terça-feira, 5 de março de 2019

A Reforma da Previdência se agarra ao passado para ignorar o futuro


Inadmissível, por exemplo, a isenção de dividendos e do sócio 

pejotização

Na última edição de CartaCapital, ousei enfiar minha colher no debate sobre a 
Reforma da Previdência. Afirmei que a reforma era anacrônica porque desconsiderava 
o terremoto tecnológico e financeiro que está a abalar os “velhos” mercados de trabalho 
da Era Fordista. Construídos sobre as garantias de estabilidade das relações salariais e 
das políticas econômicas nacionais de pleno emprego, os “velhos” mercados de trabalho 
sucumbiram às peripécias do Velho Capitalismo. O Velho Capitalismo não é o capitalismo 
envelhecido, mas, sim, aquele reinvestido em sua natureza, revigorado nas forças da 
competição desenfreada entre mamutes empresariais. Empenhados em capturar mais 
valor, os mastodontes aceleram o tempo de produção, ocupam os espaços globais e 
amesquinham as unidades nacionais onde insistem em sobreviver homens e mulheres de
carne e osso.
Em sua reinvenção, o Velho Capitalismo dissipou as esperanças do capitalismo fordista 
dos Trinta Anos Gloriosos. O período glorioso alimentou a concepção, ao mesmo tempo 
solidária, generosa e ilusória, da separação entre duas formas do capitalismo: 1. O 
capital produtivo em que homens e máquinas se combinam virtuosamente para a produção 
de bens e serviços; e 2. O capital “improdutivo” que não produz mercadorias, mas gera 
rendimentos “fictícios” para seus proprietários.
No renascimento do Velho Capitalismo, essas formas revelam que não são opostas, senão 
contraditórias: desenvolvem-se como dimensões do mesmo processo que subordina a 
produção dos meios materiais para a satisfação das necessidades ao império da acumulação 
de riqueza monetária. Ao derrubar as fronteiras erguidas pelas políticas intervencionistas 
para proteger a produção e o emprego, o Velho Capitalismo soltou o demônio monetário que 
carrega na alma.
No livro Phenomenology of The End, Franco “Bifo” Berardi desvenda essas transformações:  
“Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação 
física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital 
mediante a combinação entre as tecnologias da informação e a manipulação das abstrações da 
riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção 
capitalista tornam a visibilidade física do valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera 
abstrata do valor de troca”. A inteligência artificial, a internet das coisas e a robotização têm 
sido incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na imaterialidade 
das formas financeiras.
 Leia também: Brumadinho e o capitalismo
Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais aperfeiçoada do Velho 
Capitalismo. Além dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e 
Microsoft, as plataformas ocupam outros setores como finança, hotelaria, transportes, 
comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida em domicílio. Aí estão, em 
plena forma, as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Os trabalhadores autônomos, 
empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade – investimento, clientela –, mas 
estão submetidos ao controle da plataforma na fixação de preços e repartição dos resultados. 
Essa organização do trabalho foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro 
da era mercantilista, sob a forma do putting-out system. Os comerciantes forneciam a matéria-
prima para os artesãos “autônomos”, que estavam obrigados a entregar o produto manufaturado 
em determinado período de tempo.
No capitalismo das plataformas, a utopia do tempo livre transmuta-se 
na ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, no 
endurecimento da concorrência, no enriquecimento de poucos, na precarização e 
empobrecimento de muitos na bolha cada vez mais inflada dos trabalhadores por conta 
própria. Em seu predomínio pós-Fordista, já perscrutou Michel Foucault, o mercado, “poder 
enformador da sociedade”, redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre-concorrência 
transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”, proprietários, sim, do 
seu “capital humano”.
Na realidade real, o capital humano cultivado com os empenhos da educação e da formação 
profissional sofre forte desvalorização nos mercados de trabalho contaminados pela 
precarização, pelo empreendedorismo das plataformas e pela continuada perda da 
segurança, outrora proporcionada pelos direitos sociais e econômicos.
A concentração empresarial promove a rápida expansão dos rendimentos derivados 
primordialmente pelo exercício da propriedade de ativos tangíveis e intangíveis. 
Isso demonstra que o avanço do patrimonialismo não é uma deformação da Nova Economia, 
se não a expressão necessária de suas formas de apropriação da renda e da riqueza.
O projeto de reforma da Previdência agarrou-se aos pingentes do passado para ignorar 
o futuro. Mas, para não bloquear o diálogo, prestamos uma homenagem ao consenso 
dominante ao aceitar as proclamações a respeito dos efeitos miraculosos da reforma 
sobre o crescimento.
Ainda assim, o Velho Capitalismo e suas “novas” formas de trabalho dificultam, se não
inviabilizam, reformas da Seguridade Social que não contemplem uma participação maior 
dos impostos gerais, pagos por todos, com forte viés progressivo, sobre a renda e a riqueza. 
Isto para não falar da péssima ideia da Carteira Verde-Amarela, uma forma de desobrigar 
os patrões de contribuir e, por isso, um facilitário para recontratar trabalhadores com salários 
rebaixados.                                                            

ESCRITO POR 
Economista e professor, consultor editorial de Carta Capital.

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