Para José Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, ideologia do governo Bolsonaro virou problema econômico
É injusto chamar os anos de 1980 de “década perdida”, avalia o economista José Gabriel Palma, professor da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e de Santiago, no Chile, e especialista em desenvolvimento dos países latinos.
Na visão do economista chileno, a verdadeira década perdida para o Brasil e a América Latina começa no início dos anos 2000 e se refere ao longo ciclo de commodities que beneficiou os países da região.
Os países latinos aumentaram suas exportações e o consumo, diz, mas não souberam aproveitar a entrada de recursos para aumentar a industrialização e a produtividade.
“Não houve aumento do investimento para gerar diversificação produtiva. Aquela oportunidade única de gerar nova capacidade produtiva e diversificação econômica foi desperdiçada”, disse Palma em entrevista à Folha.
Ao olhar o ciclo atual de alta de preços dos produtos básicos, puxados novamente por um aumento da demanda da China ao se recuperar da pandemia, ele lamenta que o Brasil possa estar jogando mais uma oportunidade fora.
Diferença e semelhanças entre ciclos
No
boom [das commodities] anterior, a demanda começou a subir rapidamente e
isso teve um efeito positivo sobre os preços, mas depois virou
especulação. O mesmo acontece hoje, pois há muita liquidez no mercado
internacional, mas poucos ativos sólidos que possam absorvê-la. Na
lógica da loucura financeira, as commodities, que são ativos sólidos por
natureza, levam vantagem.
E tudo indica que essa distorção deve continuar, pois o Fed [banco central dos EUA], o Banco Central Europeu e o japonês continuam injetando liquidez e comprando ativos financeiros. Eles ainda acreditam que para reativar a economia real é necessário primeiro reativar a economia financeira. Eles estão cometendo exatamente o mesmo erro de 2008.
A China era e ainda é o maior consumidor de matérias-primas e sua economia está se recuperando rapidamente. Acredito que sua demanda continuará puxando os preços e por isso os especuladores em busca de ativos seguros continuarão em busca de matérias-primas.
Erros do passado
O Brasil e
o resto da América Latina perderam o ciclo anterior. A maior parte da
renda adicional foi para consumo e não para investimento. Os grandes
ciclos de commodities criam uma oportunidade única de gerar novas
atividades produtivas para sustentar a atividade econômica quando os
preços das matérias-primas voltarem a cair, o que não foi feito.
Se olharmos para a América Latina, excluindo os investimentos que foram feitos para continuar com o extrativismo ‘mais do mesmo’, não houve aumento do investimento para gerar diversificação produtiva. Por isso, a verdadeira década latina perdida não foi a década de 1980, mas a do superciclo das matérias-primas dos anos 2000. Aquela oportunidade única de gerar nova capacidade produtiva e diversificação econômica foi desperdiçada.
Erros do presente
As demandas
sociais e a reativação econômica não estão sendo atendidas e é provável
que o Brasil cometa exatamente os mesmos erros de antes. Embora a
coordenação dos investimentos públicos e privados seja ainda mais
necessária do que na crise anterior, é menos provável que os países
latinos invistam na geração de nova capacidade produtiva e na ‘economia
verde’.
O crescimento da produtividade na América Latina desde 1980 já era praticamente zero antes mesmo da pandemia, ou 0,3% na média anual entre 1980 e 2019. Precisamos criar urgentemente novos motores de produtividade, como a industrialização de matérias-primas e aderir ao ‘green new deal’ [conjunto de propostas para combater mudanças climáticas e desigualdade econômica]. Enquanto a produtividade no Brasil está estagnada há 40 anos, a da China aumentou 26 vezes. É preciso industrializar o setor exportador.
Tempo de duração do boom atual
São
tantas as variáveis que é impossível prever a duração desse ciclo.
Todas as condições estão reunidas para que dure muito, mas há riscos ao
longo do caminho, como uma possível alta dos juros internacionais, por
motivos inflacionários. Dados os atuais níveis de endividamento de todos
os agentes [governos, empresas e famílias], se as taxas de juros
subirem, não só a recuperação desacelerará, mas poderemos cair em grande
fragilidade financeira. Os países estão em uma situação tão frágil, que
talvez mesmo um pequeno choque possa ter um efeito de bola de neve.
O Brasil como exemplo “verde”
Transformar
energia suja em energia limpa e sustentável e a agricultura em algo
mais orgânico leva ao aumento da produtividade. Queimar a Amazônia para
produzir mais soja ou carne não é a solução. Uma agricultura que
respeita cada vez mais o meio ambiente é o caminho. A demanda agrícola
está mudando muito rapidamente nos países desenvolvidos, à medida que as
pessoas estão mais conscientes do consumo saudável e sustentável.
Investir na produção de alimentos orgânicos é altamente lucrativo, mas
para isso é necessário mudar o tipo de investimento agrícola, e tornar
nossas economias mais limpas e sustentáveis é um grande motor para o
crescimento da produtividade.
O Brasil como exemplo negativo
A
ideologia do governo brasileiro, não só sobre a questão ambiental, mas
sobre uma série de questões sociais e de saúde pública, tornou-se um
problema econômico. A ideia de que o país pode crescer destruindo o meio
ambiente é totalmente ultrapassada. É muito mais lucrativo fazer uma
forte reconversão agrícola, e o Brasil poderia estar em uma posição
vantajosa para fazer isso. Mas não vai ser pela 'mão invisível' do
mercado. Todas as lições que os países desenvolvidos nos dão mostram que
é preciso coordenar os investimentos públicos e privados nessa direção.
Esperar que tudo aconteça automaticamente é ingênuo. Precisamos de
estados inteligentes, como diz a [economista italiana] Mariana
Mazzucato, governos que coordenam os investimentos privados e públicos
para gerar novos modelos sustentáveis e industrializar as
matérias-primas —mas a América Latina carece de estados inteligentes.
Modelo Paulo Guedes
Sei
bem como pensa o ministro 'Chicago boy' do Brasil, porque no Chile
tivemos essa mesma turma durante a ditadura [de Augusto Pinochet] e foi o
desastre que nos levou à crise de 1982, a pior da história do país. Ele
é contra investimentos públicos, mas a ideia de que tudo deve ser feito
com investimento público também é ultrapassada. O papel da política
industrial é coordenar esse espaço entre o público e o privado.
No Chile, por exemplo, estamos propondo uma taxa de royalty diferente para o cobre, muito alta para a exportação do cobre concentrado, e que diminui à medida que ele passa por mais processos de industrialização [do concentrado ao fio]. Isso serve para forçar o setor privado a usar a renda dos recursos naturais de forma produtiva. O modelo nórdico nos ensina que para industrializar o setor exportador de matérias-primas, o estado precisa “empurrar” o setor privado.
- RAIO-X
Jose Gabriel Palma, 73
é doutor em Economia pela Universidade de Oxford e pela Universidade de Sussex, além de professor da Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge (no Reino Unido) e da Universidade de Santiago, no Chile
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