Inadmissível, por exemplo, a isenção de dividendos e do sócio
pejotização
Reforma da Previdência. Afirmei que a reforma era anacrônica porque desconsiderava
o terremoto tecnológico e financeiro que está a abalar os “velhos” mercados de trabalho
da Era Fordista. Construídos sobre as garantias de estabilidade das relações salariais e
das políticas econômicas nacionais de pleno emprego, os “velhos” mercados de trabalho
sucumbiram às peripécias do Velho Capitalismo. O Velho Capitalismo não é o capitalismo
envelhecido, mas, sim, aquele reinvestido em sua natureza, revigorado nas forças da
competição desenfreada entre mamutes empresariais. Empenhados em capturar mais
valor, os mastodontes aceleram o tempo de produção, ocupam os espaços globais e
amesquinham as unidades nacionais onde insistem em sobreviver homens e mulheres de
carne e osso.
Em sua reinvenção, o Velho Capitalismo dissipou as esperanças do capitalismo fordista
dos Trinta Anos Gloriosos. O período glorioso alimentou a concepção, ao mesmo tempo
solidária, generosa e ilusória, da separação entre duas formas do capitalismo: 1. O
capital produtivo em que homens e máquinas se combinam virtuosamente para a produção
de bens e serviços; e 2. O capital “improdutivo” que não produz mercadorias, mas gera
rendimentos “fictícios” para seus proprietários.
No renascimento do Velho Capitalismo, essas formas revelam que não são opostas, senão
contraditórias: desenvolvem-se como dimensões do mesmo processo que subordina a
produção dos meios materiais para a satisfação das necessidades ao império da acumulação
de riqueza monetária. Ao derrubar as fronteiras erguidas pelas políticas intervencionistas
para proteger a produção e o emprego, o Velho Capitalismo soltou o demônio monetário que
carrega na alma.
No livro Phenomenology of The End, Franco “Bifo” Berardi desvenda essas transformações:
“Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação
física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital
mediante a combinação entre as tecnologias da informação e a manipulação das abstrações da
riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção
capitalista tornam a visibilidade física do valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera
abstrata do valor de troca”. A inteligência artificial, a internet das coisas e a robotização têm
sido incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade
das formas financeiras.
➤ Leia também: Brumadinho e o capitalismo
Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada do Velho
Capitalismo. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e
Microsoft, as plataformas ocupam outros setores como finança, hotelaria, transportes,
comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida em domicílio. Aí estão, em
plena forma, as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Os trabalhadores autônomos,
empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade – investimento, clientela –, mas
estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição dos resultados.
Essa organização do trabalho foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro
da era mercantilista, sob a forma do putting-out system. Os comerciantes forneciam a matéria-
prima para os artesãos “autônomos”, que estavam obrigados a entregar o produto manufaturado
em determinado período de tempo.
No capitalismo das plataformas, a utopia do tempo livre transmuta-se
na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, no
endurecimento da concorrência, no enriquecimento de poucos, na precarização e
empobrecimento de muitos na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores por conta
própria. Em seu predomínio pós-Fordista, já perscrutou Michel Foucault, o mercado, “poder
enformador da sociedade”, redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre-concorrência
transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do
seu “capital humano”.
Na realidade real, o capital humano cultivado com os empenhos da educação e da formação
profissional sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela
precarização, pelo empreendedorismo das plataformas e pela continuada perda da
segurança, outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos.
A concentração empresarial promove a rápida expansão dos rendimentos derivados
primordialmente pelo exercício da propriedade de ativos tangíveis e intangíveis.
Isso demonstra que o avanço do patrimonialismo não é uma deformação da Nova Economia,
se não a expressão necessária de suas formas de apropriação da renda e da riqueza.
➤ Leia também: O socialismo real substituído pelo capitalismo selvagem
O projeto de reforma da Previdência agarrou-se aos pingentes do passado para ignorar
o futuro. Mas, para não bloquear o diálogo, prestamos uma homenagem ao consenso
dominante ao aceitar as proclamações a respeito dos efeitos miraculosos da reforma
sobre o crescimento.
Ainda assim, o Velho Capitalismo e suas “novas” formas de trabalho dificultam, se não
inviabilizam, reformas da Seguridade Social que não contemplem uma participação maior
dos impostos gerais, pagos por todos, com forte viés progressivo, sobre a renda e a riqueza.
Isto para não falar da péssima ideia da Carteira Verde-Amarela, uma forma de desobrigar
os patrões de contribuir e, por isso, um facilitário para recontratar trabalhadores com salários
rebaixados.
ESCRITO POR LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Economista e professor, consultor editorial de Carta Capital.
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