terça-feira, 24 de outubro de 2017

A Reforma Trabalhista e o fim do Estado Social

Marta Gueller
23 Outubro 2017

A Reforma Trabalhista tem mobilizado a sociedade. Por isso, convidei um especialista em Direito do Trabalho, o Dr. Felipe Penteado Balera, doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP e Professor da Universidade Paulista – UNIP. Ele escreveu o artigo abaixo para nosso blog.
O primeiro movimento de proteção individual e garantia de direitos se deu com a limitação da autoridade estatal e reconhecimento da autonomia individual. A noção de liberdade restou magnificamente definida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que sucedeu a Revolução Francesa, consagrando que: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei”.
Para garantir a liberdade, a mesma Declaração de 1789 ousou reconhecer que os homens nascem e são livres e iguais em direitos.

O papel da Revolução foi fundamental para proclamar essa liberdade de cada qual, até então, súditos do arbítrio do Estado, comandado por seu monarca soberano. Porém, o reconhecimento da liberdade e igualdade em direitos desconsiderava as desigualdades de fato, e não conseguia sair do papel para produzir efeitos no mundo real. Ao contrário do que anunciavam os liberais, não havia liberdade, muito menos igualdade. Recorda-se que havia escravidão, sustentada, inclusive, por importantes personagens do liberalismo como John Locke e Thomas Jefferson, defensores e praticantes da escravidão.
É certo que, em quase todos os países, a escravidão foi abolida ainda no século XIX, mas nem a abolição conseguiu extingui-la [1]. Além disso, o trabalho escravo foi substituído pelo trabalho injustamente remunerado, obrigando muitos empregados a dedicarem mais da metade de suas vidas à satisfação das necessidades e interesses alheios, sem receberem, em troca, uma mínima parte do ganho e do reconhecimento social de seus empregadores.
A falsa afirmação do liberalismo de que os homens nascem livres e são iguais apenas provocou ainda mais desigualdades, condenando à igual miséria os que já eram miseráveis e, para que alguns poucos pudessem concorrer em liberdade, a grande maioria se tornou mão de obra, meros membros não autônomos de corpos jurídicos que não lhes pertencem, com a liberdade de escolher entre tentar sobreviver, satisfazendo vontades que não são suas, ou morrer de fome.
Assim, diante desta grave contradição do Estado Liberal, que com o justo temor da intervenção do Estado na vida social, permitiu-se, por meio da liberdade de contrato entre os desiguais, sem qualquer participação ou regulação estatal, a exploração dos mais fracos economicamente pelos mais fortes, resultando em injustiça social. O individualismo exacerbado do liberalismo impediu que o direito à liberdade fosse igual para todos. Não se poderia admitir um conceito de liberdade que servisse só para alguns.
Deste modo, com a finalidade de permitir a justiça social e a redução das desigualdades, surge o Estado Social e uma nova dimensão na proteção dos direitos fundamentais, que passaram a ser consagrados nas Constituições que emergiram na época, como a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar, na Alemanha, de 1919. Para garantia dos direitos sociais (direitos do trabalho, saúde e educação, entre outros), nascidos no novo modelo de Estado, a postura deste não poderia mais ser apenas de abstenção, passando a se exigir conduta positiva do ente estatal com o fim de implementar direitos, que visam tornar a sociedade mais justa e igualitária.
Neste contexto, ao Estado, por meio de suas instituições e órgãos, se impõe uma nova maneira de intermediar conflitos, especialmente quando disputam polos tão antagônicos do ponto de vista econômico, como é o caso das relações trabalhistas e de consumo. Em tais relações, o papel Estado como mediador do conflito não pode ser o mesmo que se espera nas relações paritárias, pois para permitir a justiça na solução do embate desequilibrado, se torna necessário criar e aplicar regras que amenizem a desigualdade. Ilustra esta ideia o exemplo de um jogo de futebol entre jogadores profissionais e crianças de 10 anos de idade, no qual para permitir certo equilíbrio, algumas medidas favorecendo a equipe de crianças hão de ser adotadas, como permitir maior número de jogadores e reduzir a baliza em que atacará a equipe adversária.
Por outro lado, não pode se afirmar que com o Estado Social a autonomia individual e todas as demais liberdades conquistadas no Liberalismo ficaram totalmente superadas. Assim como os demais direitos fundamentais, a autonomia privada deve ser protegida na maior medida do possível.
A autonomia privada permanece como valor inerente à pessoa e sua dignidade. O ser humano é autossuficiente e capacitado para escolher o melhor destino para sua vida, suas preferências, vantagens e deveres. No entanto, nem toda manifestação de autonomia privada merece proteção constitucional com a mesma intensidade. Isto porque certas escolhas não são propriamente preferencias individuais, mas decisões emergenciais visando a própria sobrevivência. Logo, quando a autonomia privada está relacionada a decisões existenciais ou preferências, referentes à personalidade, imagem ou privacidade da pessoa, seu valor será maior do que escolhas meramente patrimoniais ou econômicas, especialmente aquelas que são frutos de escolhas necessárias.
Na contramão da evolução da proteção estatal aos direitos sociais e do próprio Estado Social, a Lei Federal nº. 13.467, de 13 de julho de 2017, popularmente conhecida como “Reforma Trabalhista” limitou a competência do Poder Judiciário no exame de convenção ou acordo coletivo de trabalho apenas aos aspectos formais e de validade do consenso, tendo como baliza o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva (art. 8º, §3º, CLT). Além disso, a convenção coletiva e o acordo coletivo passaram a ter prevalência sobre a lei em uma série de assuntos (arts. 611-A e 611-B).
Assim, ainda que permaneça a distância econômica, social e de organização entre empregadores e empregados, em gigantesco desfavor dos segundos, o Estado, nem por via legislativa, nem por meio do Poder Judiciário, poderá intervir na relação trabalhista.
Parece claro que tais normas são claramente inconstitucionais, pois permitem a redução de direitos sem previsão legal, bem como atentam contra a livre apreciação do Poder Judiciário. Mas, sem entrar no mérito da constitucionalidade da norma, a Lei de 2017 retrocede 100 anos no tempo, quando a Constituição Mexicana de 1917 inaugurou, no âmbito constitucional, a proteção social.
Ao invés da justiça e busca pela redução das desigualdades sociais, que são objetivos fundamentais do nosso Estado e servem como baliza para os Poderes da República, a Lei passa a preferir a autonomia privada, ainda que sobre temas e assuntos meramente patrimoniais e econômicos, e nos quais a escolha individual é feita muito mais por necessidade e sobrevivência do que com base em valores e preferências individuais.
Como demonstrado acima, a relação de trabalho, em que a desigualdade entre os polos é imensa, não pode ser mediada como se as partes fossem paritárias. A autonomia privada não pode ser a única baliza. Sem a intervenção do Estado, sobra ao empregador a autonomia de oprimir seus funcionários ou aplicar a lei, enquanto que aos empregados resta sobreviver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário