Hoje
serão discutidas no Parlamento as iniciativas legislativas do governo,
do BE e do PAN que visam garantir a autodeterminação e a autonomia das
pessoas trans nos processos de reconhecimento legal da identidade. De
uma forma geral, as três propostas visam dar um passo para o futuro,
acompanhando aquilo que já se faz em países como Malta, Argentina,
Dinamarca, Noruega e Irlanda: possibilitar que qualquer pessoa possa
autodeterminar o seu género sem necessidade de aprovação de uma entidade
externa - separando por completo a esfera legal da esfera clínica.
A
atual Lei da Identidade de Género foi aprovada a 15 de março de 2011.
Na época, foi um enorme avanço em relação ao procedimento existente
anteriormente: antes da Lei n.º 7/2011, o reconhecimento legal do género
era obtido através de um processo que se interpunha contra o Estado
após vários anos de acompanhamento, provas de vida, tratamento hormonal e
cirurgias - e ainda existia um processo de esterilização obrigatório. O
Instituto de Medicina Legal teria de avaliar o resultado final das
cirurgias e com isso dar o seu parecer para ser apresentado em tribunal.
Este processo podia durar até 12 anos e era um verdadeiro atentado à
privacidade, à dignidade e aos direitos humanos.
De
facto, a Lei da Identidade de Género portuguesa foi uma das primeiras
leis a remover qualquer necessidade de tratamento, alterações físicas ou
provas de vida para a mudança de nome próprio e sexo legal no registo
civil. Porém, definiu como necessário um relatório clínico com um
diagnóstico de "Perturbação de identidade de género". Pouco tempo
depois, e contra o próprio sentido da lei, foi criada uma lista de
médicos habilitados a assinar estes relatórios. O resultado foi a junção
da esfera clínica à legal. Com isto, profissionais de saúde começaram a
fazer depender este reconhecimento legal de género de critérios que vão
muito para lá do diagnóstico e que, indevidamente, jogam com os seus
próprios preconceitos: duas avaliações independentes, tratamentos
médicos, ideias puramente individuais sobre masculinidade ou
feminilidade, entre tantos outros. No fundo, critérios que nada
contribuem para a avaliação do estado das pessoas e que estabelecem
demasiadas barreiras burocráticas e discriminatórias para uma simples
mudança legal.
Passados cinco
anos, um estudo realizado pelo ISCTE em parceria com a ILGA Portugal
para avaliar a aplicação desta lei mostrou que, apesar do impacto
marcadamente positivo no bem-estar e integração das pessoas trans, a
grande maioria das pessoas deparam-se, de facto, com estas barreiras
para conseguir aceder à lei - ou seja, ver a sua identidade reconhecida
pelo Estado.
Estas novas
propostas vão ao encontro das necessidades de muitas pessoas. Ao deixar
de ser necessário qualquer diagnóstico para uma pessoa ver a sua
identidade reconhecida - e sim, as pessoas sabem quem são -, basta ir ao
registo civil e pedir a alteração do nome próprio e sexo legal. As
propostas do Bloco de Esquerda e do governo também pretendem fazer
descer a idade mínima de acesso à lei para os 16 anos, o que permitirá a
muitas pessoas jovens, atualmente já a viver de acordo com o género com
que se identificam, verem-se reconhecidas legalmente. Sendo a escola um
meio importante para o crescimento de menores, a proposta do governo
também introduz a possibilidade de existir um nome social na escola. É
também do governo a proposta de introduzir a proibição de cirurgias a
bebés intersexo exceto em casos de condição clínica relevante.
Porém,
apesar do avanço enorme que estas iniciativas legislativas trazem e do
benefício claro para as pessoas trans, não é de mais dizer que existe
ainda uma necessidade crescente de melhorar acessos aos cuidados de
saúde gerais e específicos. Estamos a falar de uma população
extremamente fragilizada pelo estigma e pressão social e, como
consequência, potencialmente mais sujeita a implicações na sua saúde
mental. É também urgente continuar a apostar na formação de
profissionais dos mais variados meios, como a segurança, a educação ou o
trabalho. Precisamos por isso que estas propostas sejam aprovadas, para
que se dê continuidade a todo um trabalho em prol dos direitos humanos
das pessoas trans.
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