O
assalto ao Capitólio pode ter sido o último ato – porventura o mais revelador – da Presidência de Donald Trump, mas foi também o princípio do fim do que ainda restava da credibilidade dos EUA no mundo.
Pode ser, também, o prenúncio do descalabro de um império que, aos olhos do resto do planeta, começa a perder cada vez maior importância, como se percebeu pelas
reações, em diferentes latitudes, às cenas inimagináveis protagonizadas, na sua maioria,
por uma turba de supremacistas brancos, instigados por um Presidente lunático, egocêntrico e profundamente perigoso, que irrompeu pela casa da democracia americana, disposta a contrariar o resultado de uma eleição inquestionável.
No meio disto tudo, há também uma pergunta à procura de resposta: como é que a democracia resiste a isto?
A tarefa de
Joe Biden e Kamala Harris será, por isso, muito mais difícil, dolorosa e espinhosa do que ainda há bem pouco tempo se pensava. E outra pergunta fica no ar, para ser respondida, com ansiedade, a partir de 20 de janeiro: Como se levanta um país depois disto?
Queda de um império?
“Esqueçam
a ascensão da China, é com a queda da América que se deviam preocupar”,
escreveu Alex Lo, colunista do South China Morning Post, o influente diário de Hong Kong que é agora propriedade de
Jack
Ma (o milionário da Alibaba, que se encontra em parte incerta há
algumas semanas, depois de ter criticado o governo de Pequim).
Para o colunista, o declínio americano não deve surpreender ninguém, à luz da História:
“A
França sob Napoleão III, a Grã-Bretanha sob Winston Churchill e a União
Soviética sob Mikhail Gorbachev também não sabiam que já tinham perdido
o império até que o descobriram tarde demais. O destino dos Estados
Unidos não será diferente.”
Nestes momento particular vale sempre a pena recordar um dos ensinamentos de
Arnold Toynbee, o historiador britânico que foi autor de uma obra monumental sobre o crescimento e queda das civilizações: os grandes impérios terminam porque se suicidam e não por terem sido assassinados.
Vista
de outras latitudes, a realidade dos EUA perde todo o excecionalismo
com que os americanos gostam de olhar para o seu país, tantas vezes a
tentarem dar lições ao mundo sobre tudo e todos. Nesse ponto, Alex
Lo observa, com pertinência, que os quatro pilares em que se fundou o
chamado império americano, na segunda metade do século passado – poder
militar, sistema capitalista financeiro, instituições democráticas e um
sistema eficaz de medicina e de controlo de doenças – estão
hoje todos em retrocesso. Tudo começou com o atoleiro das tropas
americanas no Iraque, prosseguiu com a crise financeira de 2008, mas
culminou, de forma apoteótica, no mandato de Trump, com o desastre
sanitário face à pandemia e a invasão, esta semana, do Capitólio por uma
turba incentivada pelo próprio Presidente.
Imagem do populismo
“É
impossível saber o que virá depois destes acontecimentos, que parecem
ter saído da imaginação de um argumentista de Hollywood”, avisa, do outro lado da fronteira americana,
Pascal Beltrás Del Río, diretor do diário mexicano Excelsior. Na sua opinião, é absolutamente inquestionável
“o dano que a experiência do trumpismo causou à democracia americana”. Mas avisa também, num recado claro para o seu país, que este é
“o único resultado possível do populismo”.
Na Europa, quase todas as análises afinaram pelo mesmo tom. Na
Deutsche Welle, por exemplo, a correspondente da agência alemã em Washington salienta algo que merece reflexão:
“Durante
gerações, os EUA foram um farol de esperança em matéria de democracia e
transição pacífica do poder – mas Trump deixou claro para o resto do
mundo que o sistema dos EUA também é frágil.”
No entanto, como bem salienta
Ines Pohl, a culpa não é exclusiva do homem que, em 2016 e contra todas as expetativas, derrotou Hillary Clinton.
“Os facilitadores à sua volta, que sempre desvalorizaram a sua retórica
e fanfarronice também são culpados. Isso inclui os 12 senadores e mais
de cem deputados que concordaram que a eleição de novembro foi ilegítima
(ou pelo menos questionaram os resultados). Eles não fizeram nada para
parar o fluxo de desinformação e de caos. Os republicanos viram um
autocrata com transtorno de personalidade controlar o seu partido e
foram cúmplices ao deixá-lo formar um governo que só funciona para ele, e
não para o povo.”
Uma realidade, também ela inquestionável, e que o francês
Le Monde aproveitou para, em editorial, sublinhar que
“a tentativa de insurgência liderada pela Casa Branca é uma lição para todas as democracias, especialmente as europeias”.
Criticando, incisivamente, a forma como Marine Le Pen, líder da
Frente Nacional, desculpou Donald Trump, o influente vespertino
parisiense recorda que os acontecimentos desta semana são a prova de que
“a ambiguidade e a aceitação do comportamento não democrático de líderes eleitos” é um terreno escorregadio e perigoso, que precisa de ser evitado.
E a democracia sobrevive?
As cenas dos últimos dias em Washington foram também o rastilho para fazer ecoar, por todo o mundo, uma série de críticas ao modelo democrático ocidental.
Na Guiné-Conacri, por exemplo, o prestigiado editorialista
Boubacar Sanso Barry, do site Ledjely, faz questão de sublinhar que
“para
além da pessoa de Trump, é a imagem da democracia americana, muitas
vezes apresentada como uma referência mundial, que fica manchada.”
“No continente africano em particular, é com um
leve sorriso que
testemunhamos essas ações incríveis”, prossegue. “Porque por mais
abomináveis que sejam as ações dos partidários de Donald Trump, eles
lembram que não é apenas no Terceiro Mundo em geral e na África em
particular, que a democracia ainda pode ser melhorada.”
“Se há lição que devemos tirar, é que estes comportamentos não são
privilégio dos chamados povos atrasados. Ficou óbvio, a partir de agora,
que não é apenas em Conakry, Abidjan ou Kigali que as populações se
deixam manipular por líderes políticos. Não é apenas em África que
militantes, ignorando o bom senso e as leis da República, atacam as
instituições.
Devemos
romper com todos esses julgamentos precipitados e um tanto racistas.
Porque, finalmente, percebemos que em cada homem coexiste a humanidade e
uma certa bestialidade. Seja ele preto ou branco, resida em Nova York
ou em Nairobi. E que, aliás, em nenhum lugar do mundo a democracia é uma
obra acabada.”
Asiáticos desconfiados
Para a
Nikkei Asia, as reações em todo o continente asiático sugerem que o dano à reputação global da América dificilmente será desfeito.
Embora no Japão, na Tailândia e em Singapura,
por exemplo, os líderes máximos tenham proferido apenas algumas
palavras de circunstância, muitos políticos e dirigentes aproveitaram a
ocasião para criticar abertamente os EUA, em especial a arrogância com que Washington costuma impor os seus pontos de vista, perante os problemas internos desses países.
Na Tailândia, o primeiro-ministro, Prayuth Chan-ocha, que enfrentou
meses de protestos de jovens, manteve-se calado, mas um dos seus
principais apoiantes, o senador Somchai Sawangkarn, foi lesto a ir à sua
página do Facebook escrever:
“É
este o modelo de democracia que eles estão a tentar impor às pessoas em
todo o mundo”. Pareena Kraikupt, deputado do Partido Palang Pracharat,
juntou-se ao coro: "Nos EUA, eles usam balas de verdade. Na Tailândia, é
apenas canhões de água".
Já a China, segundo a
Nikkei Asia, depressa tentou aproveitar-se politicamente do caso.
“O
Global Times, um jornal ligado ao Partido Comunista Chinês, descreveu
os distúrbios como um sinal do "colapso interno" da América. A porta-voz
do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Hua Chunying, fez
questão de ecoar argumentos tailandeses contra os manifestantes e
comparou a reação ocidental ao movimento pela democracia em Hong Kong.
‘Se alguém ainda se lembra de como algumas autoridades dos EUA
descreveram o que aconteceu em Hong Kong, pode comparar isso com as
palavras que usaram agora para descrever as cenas no Capitólio", disse."
Os EUA deixaram, com Trump, de ter o respeito do mundo. A tarefa de Biden será, por isso, descomunal. Ou impossível? |
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