Ante o risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto
14 de junho de 2021
O oitavo Mandamento diz que não se deve dar falso testemunho. No “evangelho” do presidente Jair Bolsonaro, contudo, esse mandamento caducou.
Ao discursar numa igreja evangélica em Anápolis (GO), na quarta-feira passada, Bolsonaro fez um sermão repleto de mentiras, tão evidentes que nem era preciso ser onisciente para perceber.
Bolsonaro voltou a afirmar que houve “fraude” na eleição de 2018, que ele venceu. “Eu fui eleito no primeiro turno. Eu tenho provas materiais, mas o sistema, a fraude existiu sim, me jogou para o segundo turno”, disse Bolsonaro.
A primeira vez em que o presidente alegou ter sido vítima de fraude na eleição foi em março de 2020. Na ocasião, disse que tinha “provas” e que as mostraria “brevemente”. Bolsonaro nunca o fez, porque não existem. Mas isso não tem importância: no “evangelho” bolsonarista, a verdade não é aquilo que encontra correspondência na realidade, e sim aquilo que Bolsonaro enuncia como tal. É questão de fé.
No mesmo sermão, Bolsonaro tornou a acusar governadores e prefeitos de “utilizar politicamente o vírus” da covid-19. Sem qualquer respaldo nos fatos, o presidente disse que as medidas de isolamento social para conter a pandemia se prestam a derrubá-lo: “Vamos fechar tudo, lockdown, toque de recolher, que a gente pela economia tira esse cara daí”. Bolsonaro disse que o querem fora porque “fez com que as estatais não dessem mais prejuízo”, “está começando a arrumar a economia”, “acredita em Deus”, “respeita seus militares” e “acredita na família”.
Em seguida, disse que “gente que estava ao meu lado” fez contas, a partir de um “acórdão do Tribunal de Contas da União”, e chegou à “constatação da supernotificação de casos de covid” por parte de Estados interessados em ter “mais recursos” federais. Segundo Bolsonaro, “se nós retirarmos as possíveis fraudes” da contabilidade de mortos por covid-19, “o nosso Brasil” será “aquele com menor número de mortes por milhão de habitantes por causa da covid”. Ou seja, o presidente está dizendo, em outras palavras, que milhares de médicos em todo o Brasil integram uma máfia dedicada a fraudar atestados de óbito para favorecer os planos de governadores corruptos.
Uma vez eliminada a “fraude”, disse o presidente, ficará claro que o Brasil teve poucas mortes por covid-19 porque adotou o “tratamento precoce”, com cloroquina e ivermectina, cuja ineficácia contra o coronavírus já foi amplamente atestada. Bolsonaro disse que não se investe nesse “tratamento” porque “interessa viver em cima de mortes, para se ganhar mais recursos”.
Para o presidente, é irrelevante se o tal “tratamento precoce” não tem comprovação científica. “Eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está experimental”, disse Bolsonaro, naquela que talvez seja a mais nociva das tantas mentiras que contou no seu sermão. Ao questionar a segurança da vacina, já atestada pelas autoridades sanitárias regulatórias, Bolsonaro sabota todos os esforços para incentivar os brasileiros a tomar o imunizante.
Mas a epifania bolsonarista em Anápolis, malgrado suas repetidas referências a “milagres” e “Deus”, teve objetivos bem mais mundanos. Conforme a já manjada tática bolsonarista, era preciso inventar variadas polêmicas, em grande quantidade, para tirar a atenção do mais importante: a forte alta da inflação, anunciada no mesmo dia do sermão de Bolsonaro.
Se por um lado a inflação aumentou a arrecadação do governo, pois os tributos são cobrados em cima de preços mais altos, por outro a alta dos preços corrói a renda dos brasileiros, especialmente a dos mais pobres, que já convivem com forte desemprego. Ante o risco de insatisfação popular, muito concreto, Bolsonaro recorreu a quase todo o seu repertório de falsidades para que o País mude de assunto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário