Sob Bolsonaro, a maior floresta tropical do mundo perdeu no último ano 11.088 quilômetros quadrados de área, o recorde em 12 anos. Ibama, que em sua ‘melhor fase’, em 2009, tinha 1.600 pessoas zelando pelo cumprimento da legislação ambiental brasileira, agora não tem nem 700
Entre os fatores que impulsionam o desmatamento da Amazônia há os clássicos e os menos óbvios, como a taxa de câmbio. Um dólar alto (a 5 reais), como agora, incentiva o corte ilegal de árvores, seja pela febre do ouro ou para limpar espaços que sirvam depois para pastos e cultivos. A maior floresta tropical do mundo perdeu no último ano 11.088 quilômetros quadrados de área florestal, o recorde em 12 anos. Perseguir os crimes ambientais na Amazônia brasileira sempre foi um desafio descomunal, porque é mais extensa que a soma dos 27 países da União Europeia, mas com o presidente Jair Bolsonaro isso fica ainda mais difícil. Quando as nuvens permitem, os satélites exercem há anos um papel valioso no combate ao desmatamento, mas antes ou depois dele são necessários inspetores ambientais que atuem no terreno. Sempre foram poucos, e agora estão prestes a se tornar mais uma espécie em extinção.
Isso significa um punhado de homens com alguns barcos e helicópteros em um território hostil, com poucos aeroportos e estradas, e onde explorar ilegalmente as riquezas da terra é um dos raros negócios realmente lucrativos. Um veterano fiscal do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) fazia a este jornal, em plena pandemia, as seguintes contas sobre sua equipe: descontados os que por idade ou doença pré-existentes foram afastados pelo coronavírus, os aptos a participar das operações de fiscalização são pouco mais de 20 no Estado do Amazonas, o maior do Brasil. A eles se soma um punhado de investigadores de polícia e algumas dezenas de soldados do batalhão ambiental da PM. Isso para cobrir uma área equivalente a três vezes a Espanha.
Sobretudo na última década, os dados dos satélites “ajudam o Ibama a priorizar as áreas de atuação, porque a mão de obra é limitada”, diz o professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo doutorado abordou justamente o papel da tecnologia neste âmbito. Mas o acadêmico acrescenta que esses funcionários “dependem muito do trabalho de campo, sobretudo nas áreas indígenas, em unidades de conservação, onde existe um desmatamento muito agressivo”. É preciso chegar até lá porque o satélite é capaz de detectar indícios de crime, mas não de neutralizá-lo. Isso implica se apresentar no local para confiscar e destruir os instrumentos usados para cometer o crime ambiental (escavadoras, caminhões, motosserras…).
Segundo Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais, são cada vez mais raras as operações que reúnem na Amazônia fiscais do Ibama vindos de todo o Brasil para perseguir suspeitos importantes em momentos críticos, como secas ou picos de desmatamento.
Quando no começo do século o Brasil tomou consciência da gravidade do desmatamento, agiu contra ele e conseguiu reduzi-lo até atingir um mínimo histórico em 2012. Mas desde então voltou a crescer, acompanhando a grave crise política que culminou na destituição de Dilma Rousseff. E depois veio a recessão.
O problema mais urgente já não é a cuidadosa logística necessária para combater o desmatamento, ou o seu custo. É a falta de vontade política. Ao chegar ao poder, dois anos atrás, Bolsonaro tentou criminalizar as ONGs ambientalistas, nomeou como ministro do Meio Ambiente um defensor do lobby pecuarista e sojicultor, Ricardo Salles, e, como se não bastasse, substituiu ambientalistas veteranos da direção do Ibama por comandantes da PM que pouco ou nada sabem de mudança climática ou biodiversidade.
O professor Rajão observa que uma das consequências disso é que a destruição de equipamentos dos criminosos, “um processo muito importante na luta contra o desmatamento, passou a ser um tabu dentro da instituição. E isso é nefasto porque priva os fiscais do Ibama de um instrumento muito importante”.
Um dos motivos para a falta de fiscais é que desde 2012 não há concurso para o cargo; outro é que a rígida burocracia brasileira impede contratações extraordinárias. O resultado é que, se o Ibama teve em seus melhores anos, por volta de 2009, até 1.600 pessoas zelando pelo cumprimento da ambiciosa legislação ambiental brasileira, agora não chegam a 700, segundo a informação obtida pela Fiquem Sabendo, uma agência especializada em transparência. Sua distribuição territorial é um mistério.
Um veterano da luta contra o desmatamento, que pede para ficar no anonimato por medo de represálias, argumenta que viver longe das zonas mais quentes dos crimes ecológicos reduz os riscos aos quais os fiscais estão expostos —muito maiores se estivessem nas regiões onde agem os madeireiros ilegais. Por isso, não acha ruim que residam em Estados distantes da Amazônia e viajem para lá quando há operações.
Mas não cabe mais ao Ibama dirigir a luta contra os crimes ambientais. Transformado em vilão ambiental do planeta com os incêndios na Amazônia no inverno de 2019, Bolsonaro recorreu às Forças Armadas. Agora são elas que decidem onde e quando os fiscais do Ibama agirão. Também fornecem soldados e aeronaves que, segundo os críticos, na verdade atrapalham operações que exigem o sigilo e a discrição que um batalhão ou um comboio de caminhões dificilmente oferecem.
Outro dos efeitos da chegada de Bolsonaro à presidência é que as multas por crimes ecológicos batem recordes negativos. Se antes o problema era recebê-las, agora não são nem emitidas. O Ibama proibiu todos os seus funcionários de falarem com a imprensa. Os indígenas se queixam de que é cada vez mais frequente que as autoridades façam ouvidos surdos às denúncias de invasão de suas terras e corte das suas árvores. É verdade que denunciar, na Amazônia, nunca foi tarefa simples. Para isso é preciso se dirigir a um lugar que tenha linha telefônica ou Internet, ou fazer uma viagem que pode durar dias.
Não foi surpresa a notícia, no começo de dezembro, de que o desmatamento bateu um novo recorde, segundo a medição oficial do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A União Europeia e o próximo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pressionam o Brasil para que atue com firmeza contra a destruição da Amazônia, num momento em que a mudança climática vai recuperando o protagonismo que a pandemia lhe roubou.
Obstáculo para o acordo comercial UE-Mercosul
O desmatamento agrava o aquecimento climático e, em termos político-econômicos, é o grande obstáculo para que se materialize o tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Vários países, com a França à cabeça, não querem nem ouvir falar de ratificá-lo enquanto a destruição da Amazônia persistir neste ritmo.
Para o embaixador da UE em Brasília, Ignacio Ybañez, os 11.088 quilômetros quadrados destruídos no último ano são “cifras ruins”. Para salvar este acordo, negociado durante duas décadas e selado há um ano e meio, a UE exige do Governo do Brasil “um compromisso político que permita restabelecer a confiança, que garanta que as cifras não vão se repetir e que haverá uma mudança de tendência”. A União, que já decidiu não tocar nos termos do acordo, pretende obter garantias do Brasil para dissipar as dúvidas dos sócios reticentes, e que a Comissão Europeia possa apresentar o acordo ao Conselho e ao Parlamento Europeu para avançar no processo de ratificação.
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