Pedro Marques Lopes
Sim,
eles comem a nossa comida e respiram o nosso ar e esperam que nós o
mantenhamos puro e saudável; eles exigem que sejamos educados para que
trabalhemos para eles, e para esse propósito esperam que paguemos um bom
sistema de educação pública. Eles também contam que vejamos os filmes
deles, que compremos os seus produtos, que usemos os seus softwares. (...) Mas essas celebridades e empresários preferem nada fazer para que tudo isso exista. Deixam esse encargo para nós."
Tenho
pena de não ter sido eu a escrever isto. Foi um senhor chamado Frank
Thomas que, a propósito dos Paradise Papers, o fez numa crónica que
publicou no The Guardian da passada quinta-feira.
No
fundo, o cronista americano resume em poucas palavras o que está mais
diretamente em causa neste terrorismo institucional contra as
comunidades que em vez de AK-47 usa armas mais poderosas como os
paraísos fiscais e a fuga massiva a impostos. As consequências práticas
de um atentado permanente aos valores que permitem que uma comunidade se
mantenha equilibrada, que a confiança entre as pessoas desapareça e se
chegue a uma espécie de barbárie de cada um por si.
Talvez
falte a Frank Thomas lembrar que as forças de segurança que nós pagamos
estão sobretudo ao serviço de quem menos contribui para a sua
existência e funcionamento, que os tribunais servem muito mais para
defender os interesses deles do que os nossos direitos, que nós pagamos
para que quem roube um euro vá preso e subsidiamos quem rouba milhões e
milhões. Roubar? Não, roubar não é o termo. O que estes senhores e
senhoras fazem não é roubar. O que fazem é legal, pelo menos não é
ilegal. E esse é, talvez, o maior problema, como também bem nota o
referido autor.
De facto, o
que estas gigantescas corporações, multimilionários, artistas,
desportistas fazem não é, na maioria das situações, contra nenhuma lei.
As engenharias fiscais, as sociedades em cascata, os milhares de
artifícios legais só disponíveis para os muito ricos. O que os Panama,
Paradise e outros papers nos dizem é que há uma casta acima da
lei. Um grupo de gente para quem andamos todos a trabalhar e quase nada
devolvem às sociedades que lhes permitem ter aquilo que têm.
Quando googlar, mandar um e-mail,
escrever numa folha de cálculo, comprar uma coisa qualquer através da
internet, lembre-se de que essas magníficas corporações pagam
percentualmente muito menos impostos do que um qualquer cidadão,
daqueles privilegiadíssimos, que ganhe 2000 ou 2500 euros por mês. Que
essas empresas e muitas outras basearam-se, claro está, na enorme
criatividade e capacidade de trabalho dos seus fundadores e dos seus
trabalhadores, mas aproveitaram todas as infraestruturas que os Estados,
pagos por si e por milhões como você, construíram - vias de
comunicação, a própria internet e tudo o resto.
Quem
fala dessas empresas pode também falar dos muito ricos. E não devem ser
esquecidos os artistas e desportistas que tanto aplaudimos e que tantas
vezes nos fazem gastar o pouco que nos resta, que seguimos para todo o
lado, que defendemos com unhas e dentes. São os mesmos que dependem de
nós e que não hesitam em esquecer-se de tudo o que lhes damos na altura
em que têm de nos devolver algumas migalhas. Vemo-los muitas vezes em
eventos de caridade ou de solidariedade a destilar, sabemos agora,
hipocrisia.
Lembro-me de na
altura dos Panama Papers ter escrito que nada podia continuar como
dantes. A verdade é que nada mudou e há bons indícios de que nada vá ser
alterado. Bem sei que a globalização gerou um mundo em que o poder
financeiro se tornou de facto universal e o político - e dificilmente
deixará de assim ser - continuou local. Mas a questão é até simples: ou o
poder político, reflexo da vontade das comunidades, se consegue impor
ou a nossa maneira de viver implode. E se os nossos representantes se
mantêm cegos e surdos à realidade que estes papers todos nos mostram é
porque simplesmente deixaram de ter a capacidade de nos representar.
Não
é pura e simplesmente possível uma comunidade viver na desconfiança sem
que se desagregue ou, no mínimo, sem que corra seriíssimos riscos de
isso acontecer. A desigualdade que aumenta já não é só a de rendimentos,
é a própria igualdade de facto perante a lei que está em causa. Melhor,
a lei não é a expressão da vontade popular e não é elaborada para o bem
comum mas só para o bem de alguns.
Os
Paradise Papers são a continuação de um romance de terror que desemboca
na descredibilização completa da democracia, na perda de confiança dos
representados nos seus representantes, na perda de valores fundadores do
nosso modelo social e no desprezo por figuras que consideramos
referências para as comunidades.
Não,
este não é um texto de um revolucionário. É apenas um texto de um
conservador que gostaria de continuar a viver em democracia, numa
sociedade em que as pessoas não tivessem razões evidentes para
desconfiar umas das outras e que acha o capitalismo um bom sistema. Mas
que julga saber que não é possível um sistema sobreviver muito tempo
quando os que menos podem pagam o mundo dos que mais podem, quando fica
claro que a lei, que tem de ser um reflexo dos nossos valores e da nossa
moral, serve para que uns tenham cada vez mais e outros cada vez menos.
O último livro de Robert Reich, ex-secretário de Estado de Bill Clinton, tem o título Salvar o Capitalismo e o subtítulo "Para todos e não só para alguns".
É exatamente isso.
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