CPI acusa Ministério da Fazenda de exagerar problema nas contas das aposentadorias, mas outros economistas rebatem conclusões de relatório aprovado no Senado; entenda os principais argumentos dos dois lados.
2 nov 2017
Vencidas as denúncias criminais que ameaçavam seu mandato, o presidente
Michel Temer concentra agora seus esforços em aprovar a polêmica
reforma da Previdência.
Na última quarta-feira (1), justamente quando a Câmara mandava para a
gaveta o pedido para processar o presidente, no Senado, a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência imprimia uma derrota ao
governo ao aprovar por unanimidade um relatório que nega a existência de
deficit nas contas da aposentadoria e rejeita a necessidade de
mudanças.
"A reforma não anda (no Congresso). Como é embasada em premissas
falsas, conforme a CPI comprovou, ela vai empacar por si só", disse o
senador Hélio José (Pros-DF), autor do relatório baseado em uma
investigação de seis meses.
Essas supostas premissas falsas podem ser resumidas em três itens
principais: inclusão de servidores federais (civis e militares) no
rombo, projeções "exageradas" de envelhecimento da população e má gestão
dos recursos.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, reagiu dizendo que o rombo
na Previdência é inquestionável. O governo considera essencial a reforma
para tirar as contas públicas do vermelho. "Não é momento para
demagogia", criticou.
Mas afinal, há ou não deficit? A BBC Brasil ouviu autoridades e
especialistas e explica abaixo os principais argumentos dos dois lados
dessa discussão.
1) O que deve entrar nessa conta?
Quando se fala em rombo, o primeiro ponto de discórdia é o que deve entrar nesta conta.
O governo aponta para um desequilíbrio tanto no regime que atende os
trabalhadores do setor privado (INSS), quanto no de aposentadoria dos
servidores públicos.
No caso dos servidores federais, as aposentadorias e pensões de 982 mil
pessoas (civis e militares) registrou um deficit em 2016 de R$ 77,2
bilhões. Já o INSS, que atendeu cerca de 27 milhões de aposentados e
pensionistas no ano passado, teve deficit de R$ 149,7 bilhões. A
diferença fica mais clara quando se calcula o tamanho do deficit por
pessoa nos dois regimes. No INSS, equivale a R$ 5,5 mil por pessoa,
enquanto entre servidores federais civis e militares chega a 77,2 mil.
A conclusão da CPI se baseia no argumento de economistas que defendem
que os regimes de aposentadoria dos setores público e privado são
diferentes e devem ser tratados separadamente.
Além disso, sustentam que, segundo o artigo 194 da Constituição
Federal, as contas da Previdência dos trabalhadores privados devem ser
contabilizadas dentro da Seguridade Social, que inclui ainda as receitas
com outras contribuições sociais e despesas com Saúde e benefícios como
o Bolsa Família.
Segundo cálculos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal (Anfip) citados pela CPI, a Seguridade Social apresentou
em média saldo anual positivo de R$ 50 bilhões entre 2005 e 2016. O
único saldo negativo desse período, de R$ 57 bilhões, ocorreu no ano
passado - segundo a Anfip isso foi reflexo da crise econômica, que
reduziu a arrecadação de tributos, mas trata-se de uma situação
conjuntural que será revertida com a retomada da economia.
Para chegar a essa cálculo, a Anfip desconsiderou a aplicação da DRU
(Desvinculação de Receitas da União), mecanismo que permite ao governo
usar 30% das receitas da Seguridade Social para outras despesas.
Já o governo estima resultados muito diferentes para o mesmo período.
Segundo os dados do Ministério da Fazenda, a Seguridade Social registra
deficit há muitos anos e o rombo chegou a R$ 243 bilhões no ano passado.
A grande diferença nos cálculos é que o governo inclui nessa conta o
impacto da DRU e também o deficit da aposentadoria dos servidores
públicos.
Segundo o procurador do Tribunal de Contas da União Júlio Marcelo de
Oliveira, a DRU (R$ 92 bilhões em 2016) na prática é quase toda usada
para cobrir o rombo da Previdência do setor público.
"A discordância central é sobre a metodologia para apurar se há
deficit. Olhar o resultado global da seguridade não significa que não
existe rombo. Na prática, isso tira recursos da saúde e assistência
social", diz Oliveira.
"Não se trata de contabilidade heterodoxa. É o que a Constituição
Federal manda", rebate o presidente da ANFIP, Floriano Martins.
2) O deficit do setor público está "equacionado"?
Para críticos da CPI da Previdência, o relatório final joga o rombo do
regime público para debaixo do tapete. Eles ressaltam que as
aposentadorias pagas aos servidores são bem mais altas que as recebidas
pelos trabalhadores da iniciativa privada. Dessa forma, esse déficit,
coberto pela receita de impostos, significa uma transferência de renda
de toda a sociedade para setores que já ganham mais.
Segundo o Ministério do Planejamento, a média paga aos inativos do
Poder Executivo em 2016 foi de R$ 7.620. Já o Poder Judiciário, pagou em
média R$ 22.245, enquanto os aposentados do Poder Legislativo receberam
em média R$ 28.593 por mês. No INSS, por sua vez, o benefício médio
está em R$ 1.287.
Questionado sobre a falta de recomendações da CPI para reverter o rombo
do regime público, o senador Hélio José disse à BBC Brasil que a
previdência dos servidores "já está equacionada pelas reformas
anteriores", adotadas desde os anos 90.
O teto das aposentadorias de quem foi contratado depois de 2013, por
exemplo, é igual ao do INSS (hoje em R$ 5.531,31). Quem quiser receber
mais precisa aderir a um sistema de previdência complementar.
A questão é que, como essas regras só valem para novos funcionários,
seu impacto sobre o orçamento vai demorar décadas. As projeções do
governo federal indicam que o rombo na previdências dos servidores civis
da União continuará crescendo até 2048, ano em que atingirá R$ 268,6
bilhões. Apenas a partir daí o deficit deve começar a recuar, chegando a
zero no final do século.
"O atual sistema concentra renda", crítica o economista Nelson Marconi, professor da FGV-SP.
Por outro lado, os dados mostram uma estabilidade desse rombo em
relação ao PIB (riqueza gerada pelo país) no patamar de 0,6% nos últimos
anos, com pequenas variações. Para a economista Denise Gentil,
professora da UFRJ, um das principais acadêmicas a negar a existência do
deficit da Previdência, esse é o indicador que importa.
3) O problema é de má gestão?
Outro argumento do relatório da CPI é que o rombo apontado pelo governo
seria problema de má gestão das contas da Previdência. O documento
ressalta que houve um grande volume de descontos nas contribuições
previdenciárias concedidas nos últimos anos, como por exemplo a
desoneração da folha, que visava evitar o desemprego, mas acabou
mostrando pouco resultado nesse sentido. Além disso, o governo dá também
isenções a alguns setores, como pequenas empresas e entidades
filantrópicas. A Receita Federal estima que essas desonerações
significam menos R$ 65 bilhões em arrecadação neste ano.
Além disso, o relatório da CPI também destaca o grande volume de dívida
previdenciária - cerca de R$ 450 bilhões de contribuições não pagas
pelas empresas. Segundo a Procuradoria da Fazenda Nacional, no entanto,
somente R$ 175 bilhões correspondem a débitos recuperáveis, já que
muitas das empresas com dívidas são falidas.
À BBC Brasil, o secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano,
reconhece ser importante acelerar os processos de recuperação dessas
dívidas e a necessidade de rever desonerações, mas diz que isso não
resolve o problema da previdência no longo prazo, já que o processo de
envelhecimento da população manterá as despesas com aposentadoria em
alta. "Recuperar dívidas e reverter desonerações são um paliativo",
afirmou.
Já Denise Gentil diz que o problema maior é de má gestão de política
econômica. Na sua visão, a "agenda neoliberal" adotada pelos governos
nos últimos anos, como corte de investimentos e juros altos, deprimiu o
crescimento, impactando diretamente a arrecadação de impostos, inclusive
a receita da Previdência.
"Temos que nos perguntar: a quem interessa essa reforma? Aos bancos,
aos planos de previdência privada. É um rombo produzido para atender a
esses interesses", argumenta a professora. Floriano Martins reforça o
argumento: "Se tiver crescimento econômico, a previdência some das
manchetes de jornal", diz.
4) Temor exagerado com envelhecimento?
A CPI também acusa o governo de prever um envelhecimento exagerado da
população. "Ao longo deste relatório é possível verificar a
inconsistência de dados e de informações anunciadas pelo Poder
Executivo, que desenham um futuro aterrorizante e totalmente
inverossímil", diz o documento.
O relatório cita estudo realizado por Gentil e outros economistas. Ele
diz, por exemplo, que o governo faz suas projeções com base na Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2014 em vez de usar os dados
do Censo de 2010, que seriam mais completos.
Ambas são pesquisas do IBGE - enquanto o Censo vai a todos os
domicílios do país a cada dez anos, com um conjunto menor de perguntas, a
Pnad faz levantamentos amostrais, mas com questionários mais amplos.
Gentil afirma que fez projeções com base no Censo que indicam um
crescimento menor da população idosa, o que resultaria numa evolução
mais lenta dos gastos da previdência.
Outros especialistas em dados demográficos e projeções ouvidos pela BBC
Brasil discordaram das conclusões da professora. "O envelhecimento
populacional no Brasil é real e é um dos mais velozes do mundo", afirma o
demógrafo José Eustáquio Alvez, professor da Escola Nacional de
Ciências Estatísticas do IBGE.
Já o especialista em projeções previdenciárias Luís Eduardo Afonso,
professor da USP, disse à BBC Brasil que o cálculo do governo pode ser
melhorado, mas considerou que algumas premissas adotadas, como a
evolução da produtividade do trabalhador brasileiro, estão, na verdade,
otimistas demais.
À BBC Brasil, o Ministério da Fazenda negou que use apenas dados da
Pnad em suas projeções. O órgão afirmou que considera em seu modelo "a
evolução das quantidades absolutas de pessoas por sexo e idade ao longo
do tempo, que são extraídos das matrizes populacionais do IBGE
(projeções até 2060 baseadas no CENSO)". Depois disso, "para fins de
modelo de projeção previdenciária, aplicam-se taxas obtidas a partir da
Pnad (taxas de urbanização, de ocupação, entre outras) às quantias
absolutas de população do IBGE".
O IBGE, por sua vez, disse que seus "métodos demográficos estão em consonância com as recomendações da ONU".
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