Balaram Dhakal é da casta Brahmin e se casou com uma mulher de casta imediatamente "abaixo" da sua na tradição hindu. Os pais dele não aceitam comer alimentos tocados por ela ou pelo neto. Na Índia, 90% dos casamentos são entre pessoas da mesma casta.
11 nov 2017
Balaram Dhakal se interessou por Nitu Karki assim que a viu, em 2007,
na fileira da frente da sala onde ele daria aulas de gestão hoteleira,
em Katmandu, no Nepal. "Eu a achei muito bonita. Os olhos claros me
chamaram a atenção e eu gostei do jeito dela", conta.
Na última semana do curso, ele tomou coragem e convidou a moça para
tomar chá. "Ela disse 'sim'. Também tinha gostado de mim. Depois de um
mês de namoro eu já tinha decidido que queria me casar com ela", relata
Balaram, que coordena a equipe de garçons do bar de um hotel cinco
estrelas de Katmandu.
À primeira vista, todos os ingredientes típicos para o começo de um
relacionamento estavam ali: os dois eram solteiros e estavam
apaixonados.
Mas a verdade é que havia um abismo entre eles difícil de equalizar. O
que separava o casal não era dinheiro, nem interesses e afinidades. Era
algo ainda mais complicado de resolver no contexto cultural de alguns
países de maioria hindu, como Nepal e Índia - a diferença de castas.
Mais do que sobrenome, trabalho ou recursos financeiros, o que define o
status social nesses dois países é a casta a que a pessoa pertence,
determinada no nascimento e por hereditariedade, explica a pesquisadora
Dalel Benbabaali, da Universidade de Oxford, que estuda o efeito
político e social da estratificação por castas no sul da Ásia.
"A divisão por castas está fortemente enraizada na mentalidade e
cultura dessas sociedades. Existem leis que proíbem tratamento
discriminatório e muitos negam que haja preconceito por casta. Mas é
justamente no momento da escolha do parceiro para o casamento que essa
divisão se torna mais clara", diz ela à BBC Brasil.
"As famílias de casta mais alta, muitas vezes, não admitem que seus filhos se casem com pessoas de castas inferiores."
Balaram é Brahmin, considerada a casta mais "alta" na tradição hindu,
associada culturalmente aos sacerdotes e professores. A mulher por quem
ele se apaixonou, Nitu, é Chhetri (ou Kshatriya), segunda mais alta
casta na hierarquia, associada aos "guerreiros" e que compunha a família
real nepalesa (o país aboliu a mornarquia e hoje tem um sitema de
parlamentarismo multipartidário).
As duas outras castas, em ordem de "hierarquia", são: a Vaishya
(associada a funções de comércio, agricultura e pastoreio) e a Shudra
(trabalhadores braçais). Na base da pirâmide social estão os "dalits" ou
"intocáveis", que não pertencem a essas castas e a quem são delegados
serviços "degradantes" na cultura hindu, como manuseio de cadáveres e
limpeza de banheiros.
O
Manusmriti
, mais importante livro sobre as leis hindus, escrito pelo menos mil
anos a.C., "reconhece e justifica o sistema de castas como a base da
ordem da sociedade". A crença é que as quatro castas (Brahmin,
Kshatriya, Vashya e Shudra) se originaram de Brahma, o Deus da criação.
No topo da hierarquia, os brahmins teriam surgido da cabeça de Brahma.
Os Kshatriyas, dos braços de Brahma. Os Vashya viriam das coxas e os
Shudras, dos pés.
O peso da tradição milenar se revelou bem claro quando Balaram Dhakal
anunciou aos pais que se casaria com uma mulher de casta imediatamente
"inferior" à dele.
"Minha mãe ficou inconsolável, com muita raiva. Ela dizia: `Mas por que
você escolheu uma pessoa de casta inferior? Você tem que se casar com
uma Brahmin'", relata Balaram.
Ele desafiou a família e se casou com Nitu, mas as portas da casa dos
pais dele nunca se abriram para ela. "Tentei apresentá-la para os meus
pais, mas minha mãe ficava irritada e não queria que a minha esposa
frequentasse a casa deles."
O pai era mais flexível e aceitava ter contato com a nora. Mas impunha
uma condição. "Ele disse que não comeria alimento que fosse preparado
pela minha esposa, nem sentaria à mesa com ela para uma refeição", diz
Balaram.
Há cinco anos, o casal teve um filho. Os avós quiseram conhecê-lo, mas
impuseram a mesma regra: não se sentariam à mesa para comer com o
menino.
"Eu me sinto muito mal com isso, porque a minha família acaba não
convivendo com meus pais. Eu queria todos à mesa, juntos. Queria que
meus pais aceitassem a minha esposa e que tivessem mais contato com o
meu filho", afirma Balaram.
Ao contrário dos pais de Balaram, a família de Nitu aceitou bem o
casamento. Os pais e a irmã dela convivem bastante com o casal e o filho
deles.
De pai para filho
A casta na tradição hindu é passada de pai para filho, num rígido
sistema parcialmente responsável por uma sedimentada estratificação
social. Integrantes das castas "inferiores" ainda hoje são discriminados
e têm menos oportunidade de estudar e enriquecer.
Embora haja leis na Índia e no Nepal proibindo tratamento diferenciado
por castas, a divisão pode ser claramente vista nos bairros, escolas,
universidades, no preenchimento de postos de trabalho e, principalmente,
nos casamentos.
Segundo a professora Benbabaali, 90% dos matrimônios na Índia são entre pessoas da mesma casta.
"E dos 10% que sobram, raros são os casos de casamento entre um dalit e
uma pessoa de casta superior, como Brahmin. Geralmente são casamentos
entre pessoas de castas superiores", afirma a professora de Oxford.
Embora essa divisão social seja uma característica típica da religião
hindu - que acredita que a reencarnação em uma casta inferior ou
superior depende do comportamento adotado na vida passada -, esse
sistema é tão fortemente enraizado nas comunidades indianas e nepalesas
que persiste mesmo entre adeptos do islã e do cristianismo, diz
Benbabaali.
"O hinduísmo tem influenciado outros grupos religiosos no sul da Ásia.
Mesmo muçulmanos e cristãos seguem sistemas de castas. Essas pessoas, em
sua maioria, são hindus que se converteram e, mesmo depois da
conversão, mantêm suas identidades de castas."
"Em igrejas católicas, você verá dalits cristãos sentados atrás e
perceberá que os padres são, muitas vezes, integrantes das castas
superiores. E, em alguns cemitérios muçulmanos, existe segregação por
casta, com uma área separada para os dalits. Muitas dessas conversões
foram uma tentativa de escapar da opressão de casta, mas o que se vê é
que a discriminação persiste."
Policiamento até no Tinder
Benbabaali explica que é possível identificar a qual casta uma pessoa
pertence pelo sobrenome e, em muitos vilarejos, todos sabem a casta dos
vizinhos.
"Alguns nomes são fortemente associados a uma casta ou outra - Pandit,
por exemplo, é um nome comum entre os Brahmins indianos. Mas, nos
povoados, todos sabem quem é de cada casta. E existe uma certa
estratificação urbana, com ruas só ocupadas por dalits e bairros de
Brahmins, por exemplo", afirma a professora.
Segundo Benbabaali, por mais que a resistência em se relacionar com
castas diferentes esteja lentamente se reduzindo na Índia e no Nepal, a
importância ainda dada a isso pode ser vista até na dinâmica dos
aplicativos de relacionamento.
"Mesmo no Tinder, logo depois do primeiro 'oi', 'tudo bem', vem a
pergunta: 'Qual é o seu nome todo?'. É um modo de identificar a casta",
diz.
No mercado imobiliário da Índia também é possível verificar, conforme a
professora, esforços para evitar inquilinos de castas baixas. "Uma
forma comum usada para evitar aluguel para muçulmanos ou dalits é
anunciar o imóvel destacando que só se aluga para vegetarianos."
Tradicionalmente, quanto mais elevada a casta, maiores as restrições
alimentares. Normalmente os Brahmins são vegetarianos, por exemplo. É o
caso dos pais de Balaram. "Eles são muito tradicionais. Não comem carne e
seguem à risca todos os rituais e costumes da nossa casta", diz ele.
Movimentos pelos direitos dalits
Nos últimos anos, vários movimentos foram criados, principalmente na
Índia, em defesa dos direitos dos dalits e pela inclusão social de
integrantes de castas consideradas "inferiores".
A Constituição indiana, de 1950, inaugurou uma série de medidas
afirmativas com o objetivo de dar oportunidade a grupos marginalizados
na hierarquia de castas do país.
Foram instituídas, por exemplo, cotas em instituições de ensino e para
cargos no governo, além de assentos no Parlamento e nas Assembleias de
Estado. O objetivo era tentar corrigir centenas de anos de
discriminação.
No entanto, o preconceito por casta persiste, principalmente em relação
aos dalits, considerados "impuros" e, por isso, apelidados também de
"intocáveis".
"Existem casos de pais de alunos que protestam contra ter dalits entre
os cozinheiros que preparam as refeições das crianças na escola. Alegam
que estão poluindo a comida e pedem a demissão deles", relata
Benbabaali.
Efeitos sociais e econômicos
Pesquisadores apontam que o sistema de castas tem impacto tanto na
desigualdade social quanto no desenvolvimento econômico dos países que
adotam essa estrutura.
Em 2009 e 2010, 82% dos dalits na Índia estavam abaixo da linha de
pobreza, sobrevivendo com US$ 2 por dia, conforme o Censo de 2011, que,
pela primeira vez, levou em conta a divisão de castas.
Para os professores Katherine S. Newman, da Universidade Johns Hopkins
(EUA), e Sukhadeo Thorat, da Universidade Jawaharlal Nehru (Índia), o
sistema de castas também gera uma alocação "ineficiente" da força de
trabalho, ao criar estigmas para determinadas funções, como as
relacionadas à tarefa de limpeza, e ao impor barreiras para que dalits
exerçam cargos de prestígio.
No artigo
Casta e Economia da Discriminação: Causas, Consequências e Soluções
, eles destacam que membros de castas "superiores" preferem ficar um
período desempregados a atuar em funções tidas como "degradantes" ou
"poluidoras" da alma.
Enquanto isso, os dalits são levados ao desemprego ou a atuar em funções marginalizadas.
"Ao impedir a mobilidade da força produtiva, da terra, do capital e da
iniciativa privada, o sistema de castas cria segmentações e monopólios.
(...) Ao restringir a livre movimentação de mão de obra de acordo com a
ocupação, o sistema de castas se torna diretamente responsável pelo
desemprego voluntário dos indivíduos de casta elevada, e pelo desemprego
forçado de quem está na base (da pirâmide)", dizem.
Alguns dalits, porém, conseguiram superar as barreiras. Em 1997, tomou
posse o primeiro presidente dalit da Índia, Kocheril Raman Narayanan.
Eleito pelo Parlamento em julho, o atual presidente da Índia, Ram Nath
Kovind, também é dalit, mas sua indicação foi vista com suspeição por
ativistas: ele é criticado por nunca ter sido atuante na defesa dos
direitos dos dalits. Além disso, a função de presidente na Índia é
apenas cerimonial.
E o estigma de ser dalit é complexo: no ano passado, a Índia se chocou
com a morte de Rohith Vemula, um estudante de doutorado de 26 anos que
se suicidou dentro do campus da Universidade Central de Hyderabad.
Vemula e outros quatro estudantes dalits foram acusados de terem
agredido um membro de um grupo estudantil ligado ao partido nacionalista
indiano BJP. A universidade havia decido expulsá-los de suas
residências estudantis.
Os jovens dalits negaram terem cometido a agressão. Vemula, que cursava
sociologia e integrava um grupo de defesa de estudantes dalits, deixou
uma carta antes de se matar.
"Meu nascimento foi um acidente fatal. Eu estava sempre com pressa.
Desesperado para começar uma vida. Eu não estou triste. Estou só vazio",
disse ele. "Eu sempre olhava as estrelas e queria ser um escritor, um
escritor de ciência, como Carl Sagan. Mas, no final, essa é a única
carta que eu vou escrever."
Em dezembro de 2015, um mês antes de morrer, ele enviou uma carta ao
vice-chanceler da universidade reclamando das "humilhações" sofridas
pelos dalits ali.
"Por favor, nos dê veneno na hora da admissão para a universidade, em vez de nos humilhar assim", disse ele, na carta.
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