A maior causa de estresse entre os brasileiros deixou de ser o excesso de atribuições no trabalho: agora
é o receio de perder o próprio emprego. Essa é a principal conclusão da mais recente pesquisa anual
da International Stress Management Association (Isma-BR), instituição que se dedica a investigar o tema.
Além da inversão desses dois fatores nas primeiras posições em comparação ao estudo anterior,
chama a atenção também que o “desequilíbrio entre esforço e recompensa” subiu da condição de
quarto para terceiro principal fator de estresse, deixando para trás os conflitos interpessoais, uma das
mais tradicionais fontes de aborrecimentos no cotidiano corporativo. “A combinação entre falta de
reconhecimento e medo de perder o emprego está trazendo sérias consequências à saúde dos
trabalhadores brasileiros”, diz a psicóloga Ana Maria Rossi, representante no país da instituição
fundada em 1973 nos Estados Unidos. Conviver por longos períodos com essas duas sensações
perniciosas (injustiça e insegurança) potencializa o surgimento e agravamento de sintomas emocionais
físicos e comportamentais. Dos 920 profissionais entrevistados pela Isma-BR, todos empregados, 87%
descreveram sentir ansiedade como consequência direta da relação com o trabalho.
Dores musculares, incluindo dor de cabeça, foram relatadas por 89% das pessoas ouvidas, enquanto
42% enfrentam distúrbios do sono. Não é por acaso que, de acordo com a Organização Mundial da
Saúde (OMS), o Brasil é o país com maior proporção de pessoas com depressão na América
Latina – 5,8% da população, contra a média mundial de 4,4%.
Tudo isso resulta num círculo vicioso que se volta contra o próprio desempenho no trabalho: 64% dos
entrevistados pela Isma-BR afirmaram que estão desmotivados e 53% relataram uso de algum tipo de
medicamento ou droga, prescrita ou ilícita, como tentativa de aliviar a pressão que sentem. Manter o
alto desempenho, sob essas circunstâncias, é impossível. Assim, o receio de perder o emprego se
torna uma ameaça ainda mais real. O aumento das incertezas em relação ao futuro profissional não
é fenômeno exclusivamente brasileiro: estamos falando de uma epidemia global. Nesse cenário, quem
ainda conserva uma fonte fixa de trabalho é frequentemente submetido a um jogo psicológico que pode
levar à sensação de dívida com o empregador e com a sociedade como um todo. Um símbolo recente
desse tipo de manipulação foi o e-mail que o empreendedor Elon Musk, CEO da Tesla, muitas vezes
classificado como visionário e revolucionário, enviou em meados de janeiro aos empregados.
Depois de mencionar as dificuldades para viabilizar financeiramente os negócios, ele anunciou o corte
de 7% dos postos de trabalho – resultando em cerca de 3.000 demissões – e convocou os que ficavam
para a missão de suprir a ausência dos colegas. Musk queria convencer a equipe de que a dedicação
extra seria recompensada pela satisfação de estar contribuindo para o propósito da empresa: tornar o
mundo melhor e mais sustentável com os veículos elétricos e as tecnologias baseadas em energia solar.
“Há muitas companhias que podem oferecer um maior equilíbrio entre trabalho e vida pessoal porque
são maiores e mais maduras ou estão em indústrias que não são tão vorazmente competitivas”, ele
afirmou. O momento escolhido para o envio do e-mail, 1h20 da madrugada, parece ter sido
cuidadosamente planejado para reforçar a mensagem: se o chefe estava ali se dedicando ao
trabalho naquele horário, esperava que todos fizessem o mesmo.
Em uma comunicação anterior pelo Twitter, alguns meses antes, Musk já havia afirmado que “ninguém
vai mudar o mundo trabalhando 40 horas por semana”, acrescentando em seguida que sua prática
pessoal era pelo menos o dobro disso, podendo muitas vezes chegar a impensáveis 120 horas
semanais – ou seja, uma média de 17 horas diárias, incluindo sábado e domingo. A postura de um
ícone do empreendedorismo contemporâneo ilustra como a sociedade, influenciada pelo fantasma de
ficar sem emprego, permite que a dedicação ao trabalho extrapole os limites, diluindo-se potencialmente
por qualquer uma das 168 horas da semana. “Muita gente já esqueceu como é a sensação de estar
inteiramente desconectado dos assuntos profissionais”, diz Ana Maria. Uma das recomendações da
psicóloga para evitar os danos causados pelo estresse é manter o máximo possível da separação
entre trabalho e vida pessoal. “Não carrego celular o tempo todo comigo, por exemplo. Ele dá a sensação
de urgência a assuntos que quase nunca são urgentes.”
Ela considera que a decisão contribui fortemente para sua produtividade, pois combate também
compulsão de checar e-mails, redes sociais e notícias. “Cabe a cada um encontrar formas de dar conta
do trabalho dentro de um limite de tempo, porque ele realmente tende a ser invasivo quando não tomamos
providências efetivas”, afirma a pesquisadora.
Somando-se as horas diretamente tomadas pelo trabalho à necessidade que todo profissional tem de
se manter atualizado (com leituras ou fazendo cursos), temos uma realidade em que a maioria ultrapassa,
com generosa sobra, as clássicas oito horas diárias. Trata-se de um retrocesso em vários sentidos,
inclusive no histórico.
O parâmetro de oito horas diárias foi estabelecido há cem anos por uma das primeiras convenções da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência da ONU criada em 1919 pela assinatura do
Tratado de Versalhes, acordo que pôs fim à Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Com a missão de
formular e zelar pela aplicação das normas internacionais do trabalho, a OIT atendia, assim, a uma
das principais reivindicações dos sindicatos, pois até então era comum que operários permanecessem
muito mais tempo no trabalho.
Já naquela época, o desenvolvimento tecnológico trazia a esperança de que a humanidade conseguiria
dedicar-se menos ao trabalho, uma vez que muitas das tarefas executadas pelas pessoas seriam
gradualmente assumidas por máquinas. Essa expectativa se manteve pelo menos até a década de 60,
quando o desenho futurista “Os Jetsons” projetava como seria a vida cem anos à frente, e o pai da
família, George, trabalhava apenas duas horas por semana.
Na vida real, contudo, as horas de trabalho continuam aumentando, mesmo com a crescente
automatização das indústrias. De acordo com o relatório mais recente da Federação Internacional de
Robótica (IFR), o número de robôs industriais comercializados no mundo mais que dobrou nos
últimos cinco anos – no ano passado, a venda chegou a 381 mil unidades, 114% acima do resultado
obtido em 2014, com preço médio de US$ 42,5 mil. Cinco países concentram 72% desse mercado:
China, Japão, Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha.
A eliminação de vagas de trabalho pela adoção de robôs esteve até recentemente concentrada em
atividades 100% repetitivas, que podem ser substituídas sem maiores dificuldades pela automação.
A tendência atual, contudo, é a dos robôs colaborativos, os “cobots”, desenvolvidos para trabalhar lado
a lado com os humanos, assumindo apenas a parte mais maçante ou perigosa das atividades.
“Veremos um grande impulso na adoção de robôs ao longo da próxima década por causa da
disseminação dos conceitos da indústria 4.0”, diz José Rizzo Hahn Filho, fundador e CEO da
Pollux, de Joinville (SC), uma das principais fornecedoras nacionais de soluções em robótica, fundada
há 22 anos. Com mais de 300 robôs implantados, a Pollux passou a apostar nos dois últimos anos na
ideia do aluguel de robôs, que evita a necessidade de um grande investimento inicial, em sintonia com
a tendência da adoção dessas tecnologias por pequenas e médias empresas, de variados setores –
antes, o mercado se concentrava quase todo na indústria automotiva. São contratos que podem durar
entre dois e cinco anos e incluem a manutenção ao longo do período de vigência.
Um estudo da consultoria McKinsey projetou que, em um cenário de adoção acelerada de novas
tecnologias, 30% dos atuais postos de trabalho no mundo poderão ser eliminados até 2030. O mais
provável, contudo, é que, sob um ritmo médio de adoção das novas tecnologias, essa taxa fique em
torno de 15%. De qualquer forma, será um impacto significativo em um país como o Brasil, que já tem
no desemprego ou na informalidade metade da sua força de trabalho ativa, estimada em 105 milhões
de pessoas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O mesmo estudo da McKinsey
chegou à conclusão de que 5% das ocupações existentes no mundo já poderiam ser totalmente
automatizadas com as tecnologias existentes, enquanto em outras 60% a automação não poderia ser
ainda completa, mas atingiria pelo menos um terço das atividades pertinentes à ocupação.
Para quem está estressado pelo receio de ficar sem trabalho, o melhor a fazer é construir alternativas
e um eventual plano B. Afinal, como defende Ana Maria Rossi, gerenciar o estresse depende, acima de
tudo, das decisões pessoais. “Por mais que a gente nem sempre tenha controle sobre as situações
geradoras, podemos desenvolver controle sobre como reagiremos a essas situações para recuperar o
equilíbrio perdido.”
Assim, abrir mão de um emprego que esteja fazendo mal, especialmente quando essa situação já
perdura há algum tempo e não parece ter perspectivas de melhora, pode ser a decisão mais acertada a
longo prazo. “O que causa o adoecimento não é o estresse em momentos pontuais, mas a repetição
frequente desses momentos e a continuidade por longo tempo”, diz a pesquisadora. “Há quem diga
que precisa do emprego para viver, mas muito mais importante que isso é ter saúde para viver. Ninguém
deve se sentir refém de um emprego, e quem se sente assim tem grande chance de adoecer.”
O publicitário Renan Quevedo, de 27 anos, está em meio a uma transição desse tipo. Ele trabalhou
na WMcCann, uma das principais agências do mercado, entre abril de 2013 e abril de 2017. Lidava
com grandes clientes e tinha responsabilidades de diretor de arte. O excesso de dedicação logo se
tornou um peso, contudo. “Eu tinha hora para entrar e não tinha para sair. Muitas vezes a jornada
invadia as madrugadas e os finais de semana. Vivia irritadiço e impaciente”, diz. A válvula de escape
foi o interesse que a arte popular despertou nele ainda nos tempos da faculdade. Já naquela época,
ele começou a pesquisar sobre a vida de artistas populares, por mera curiosidade e prazer.
Em uma sexta-feira de uma semana especialmente estressante, ele avisou na agência que sairia
pontualmente às 8 da noite e decidiu partir dali mesmo direto para o Vale do Jequitinhonha, no norte de
Minas Gerais, já perto da Bahia, dirigindo por 14 horas ao longo de toda a madrugada. O objetivo era
conhecer a ceramista Noemisa Batista dos Santos. E assim ele fez. Ficou por cerca de uma hora com
ela, comprou peças e pegou a estrada de volta, pois na segunda-feira teria que estar no trabalho.
“Aquela viagem me mostrou um universo totalmente novo e fascinante”, diz. Quevedo estabeleceu
a meta de viver pelo menos uma experiência semelhante por mês, sempre com o objetivo de visitar
artistas populares. O planejamento e a expectativa de cada nova viagem lhe davam fôlego para
enfrentar as dificuldades no trabalho. Ainda assim, a inquietação continuava crescendo, pois, além
do cansaço, ele já não se sentia mais satisfeito com o resultado do que estava produzindo. “Eu
chegava em casa exaurido, mas era só olhar para as obras de arte que me sentia melhor.”
Motivado por essa sensação e pela boa repercussão de suas pesquisas, Quevedo tomou a decisão
de deixar o emprego e criou o projeto Novos para Nós, com o propósito de apresentar artistas das
partes mais remotas do país. Juntou as economias, conseguiu ajuda com financiamento coletivo e
iniciou, em 2017, uma viagem que se estendeu por sete meses. Percorreu mais de 27 mil quilômetros
em todas as regiões do país e visitou mais de 300 artistas. Hoje, ele já tem plena certeza de que seu
futuro profissional estará de alguma forma ligado à arte popular. Enquanto busca formas de remunerar
o projeto – com palestras e patrocínios-, ele cumpre tarefas como freelancer para agências de publicidade.
“A relação com o trabalho se transformou completamente, principalmente porque agora consigo controlar
muito melhor o meu tempo.
“A relação com o trabalho se transformou completamente, principalmente porque agora consigo controlar
muito melhor o meu tempo.
Juntando todas as minhas atividades atuais, talvez eu trabalhe ainda mais do que antes, mas me sinto
muito mais feliz, produtivo e realizado.” A história de Quevedo mostra que, além da implosão dos limites
temporais, outro aspecto ligado ao trabalho que vem passando por grande transformação é o espaço
físico. Muitos profissionais já conseguiram subverter o conceito de que precisam estar fisicamente na
sede de uma empresa, graças às possibilidades de trabalho remoto proporcionadas pela tecnologia.
Em meio à tendência de internacionalização do trabalho, os serviços ganharão importância no comércio
mundial – hoje são responsáveis por 54% das transações envolvendo países; em 2025 já terão
abocanhado uma fatia de 75%, seja pela venda direta via digital, seja pela tecnologia utilizada nos
produtos manufaturados. Mesmo quem permanece no ambiente corporativo percebe mudanças
significativas. Em muitas empresas, já não existem mais as tradicionais mesas reservadas a uma
pessoa específica, que tinha o direito de colocar ali seus livros, porta-retratos e até a bandeirinha do
time de futebol. A tendência, sob inspiração do conceito de coworking, são estações de trabalho
rotativas: o profissional senta com seu notebook onde houver lugar. Enquanto houver lugar.
Fonte: Valor Econômico
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