segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Tudo culpa do canudinho?

É tudo culpa do canudinho? Renata Moretti e Helena Nery Alves-Pinto 18 Ago 2018 A natureza é fácil de ser lida. Ação e reação, simples assim. E a conta do mau uso e exploração desmedida dos recursos naturais vem pra ser paga A bola da vez é o canudinho de plástico. Mais um item que entra no mantra “consuma menos carne, recicle, reutilize, ande de bicicleta, não desperdice água”. A enxurrada de informações sobre meio ambiente que pipocam na mídia alimenta o apelo social para olharmos para o tema. Mas o quanto isso tem sido eficiente? Existe a sensação de que finalmente estamos olhando de frente para a questão, mas a verdade é que damos um passo para frente e dois para trás. As taxas de desmatamento de terras brasileiras voltaram a aumentar (e não só na Amazônia!), o caso de Mariana está caminhando para o esquecimento (assim como a responsabilidade da Samarco), deputados estão prestes a permitir o uso de agroquímicos carcinogênicos e o movimento para reduzir a demarcação de terras de comunidades tradicionais está ganhando força. Disponibilizar informação não tem sido suficiente, e a pergunta é se estamos comunicando do jeito certo. Onde e como devemos agir para que o respeito e a responsabilidade pelos recursos naturais façam parte da nossa cultura, da nossa moral? Ações locais impactam além do território que ocupamos. É falsa a ideia de que podemos construir barreiras no planeta, porque somos uma unidade. E é aí que entra a história do canudinho. Sim, o canudinho que se usa aqui e a bituca de cigarro que se joga ali não desaparecem milagrosamente: eles têm impacto global. O apelo dos ambientalistas não é exagero. Olhe o tamanho do estrago: o planeta tem 4,5 bilhões de anos e a espécie humana teve origem há 300 mil anos, ou seja, estamos aqui há ridículos 0,007% da idade da Terra. Nessa existência temporal quase insignificante aceleramos em ao menos 1.000 vezes a taxa de extinção de outras espécies. É assustadora a previsão de que em meados deste século entre 30 e 50% da biodiversidade possa ter desaparecido. Aos trancos e barrancos (especialmente no Brasil, onde a verba para a produção de conhecimento científico só diminui), pesquisadores investigam meios de desacelerar os danos que estamos causando. Múltiplas ameaças requerem múltiplas ações. Existe consenso, no entanto, de que é necessário aumentar a proporção mundial de áreas protegidas, uma vez que a perda de habitats naturais é uma das causas do desmonte da biodiversidade. E qual seria a porcentagem ideal de preservação de áreas naturais? Existe um valor adequado? A Organização das Nações Unidas, por meio da Convenção da Diversidade Biológica, firmou compromisso com mais de 190 países, inclusive o Brasil, para que até 2020 consigamos atingir a meta de preservação de 17% das áreas terrestres e 10% dos mares. A posição do entomólogo Edward O. Wilson, professor emérito da Universidade de Harvard e um dos nomes mais importantes da conservação mundial, é de que 50% das áreas do planeta devem ser protegidas para que 85% das espécies fiquem fora do risco de extinção. Essa proposta, defendida por ele no seu livro “Half Earth” (Metade do Planeta, em tradução livre), de 2016, inspirou-o a liderar um projeto de mesmo nome. Numa conversa sobre questões ambientais com o E.O. Wilson, considerado o pai da biodiversidade, ele reconhece o valor brasileiro em escala global: “O Brasil possui a maior quantidade mundial de diversidade biológica e tem um recurso inestimável, que estamos apenas começando a imaginar como pode ser utilizado para a saúde da humanidade e para avanços futuros em ciência e tecnologia.” Ele aponta o nosso descaso: “O Brasil não está cuidando adequadamente dessa riqueza herdada. A Amazônia, maior floresta tropical do mundo em extensão e em biodiversidade, ainda está sendo cortada rápido demais. E grande parte do Cerrado, uma área singular e um dos principais habitats do mundo, foi substituída muito rapidamente por campos de agricultura”. Ele tem razão. No caso do Brasil a expansão do agronegócio, por meio de pastagens e monoculturas, como a de soja, é a principal causa da redução de habitats naturais. Dados do Ministério do Meio Ambiente e da Funai (Fundação Nacional do Índio) indicam que em 2018, apesar de cerca de 52% da Amazônia estar dentro de áreas protegidas, nenhum dos demais biomas (Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa, Pantanal) chega a 15% de proteção. “Minha esperança é de que o Brasil, como se fosse alguém muito rico que herdou uma grande fortuna, consiga manter sua condição não só para sua prosperidade e sua influência no mundo, mas também pelo seu importante protagonismo que será revelado somente em séculos futuros”. O fato é que o valor dessa herança ainda é menosprezado frente a interesses (e sistemas) econômicos e políticos. Desse modo, é valioso o diálogo com os tomadores de decisão. Mas como podemos estabelecer um diálogo com eles? “A questão parece ser: por que temos que preservar tudo isso, não podemos salvar apenas uma parte? Por que é um problema terrível ter muitas espécies sendo extintas ou removidas pela destruição de habitats?”. E ele continua: “A resposta é que essas espécies, presentes em grande número na Amazônia, Cerrado e outros ambientes incluindo a grande Mata Atlântica brasileira, são resultado de milhões de anos de evolução, durante os quais atingiu-se um equilíbrio. Esse sistema poderia continuar funcionando sozinho por muitos milhões de anos. Porém, se retirarmos muitos desses elementos que garantem a estabilidade e autossustentabilidade do ambiente, o ecossistema estará em risco ou entrará em colapso, e a natureza perderá a estabilidade para manter o planeta sem ajuda da humanidade”. Esse é o ponto: a natureza é fácil de ser lida. Ação e reação, simples assim. E a conta do mau uso e exploração desmedida dos recursos naturais vem pra ser paga. Passou da hora de entendermos que a responsabilidade é de toda a humanidade e de cada cidadão, independentemente do papel que ocupa. Passou da hora de governo, cientistas, educadores, empresários, economistas, você e eu assumirmos a cota de responsabilidade. Não adianta sair de fininho. “Se destruirmos milhões de espécies deliberadamente, poderemos descobrir que os sistemas naturais não poderão mais se manter sem um tratamento especial vindo do conhecimento humano. Eu acredito que a humanidade preferiria viver dentro ou próxima de sistemas naturais que nos dão nossa água, o oxigênio que respiramos, e, na verdade, toda a base para a nossa vida, sem que tenhamos que nos tornar engenheiros para gerenciar o mundo por nós mesmos”, finaliza E.O Wilson. Vale a pena assumir o risco? Não seria melhor refletirmos agora sobre o custo de usarmos o planeta em benefício próprio para satisfazer uma necessidade imediata? Ainda dá tempo de mudarmos nossos hábitos, costumes e incorporarmos em nossa cultura o respeito pela natureza. Renata Moretti é bióloga, educadora e autora de livros didáticos. Tem mestrado e doutorado em zoologia pela Universidade de São Paulo e atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Department of Organismic and Evolutionary Biology da Universidade de Harvard, EUA. Helena Nery Alves-Pinto é bióloga e ecóloga política. Tem mestrado em ecologia aplicada e conservação pela East Anglia University, Inglaterra. Atualmente faz doutorado em ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e é pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/%C3%89-tudo-culpa-do-canudinho

© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Renata Moretti e Helena Nery Alves-Pinto
A natureza é fácil de ser lida. Ação e reação, simples assim. E a conta do mau uso e exploração desmedida dos recursos naturais vem pra ser paga A bola da vez é o canudinho de plástico. Mais um item que entra no mantra “consuma menos carne, recicle, reutilize, ande de bicicleta, não desperdice água”. A enxurrada de informações sobre meio ambiente que pipocam na mídia alimenta o apelo social para olharmos para o tema. Mas o quanto isso tem sido eficiente? Existe a sensação de que finalmente estamos olhando de frente para a questão, mas a verdade é que damos um passo para frente e dois para trás. As taxas de desmatamento de terras brasileiras voltaram a aumentar (e não só na Amazônia!), o caso de Mariana está caminhando para o esquecimento (assim como a responsabilidade da Samarco), deputados estão prestes a permitir o uso de agroquímicos carcinogênicos e o movimento para reduzir a demarcação de terras de comunidades tradicionais está ganhando força. Disponibilizar informação não tem sido suficiente, e a pergunta é se estamos comunicando do jeito certo. Onde e como devemos agir para que o respeito e a responsabilidade pelos recursos naturais façam parte da nossa cultura, da nossa moral? Ações locais impactam além do território que ocupamos. É falsa a ideia de que podemos construir barreiras no planeta, porque somos uma unidade. E é aí que entra a história do canudinho. Sim, o canudinho que se usa aqui e a bituca de cigarro que se joga ali não desaparecem milagrosamente: eles têm impacto global. O apelo dos ambientalistas não é exagero. Olhe o tamanho do estrago: o planeta tem 4,5 bilhões de anos e a espécie humana teve origem há 300 mil anos, ou seja, estamos aqui há ridículos 0,007% da idade da Terra. Nessa existência temporal quase insignificante aceleramos em ao menos 1.000 vezes a taxa de extinção de outras espécies. É assustadora a previsão de que em meados deste século entre 30 e 50% da biodiversidade possa ter desaparecido. Aos trancos e barrancos (especialmente no Brasil, onde a verba para a produção de conhecimento científico só diminui), pesquisadores investigam meios de desacelerar os danos que estamos causando. Múltiplas ameaças requerem múltiplas ações. Existe consenso, no entanto, de que é necessário aumentar a proporção mundial de áreas protegidas, uma vez que a perda de habitats naturais é uma das causas do desmonte da biodiversidade. E qual seria a porcentagem ideal de preservação de áreas naturais? Existe um valor adequado? A Organização das Nações Unidas, por meio da Convenção da Diversidade Biológica, firmou compromisso com mais de 190 países, inclusive o Brasil, para que até 2020 consigamos atingir a meta de preservação de 17% das áreas terrestres e 10% dos mares. A posição do entomólogo Edward O. Wilson, professor emérito da Universidade de Harvard e um dos nomes mais importantes da conservação mundial, é de que 50% das áreas do planeta devem ser protegidas para que 85% das espécies fiquem fora do risco de extinção. Essa proposta, defendida por ele no seu livro “Half Earth” (Metade do Planeta, em tradução livre), de 2016, inspirou-o a liderar um projeto de mesmo nome. Numa conversa sobre questões ambientais com o E.O. Wilson, considerado o pai da biodiversidade, ele reconhece o valor brasileiro em escala global: “O Brasil possui a maior quantidade mundial de diversidade biológica e tem um recurso inestimável, que estamos apenas começando a imaginar como pode ser utilizado para a saúde da humanidade e para avanços futuros em ciência e tecnologia.” Ele aponta o nosso descaso: “O Brasil não está cuidando adequadamente dessa riqueza herdada. A Amazônia, maior floresta tropical do mundo em extensão e em biodiversidade, ainda está sendo cortada rápido demais. E grande parte do Cerrado, uma área singular e um dos principais habitats do mundo, foi substituída muito rapidamente por campos de agricultura”. Ele tem razão. No caso do Brasil a expansão do agronegócio, por meio de pastagens e monoculturas, como a de soja, é a principal causa da redução de habitats naturais. Dados do Ministério do Meio Ambiente e da Funai (Fundação Nacional do Índio) indicam que em 2018, apesar de cerca de 52% da Amazônia estar dentro de áreas protegidas, nenhum dos demais biomas (Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa, Pantanal) chega a 15% de proteção. “Minha esperança é de que o Brasil, como se fosse alguém muito rico que herdou uma grande fortuna, consiga manter sua condição não só para sua prosperidade e sua influência no mundo, mas também pelo seu importante protagonismo que será revelado somente em séculos futuros”. O fato é que o valor dessa herança ainda é menosprezado frente a interesses (e sistemas) econômicos e políticos. Desse modo, é valioso o diálogo com os tomadores de decisão. Mas como podemos estabelecer um diálogo com eles? “A questão parece ser: por que temos que preservar tudo isso, não podemos salvar apenas uma parte? Por que é um problema terrível ter muitas espécies sendo extintas ou removidas pela destruição de habitats?”. E ele continua: “A resposta é que essas espécies, presentes em grande número na Amazônia, Cerrado e outros ambientes incluindo a grande Mata Atlântica brasileira, são resultado de milhões de anos de evolução, durante os quais atingiu-se um equilíbrio. Esse sistema poderia continuar funcionando sozinho por muitos milhões de anos. Porém, se retirarmos muitos desses elementos que garantem a estabilidade e autossustentabilidade do ambiente, o ecossistema estará em risco ou entrará em colapso, e a natureza perderá a estabilidade para manter o planeta sem ajuda da humanidade”. Esse é o ponto: a natureza é fácil de ser lida. Ação e reação, simples assim. E a conta do mau uso e exploração desmedida dos recursos naturais vem pra ser paga. Passou da hora de entendermos que a responsabilidade é de toda a humanidade e de cada cidadão, independentemente do papel que ocupa. Passou da hora de governo, cientistas, educadores, empresários, economistas, você e eu assumirmos a cota de responsabilidade. Não adianta sair de fininho. “Se destruirmos milhões de espécies deliberadamente, poderemos descobrir que os sistemas naturais não poderão mais se manter sem um tratamento especial vindo do conhecimento humano. Eu acredito que a humanidade preferiria viver dentro ou próxima de sistemas naturais que nos dão nossa água, o oxigênio que respiramos, e, na verdade, toda a base para a nossa vida, sem que tenhamos que nos tornar engenheiros para gerenciar o mundo por nós mesmos”, finaliza E.O Wilson. Vale a pena assumir o risco? Não seria melhor refletirmos agora sobre o custo de usarmos o planeta em benefício próprio para satisfazer uma necessidade imediata? Ainda dá tempo de mudarmos nossos hábitos, costumes e incorporarmos em nossa cultura o respeito pela natureza.
Renata Moretti é bióloga, educadora e autora de livros didáticos. Tem mestrado e doutorado em zoologia pela Universidade de São Paulo e atualmente é pesquisadora de pós-doutorado no Department of Organismic and Evolutionary Biology da Universidade de Harvard, EUA.
Helena Nery Alves-Pinto é bióloga e ecóloga política. Tem mestrado em ecologia aplicada e conservação pela East Anglia University, Inglaterra. Atualmente faz doutorado em ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e é pesquisadora visitante na Universidade de Cambridge, Inglaterra.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2018/%C3%89-tudo-culpa-do-canudinho

Nenhum comentário:

Postar um comentário