Professor de Harvard, Pere Castells avalia impacto social e tecnológico da 'nova era da alimentação' e fala da importância de se valorizar as tradições culinárias dos povos, inclusive o brasileiro.
11 nov 2017
Alimentos nutritivos feitos em impressoras 3D, ampliação do uso de
insetos na culinária, novas texturas para facilitar a deglutição da
população mais velha e valorização de produtos regionais. Para o
espanhol Pere Castells, autor de La Cocina del Futuro (A Cozinha do
Futuro, em tradução literal), essas serão algumas das características da
alimentação em alguns anos.
Castells é químico de formação e já contribuiu com pesquisas para o
renomado chef catalão Ferran Adriá, do extinto restaurante El Bulli,
além de ter lecionado, em Harvard, no curso de Ciência e Cozinha.
Atualmente, se dedica à pesquisa sobre o futuro da alimentação - tanto
do ponto de vista social como tecnológico e prático.
Em entrevista à BBC Brasil antes de sua vinda ao país para uma série de
palestras, ele afirma que a tecnologia terá grande impacto na forma
como nos alimentamos. "A impressão 3D de alimentos nos dará precisão,
exatidão e controle - exigências para a tecnologia culinária futura que
vão permitir a otimização de processos, a conservação de propriedades
nutricionais e a personalização, ou seja: a adaptação da comida às
problemáticas de determinadas populações".
Para o pesquisador, um desses problemas que exigirão soluções é o
envelhecimento da população, o que forçará a procura pela chamada "dieta
suave", com a elaboração de texturizantes para a produção de alimentos
de texturas menos rígidas, como purês.
Embora se diga certo da mudança, Castells não arrisca opinar quando uma
ferramenta assim estará disponível. "Acredito que ainda falte um tempo
até que a tecnologia se consolide e assegure que os cartuchos de
alimentos cumpram com as regras de segurança alimentar."
Atualmente, algumas pesquisas já são realizadas para o uso das
impressoras 3D na produção de alimentos, e já há algumas versões
disponíveis no mercado, mas estão mais voltadas a facilitar o modo de
preparo (como o micro-ondas, no início), do que a produção de alimentos
nutritivos.
Apesar de ele acreditar que o uso do fogo direto se manterá no futuro,
os aparelhos rápidos e econômicos devem ganhar protagonismo, como o
próprio micro-ondas, além da tecnologia de cocção por indução e os
fornos automáticos e de precisão.
Outra transformação importante que Castells prevê em sua obra é a
incorporação de insetos e algas também na alimentação ocidental.
"Produtos que agora são considerados residuais para alguns grupos
populacionais se transformarão em elementos do cotidiano. Atualmente, se
calcula que mais de 2 bilhões de pessoas comam insetos habitualmente e
que estes são imprescindíveis na sua dieta. Mas a rejeição aos insetos é
cultural e somente ações globais podem resolver essa questão."
E para que essas e outras questões sejam resolvidas, Castells aposta em
um elemento que, segundo ele, é cada vez mais importante: o poder
midiático da culinária. "Hoje em dia a cozinha tem muita popularidade e é
preciso aproveitar isso para desenvolver todos os projetos sociais que
pudermos", afirma.
Impacto social
Apesar do impacto tecnológico, Castells destaca que a transformação
mais importante da cozinha do futuro será o impacto social - cujo
caminho já começou a ser traçado, segundo ele.
"A mudança mais significativa virá com a questão da sustentabilidade -
da forma como conservamos o nosso entorno e criamos estruturas que
permitam que todas as comunidades do mundo cozinhem e se alimentem. Essa
revolução deve vir, pelo menos em parte, da cozinha e das suas
influências".
Ele vê o Brasil na dianteira nesse ponto. "Por causa da grande riqueza
agrícola brasileira e das vastas tradições culinárias, há muitas regiões
que podem se autopromover (e se tornar mais conhecida do restante do
mundo), mas acredito que o grande diferencial do Brasil é o potencial de
sustentabilidade, e vocês têm o Cerrado e a Amazônia como exemplos que o
mundo todo conhece. Fiquei alucinado com o potencial do Cerrado."
"O Cerrado apresenta uma grande biodiversidade e proporciona produtos
pouco conhecidos para a cozinha, mas que podem ter um grande futuro. É
necessário, porém, considerar uma gestão que priorize a sua
sustentabilidade, ligada à divulgação e educação sobre esses produtos".
Para que esse potencial seja aproveitado, o pesquisador não descarta a
necessidade de vontade pública e política - e de algumas adaptações nas
legislações vigentes a fim de facilitar o trânsito e a comercialização
de novos produtos e do escoamento da produção regional.
Nesse sentido, ele destaca desde ações para a maior circulação e
conhecimento sobre ingredientes encontrados in natura pelo Brasil como
frutas, legumes, etc, até a facilitação de transporte de alimentos de
pequenos produtores.
"É preciso acreditar que o Brasil tem um grande potencial e criar
estruturas sociais e econômicas que tornem possíveis a comercialização
de vários produtos da Amazônia e de outras partes do país. Se as leis
não se adaptarem à culinária e à alimentação do futuro, as consequências
serão gravíssimas".
Além do poder público, Castells reconhece a importância das grandes
indústrias alimentícias para garantir que tanto as mudanças tecnológicas
como sociais sejam colocadas em prática.
"A sociedade futura não poderá se dar ao luxo de desconfiar de sua
indústria alimentar e das cadeias de fast food, que devem melhorar seus
produtos e processos para conquistar a confiança da população. A
industrialização e as redes de fast food devem mudar a percepção social
variando suas receitas para que sejam mais adaptadas às necessidades
sociais".
O poder do regional
Mas a cozinha do futuro será acessível a todos? Questionado sobre o
acesso das populações mais carentes tanto à alimentação saudável e à
diversificação alimentar como às ferramentas tecnológicas da culinária -
problemáticas atuais da alimentação -, Castells acredita que haja uma
"confusão" de padrões.
"Não podemos associar a alimentação orgânica ou ecológica como (sendo
necessariamente) mais saudável. Produtos mais baratos, regionais e
simples podem ser muito saudáveis. Mas precisamos recuperar tradições
alimentares".
Ou seja: na avaliação do pesquisador, toda a globalização alimentar
deve ser feita respeitando as tradições locais e com cuidado para que a
extração dos alimentos não seja descontrolada.
"Todas as tradições deverão ser acompanhadas de tecnologia que permita
otimizar melhor os recursos alimentares e culinários. A perda das
identidades locais provocaria uma desestruturação culinária e alimentar
que dificultaria muito a sustentabilidade futura e a eliminação do
déficit alimentar global", diz ele.
"A força midiática da cozinha está produzindo projetos de recuperação
da cultura gastronômica das diferentes comunidades do mundo que estavam
perdendo parte do patrimônio alimentar", finaliza.
Comentário deste blogueiro: Não existe "déficit alimentar global", como afirma o autor, mas, sim, um déficit de renda global levando a que cerca de 1 bilhão de pessoas passem fome por falta de recursos financeiros, dada a elevada concentração da renda no mundo causada fundamentalmente pela superpopulação relativa dos países subdesenvolvidos e emergentes. Portanto, não se trata de déficit de oferta de alimentos no mundo, mas de déficit de renda para consumir por parte dos mais pobres.
Nenhum comentário:
Postar um comentário