Tradicionalmente, país sempre celebrou e tolerou, mesmo sob comando de governantes muçulmanos, a sexualidade e o erotismo - até a chegada dos britânicos.
3 nov 2017
A celebração do Dia dos Namorados (ou Dia de São Valentim) causa
tumultos todos os anos na Índia. De um lado, os namorados que não veem
nada de mal em demonstrações públicas de afeto como trocar rosas e andar
de mãos dadas. De outro, patrulhas formadas por hindus radicais que
creem se tratar de uma falha moral grave, e que se dedicam a intimidar
os casais.
A ação desses autoproclamados patrulheiros da moral contrasta com a
ideia que muitos têm da Índia fora do país. Basta pensar que se trata do
berço do Kama Sutra e lar de uma rica tradição em esculturas eróticas.
"Na cosmovisão indiana, o universo foi criado pelo desejo cósmico. A
sensualidade é parte do sagrado", diz à BBC a historiadora da religião
Madhu Khanna.
O prazer como um sentido da vida
Ela explica que o prazer é cultivado e parte do propósito da vida
humana e de sua transcendência. "A sensualidade não é algo para se
envergonhar, muito pelo contrário. Tem um papel muito importante para os
indianos. Não apenas no sexo, mas como uma estética da vida", diz
Khanna.
Foi neste contexto que surgiram na Índia expressões de sensualidade que
seriam impensáveis em outras culturas, inclusive para os ocidentais de
hoje em dia.
O Kama Sutra, manual de práticas eróticas, foi compilado no século 3. E
fala de práticas ainda mais antigas. "Kama, em sânscrito, não significa
sexo, e sim prazer, desejo", diz Nybdi Aditya Haksar, autor de uma
tradução do livro.
O livro se concentra na busca por prazer em cada aspecto da existência.
Haksar contextualiza: "Esta busca (pelo prazer) é apenas um dos três
princípios da vida humana. Os outros são a busca da bondade e da
virtude, e a busca da prosperidade e da riqueza", diz ele.
Relevante até hoje
Dos sete capítulos que compõem o Kama Sutra, somente o segundo trata de
sexo, propriamente. "É muito gráfico, explica com grande detalhe as
posições que podem ser usadas na relação sexual", diz Haksar à BBC Mundo
(serviço em língua espanhola da BBC).
Sandhya Mulchandani, autora do livro
O Kama Sutra para Mulheres
, diz que apesar de algumas das posições parecem estranhas, muitos dos
princípios do livro continuam válidos em nossos dias. "É um livro muito
moderno em vários aspectos. Por exemplo, reconhece o desejo da mulher e o
fato de que elas podem tomar o controle em uma relação sexual",
explica.
"O Kama Sutra é como uma revista que ensina os rapazes a ir a um
encontro. Diz como comportar-se, recomenda que tomem banho, ponham
roupas limpas, cortem as unhas, e mais importante, a escutar a mulher e
não ser egoísta", diz ela.
Mulchandani diz que o Kama Sutra só poderia ter surgido em uma cultura
muito madura e tolerante, em que "se celebra a vida em toda a sua
glória".
Templos eróticos
Outra evidência desta abertura sexual no passado da Índia são os
templos de Khajuraho As impressionantes esculturas em pedra de Khajuraho
continuam espantando - e encantando - os visitantes nesta cidade na
região central da Índia. Algumas representam ninfas voluptuosas em poses
sugestivas. No entanto, outras mostram casais em posições sexuais
incríveis e acrobáticas.
"São poucos os templos que têm essas esculturas eróticas. Representam
posições sexuais como outras obras, de outras culturas, mostram homens
em guerra", explica Haksar.
Assim como outros especialistas, Haksar diz que é errada a crença
popular de que a repressão sexual na Índia começou quando ela esteve sob
o domínio muçulmano, que perdurou por quase 300 anos. "O Império Mogol
(do início do século 16 a meados do século 19), apesar de não ser tão
aberto, permitiu o florescimento cultural da Índia e avalizou um grande
refinamento nas artes", diz a historiadora Khanna.
Ness período, os governantes eram islâmicos, mas isso não interferiu na
vida diária dos habitantes da Índia. "A cultura islâmica teve momentos
de maior abertura. Na Índia, a poesia persa produzida durante o período
mogol, apesar de falar sobre a divindade, possui uma carga homoerótica",
diz Saleem Kidwai, especialista em história medieval e coautor do livro
Amor Homossexual na Índia
.
Imposição da Coroa britânica
A mudança na Índia, de celebrar o sexo a transformá-lo em tabu, é "um
processo complexo, não muito fácil de explicar", diz Kidwai. "Mas em
linhas gerais, podemos dizer que é uma mudança da metade do século 19.
Um ponto de referência é a revolta de 1857 contra a East British
Company, que dominava a Índia", diz.
A revolta foi reprimida violentamente e a Índia passou ao controle
direto da Coroa britânica que passou a criar leis de acordo com os
próprios valores, baseados à época na moralidade vitoriana. Este
conjunto de normas, consolidado durante o reinado da rainha Vitória
(1837-1901), "se caracterizava por uma moral muito puritana, com regras
sobre a família e sobre como homens e mulheres deveriam conduzir-se",
diz Kidwai.
"Uma parte da sociedade indiana, ao sentir-se fracassada e escravizada,
começou a reexaminar a própria cultura e a imaginar quais mudanças
deveriam ser feitas. Alguns, especialmente aqueles educados pelos
britânicos, chegaram à conclusão de que a atitude indulgente em relação
ao sexo era uma coisa ruim", diz o historiador Kidwai.
"O colonialismo prejudicou muito nossa liberdade de pensamento", afirma
Khanna. "Não só na Índia, mas em todas as partes; quando as pessoas se
sentiram mais 'racionais', começam a questionar suas tradições e mitos",
diz Mulchandani.
Além das visões estrangeiras, há também algumas correntes mais estritas
do hinduísmo que consideram o sexo um tabu. Entre estas correntes, está
a que inspira o partido BJP, que hoje governa o país. As patrulhas de
fundamentalistas que caçam namorados do dia de São Valentim são mais
ativas nos Estados governados pelo partido.
"O hinduísmo é tradicionalmente aberto, mas alguns setores políticos de
direita têm uma visão menos tolerante à sexualidade", diz Kidwai.
Mulchandani diz que, apesar da celebração da sexualidade ser parte da
cultura indiana, ela acabou sendo mais apreciada na esfera privada.
"Posso ser um ser muito sexual, mas não posso demonstrá-lo
publicamente", diz ela.
A sensualidade, porém, é algo mais difícil de ocultar. "É da natureza
da sociedade e do povo. Se expressa a todo momento na Índia", diz
Mulchandani.
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