terça-feira, 11 de outubro de 2022

Família, arrogância e voto

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Vera Iaconelli

A ignorância arrogante não é exclusividade do campo conservador

O Brasil se encontra irmanado na aflição e no medo, embora dividido por um antagonismo terrível. Eliminando aproveitadores, perversos e mal-intencionados de plantão, não conheço quem não esteja apreensivo. O cidadão comum sofre pela convicção de que só ele sabe o que é melhor para o país e pela necessidade de persuadir os outros disso. Mas, quando a única intenção é convencer, a possibilidade de diálogo se revela nula. É fácil dizer que o outro é alienado, difícil é escutar pra valer, colocando certezas à prova e correndo o risco de ferir de morte o próprio narcisismo.

Qualquer pessoa que tem família sabe que ela nos obriga a nos relacionarmos com o contraditório. A família acabou se tornando o reduto das convivências forçadas entre pessoas cujas ideias se revelam inconciliáveis. Teremos aquelas nas quais respeito e amor são prevalentes, mesmo quando as discussões se mostram infrutíferas. Teremos aquelas que foram pulverizadas pela discórdia.

Ouve-se a torto e a direito: como é possível que meu irmão-primo-mãe-cunhado, tão gente boa, vote em fulano ou sicrano? A insistência em responder com uma generalização, que divide o mundo em bons e maus, só serve para nos encastelar ainda mais.

Sombras de um homem e de uma mulher gritando um com o outro
Gerd Altmann por Pixabay

Mudanças de mentalidade são processos que levam gerações para acontecer e não se dão de forma homogênea. Convivem na mesma geração a minissaia e o tabu da virgindade, a visão essencialista da mulher e a primeira vereadora trans do Brasil. Não podemos apostar todas as nossas fichas nos desencontros nessa seara, sob pena de recrudescer resistências.

Lembro de uma senhora evangélica que teve que enfrentar o pastor de sua igreja quando a filha se assumiu lésbica. Embora acreditasse que o lesbianismo era pecado, ela se recusou a cortar relações com a filha, a quem apoiou contra a igreja e parte da família. Sua posição conservadora e preconceituosa sobre as questões de gênero não impediu seu posicionamento ético. No caso, tratava-se de uma eleitora do atual presidente. Quem quiser chamá-la de fascista, em função da escolha de seu candidato, depois de tudo o que essa mulher foi capaz de sustentar para defender a filha, estará afastando qualquer possibilidade de diálogo que poderia emergir desse gesto.

É compreensível que resistamos à transformação dos costumes devido ao medo de perda de parâmetros. Mas junto com a pauta de costumes, o maior avanço a ser conquistado ainda é a própria possibilidade de diálogo. Nesse ponto, a eleição atual diz respeito não só a dar ponto final a sabidos descalabros, mas ao direito de exprimir opiniões republicanas sem ser morto, metralhado, torturado, preso, exilado.

O campo progressista, ciente da violência histórica que impera em nosso país, com a onipresença da escravidão, da ditadura e da fome, se afoba em acusar tudo e todos. O temor de retrocesso de conquistas sociais e políticas gera angústia compreensível, mas a acusação fácil queima as pontes que permitiriam avançar na mudança de mentalidades.

Imaginar um país alijado da opinião dos 51 milhões de cidadãos que votaram em Bolsonaro é de uma arrogância e erro de cálculo preocupantes. Desse montante, sempre existirá uma parcela bem menor de radicais, para quem o diálogo inexiste. No entanto, se engana quem pensa que esses radicais são privilégio de afiliações políticas. A ignorância arrogante nunca será uma exclusividade do campo conservador.

O que a senhora acima citada fez no caso da filha lésbica não foi uma mudança em seu sistema de crenças, mas a defesa ética do direito de todos a um lugar no mundo. E essa é simplesmente a base da democracia.

 

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