que quer dizer ao certo?
Cada ser humano é o somatório das experiências de vida que teve. Se eu não tivesse conhecido Ruth, a misteriosa mulher da loja de magia, talvez não fosse quem sou hoje. Quando não se tem acesso a dinheiro ou a mentores, ou se cresce em condições adversas, como pobreza, violência, abuso de drogas ou doença, a probabilidade de ser alguém na vida é zero.
Foi vítima de bullying, tinha uma mãe suicida e um pai alcoólico. Como superou esses traumas?
As pessoas que fazem bullying foram, elas próprias, vítimas de agressão. Sofrem com isso. Parte do meu padrão de frustração, raiva e impotência tinha a ver com o sentimento de desilusão face aos meus pais e às condições em que me criaram. Mais tarde pude perceber que também eles estavam embrenhados no seu próprio sofrimento, incapazes de satisfazer as minhas necessidades. Reconhecer isto permite perdoar e quebrar o padrão de agressão.
"Um verdadeiro mágico acredita na sua magia e transporta a audiência para um mundo onde o inacreditável se torna credível." Fala assim aos seus formandos?
Claro! Cada pessoa tem potencial para exercer um impacto transformador na vida dos outros. Sou médico. Sei que manifestar interesse pela vida de alguém através de um simples "olá" afeta a fisiologia, do mesmo modo que o tom da voz ou o toque. A mente é poderosa, mas é a compaixão que nos transforma.
Mesmo em situações críticas, de vida ou de morte, como numa sala de operações?
Falámos há pouco do sistema nervoso simpático que está envolvido nas reações de medo. O modo de sobrevivência limita as funções executivas e a capacidade de ver outras opções. Numa emergência cirúrgica, isso pode ter efeitos negativos. No caso que descrevo no livro [rompimento de vaso numa cirurgia à cabeça de uma criança, que seria fatal], a turbulência emocional era muita; o que fiz foi estimular o meu sistema nervoso parassimpático, respirar e, num estado relaxado, visualizar a veia com olho da mente e estancar a hemorragia.
Como define "o olho da mente", numa perspetiva científica?
É o modo como a intenção e a repetição se manifestam em neuroplasticidade e no fortalecimento de vias neuronais. Em certa medida, foi isso que me permitiu desenvolver resiliência. De resto, a mensagem que transmito no livro está a ser usada nos manuais escolares como forma de dar ferramentas às crianças para lidarem com a adversidade.
Teve tudo, perdeu tudo. O sucesso e o dinheiro não trazem mesmo a felicidade?
O facto de atrairmos para a nossa vida o que desejamos, com visualização, intenção e repetição pode funcionar ao contrário. As crenças negativas e a falta de compaixão aprisionam-nos.
O que quer dizer com isso?
Eu era um miúdo pobre que queria ter dinheiro para ter poder, para ter controlo. Achava que o reconhecimento profissional e a riqueza financeira bastavam para ser feliz, mas quando os alcancei senti-me mais miserável. A vida mudou, sofri perdas. Refleti sobre essa prisão. Para sair dela, tinha de abrir o coração.
Como se abre o coração?
É algo que passa por ser generoso, empático e estar ao serviço. Posso fazer coisas muito boas, mas serão sempre transitórias e, em última análise, insignificantes. Era isso que aquela mulher misteriosa que conheci queria dizer-me, e que só mais tarde compreendi plenamente.
Qual é a meta do Centro de Investigação e Educação da Compaixão e Altruísmo?
No CCARE temos vários programas que permitem aprender a ser compassivo. Isso tem repercussões na fisiologia e traduz-se em ganhos de saúde, desde a diminuição das proteínas inflamatórias no sangue até ao fortalecimento do sistema imunitário. Os resultados preliminares de alguns estudos já feitos no meio educativo sugerem que o treino da compaixão reduz o bullying e permite regular emoções, além de melhorar a atenção e o rendimento académico.
Pode dar exemplos do impacto da ciência da compaixão no quotidiano social?
Um clima de abertura e de confiança laboral reflete-se em melhores níveis de produtividade com impacto no mercado de capitais. Nos cuidados de saúde, a compaixão contribui para baixar os níveis de ansiedade, acelerar processos de cura e reduzir o tempo de internamento. Na justiça, permite reduzir a violência e as recaídas em pessoas que cumpriram pena.
De que fala no seu podcast, Alfabeto do Coração?
Começou a partir da mnemónica que fiz para apresentar na palestra dirigida a futuros estudantes de medicina, na universidade de Tulane (em Nova Orleães), que vai de C a L, ou seja, CDEFGHIJKL. Compaixão, Dignidade, Equanimidade - manter-se presente e sereno em todas as circunstâncias. Perdão (Forgiveness), Gratidão, Humildade, Integridade, Justiça, Generosidade (Kindness) e Amor (Love), que contém todas as anteriores. O Alfabeto do Coração teve tanto eco que ganhou a forma de podcast, com vários milhares de visitas.
Havendo tantas possibilidades de conexão, porque é que o mundo está tão assustador?
Uma das características que permite a sobrevivência humana é o tribalismo. Num cenário de medo, real ou imaginário, o sistema nervoso simpático é ativado e a reatividade toma o lugar da sensatez. As pessoas associam-se em função de crenças, e daí a cometerem atrocidades vai um passo. Olha-se para o outro como o inimigo, uma ameaça. Há recursos no planeta que chegam para todos.
O problema é quando gente movida pelo ego cria uma narrativa baseada no medo para conquistar poder.
A maioria das pessoas só quer viver a sua vida, mas acaba por ceder ao medo e ser cúmplice da ideia de que as diferenças são perigosas.
Como se sai desse ciclo?
Todos queremos comida, segurança, paz e uma vida melhor para os nossos descendentes. Basta uma mudança de circunstâncias para sermos nós a estar no lugar de refugiados, a fugir da violência como eles, arriscando estar numa situação ilegal. Um dos erros do colonialismo foi não haver uma verdadeira intenção de implementar direitos iguais para os que ficaram independentes, mas sem as mesmas oportunidades que os outros para terem uma vida melhor, que levou a condutas hostis. Colocar-se no lugar do outro e recusar-se a ser manipulado é libertador.
Teve convites de instituições do governo para usar o altruísmo na política, na economia?
Ainda não, mas reconheço que alguns decisores têm uma visão distorcida do mundo e tentam impô-la aos outros, como sucede com o discurso em torno das alterações climáticas e outras, assentes em dogmas religiosos. O desafio é alterar este estado de coisas com amor e paciência.
Entrevista publicada na VISÁO 1263 de 18 de maio

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