Mais de uma década depois do advento da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, como é conhecida a LC 123/2006, muito aconteceu no ambiente de negócios brasileiro. Sua regulamentação crescente nos estados e municípios brasileiros, em conjunto com o Regime de Tributação Simplificado, Simples Nacional, permitiu a regularização de milhões de empreendimentos. De acordo com o SEBRAE, o ano de 2017 se encerrou contabilizando quase 13 milhões de optantes pelo Simples, ou seja, pequenos negócios. Entre eles, cerca de 5 milhões são microempresários e empresários de pequeno porte, enquanto quase 8 milhões correspondem aos Microempreendedores Individuais – MEI, figura criada em 2009 durante a segunda atualização da Lei geral, realizada via LC 128/2008.
Juntas, essas modalidades empresariais correspondem a 98,5% das empresas do país… É isso mesmo! 98,5% das empresas brasileiras são pequenos negócios e respondem, segundo informações do SEBRAE, por 54% dos empregos formais e mais de 43% da massa salarial dos trabalhadores brasileiros.
Nesse ponto, o leitor mais atento já deve imaginar que essa verdadeira força de expansão econômica seja responsável por boa parte do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Infelizmente isso não é uma realidade. O mesmo SEBRAE aponta que apenas 27% do PIB do Brasil devem-se aos pequenos negócios. Esse panorama se deve basicamente a dois fatores: o primeiro é a histórica baixa participação de microempresas e empresas de pequeno porte, tanto nas compras públicas como nas grandes cadeias de valor; a segunda razão é a também histórica incapacidade desses pequenos empreendimentos em concorrer (e ganhar) processos licitatórios que os habilite a fornecer aos órgãos públicos, seja por falta de conhecimento e capacitação, seja pela impossibilidade de concorrer em termos de preço com as grandes empresas. A grande questão é que estão exatamente nesses dois mercados os maiores volumes de negociação e que impactam, em última instância, no crescimento do PIB.
É exatamente nesse desequilíbrio que a LC 123/06 atuou e começou a mudar a realidade dos pequenos negócios. A partir desse ponto, o presente artigo poderia discorrer sobre todos os números observados ao longo dos últimos doze anos e o quanto isso significou para a economia do país, mas não é esse o caso. Inúmeros outros artigos e estatísticas disponíveis em diversos portais podem suprir o leitor com informações muito mais atualizadas do que se poderia obter aqui. O tema é outro, para o qual as informações preliminares fornecidas bastam para a referência do leitor.
O mais importante aspecto da Lei Geral, para o objetivo do presente texto, é relacionado à implementação do seu Capítulo V – Seção I – Das aquisições públicas, realizada por meio da LC 127/2007, primeira alteração da Lei 123. Na realidade, foi esse capítulo que aproximou os pequenos negócios das realidades antes restritas a grandes empresas, como o fornecimento para entes públicos e participação mais ativa em cadeias produtivas. Essa realidade não só exige que os pequenos negócios se capacitem nas competências necessárias para a venda ao setor público, mas também as aproxima de uma prática bastante comum nas licitações e contratações públicas, a corrupção, não apenas no que se refere a pagamento de propina, mas retratada também nas práticas de fraude documental, interferência em processos licitatórios dentre outros atos ilícitos.
O compliance para pequenos negócios tem que ser diferente daquele esperado para as grandes empresas
O contexto apresentado nas linhas anteriores convida a uma reflexão: apesar dos pequenos negócios obterem, nos últimos dez anos, uma considerável evolução no que tange o ambiente de negócios mais favorável, possibilitando-lhes, como dito anteriormente, aproximar-se da dura e prazerosa realidade do mundo dos negócios, não se pode esperar que se façam as mesmas exigências, ou pelo menos todas as mesmas exigências, que são devidas às grandes empresas, as quais possuem advogados, contadores e administradores especialistas nas diversas áreas de atuação a assessorar-lhes seus passos diários. Nesse quesito, o poder econômico está ao lado destas e estabelece uma relação de desigualdade injusta àquelas que não o possuem.
Esse imperativo já foi considerado na Constituição de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, quando em seus artigos 170 e 179.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. ( grifo nosso )
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”
Entretanto, como acontece comumente com diversos preceitos constitucionais, estes, por si só, não garantem sua aplicação, exigindo-se para tanto, dispositivos ou normatizações de caráter infraconstitucional. É exatamente esse o papel da Lei 123/2006, que regulamenta, quase vinte anos depois da aprovação do texto constitucional, o tratamento diferenciado aos pequenos negócios, garantindo assim um ambiente mais justo e inclusivo.
Fazendo um paralelo, no ecossistema do Compliance, ou seja, aquele voltado à prevenção e combate à corrupção, acontece o mesmo. A Lei 12.846/2013 não traz em si mesma o preceito constitucional do tratamento diferenciado ao pequeno e, por isso, necessitou de uma regulamentação específica para esse fim, o Decreto Federal 8.420 de 8 de março de 2015 que, em seu artigo 42, postula:
Art. 42. Para fins do disposto no § 4o do art. 5o, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros:
I – comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa;
[…]
§ 3º Na avaliação de microempresas e empresas de pequeno porte, serão reduzidas as formalidades dos parâmetros previstos neste artigo, não se exigindo, especificamente, os incisos III, V, IX, X, XIII, XIV e XV do caput.
[…]
§ 5o A redução dos parâmetros de avaliação para as microempresas e empresas de pequeno porte de que trata o § 3o poderá ser objeto de regulamentação por ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da Secretaria da Micro e Pequena Empresa e do Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União.”
Em que pese à redução dos parâmetros exigidos para os pequenos negócios, ainda persiste o fato de que o poder econômico, ou no caso, o não podereconômico desse segmento, acabar por onerar as operações diárias desses, ocasionando, principalmente no que se refere às compras públicas, um retrocesso das conquistas obtidas até o momento.
Considerando-se apenas os parâmetros que são exigidos de pequenos negócios – a adoção de padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade bem como o treinamento periódico sobre o programa de integridade para todos os colaboradores e administradores – esses podem, caso realizados sem a devida orientação, além de gerar custos desnecessários para o empresário, acabar por colocá-lo como “presa fácil” de propostas onerosas de customização de programas de integridade ofertados a cada dia em maior número.
O mesmo acontece no caso da estruturação de controles internos que assegurem a confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiras e, também, em procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios. Ambas as ações exigem, senão algum dispêndio financeiro, por certo um custo associado ao tempo de dedicação a esse esforço. Esse mesmo custo de tempo pode ser observado no caso de necessidade de interrupção de atividades para a remediação de danos gerados por algum tipo de irregularidade ou infração.
Foi exatamente esse impacto financeiro e temporal que suscitou o Programa Empresa Íntegra, iniciativa do SEBRAE e da Controladoria Geral da União – CGU que objetiva a disseminação da cultura de integridade entre os pequenos negócios e a adoção, por eles, de políticas internas de integridade de uma maneira simplificada e não onerosa.
O Programa Empresa Íntegra e a capacitação dos pequenos negócios em programas de integridade
Em um primeiro artigo sobre o assunto “A Lei Anticorrupção e os pequenos negócios” (Lamboy, 2017, pg. 933), foi apresentado o Programa Empresa Íntegra, uma iniciativa do SEBRAE e da CGU com o objetivo de disseminar entre os pequenos negócios informações sobre a recém-publicada Lei 12.846/13, bem como incentivar a cultura da integridade empresarial e a adoção de programas internos que a garantam.
Iniciado em março de 2015, o Programa Empresa Íntegra encontra-se em seu segundo Plano de Trabalho, com foco em dois elementos fundamentais para a sua disseminação: a estruturação da Rede Nacional da Empresa íntegra (REI) e do Movimento da Empresa Íntegra. Importante relembrar que em seu primeiro Plano de Trabalho a parceria SEBRAE/CGU concentrou seus esforços no desenvolvimento de um conjunto de conteúdos que disponibilizassem ao pequeno empresário uma aproximação conceitual ao tema Compliance e às práticas de integridade empresarial em uma linguagem acessível e direta. Esse material, que inclui cartilhas, infográficos, filme e artigos, foi disponibilizado, ao final de 2016, em uma página específica sobre o assunto. Ao mesmo tempo, por meio de palestras e workshops, o Programa foi dado ao conhecimento de potenciais parceiros em nível nacional.
O primeiro pilar do atual Plano de Trabalho do Programa Empresa Íntegra, como dito anteriormente, é a Rede Nacional da Empresa Íntegra (REI). Essa importante instância do Programa começou a ser estruturada em julho de 2017, com a adesão imediata de 12 estados e o espelhamento da parceria nacional entre o SEBRAE e a CGU, agora em nível estadual, ficando a cargo dos SEBRAE/UF e dos Núcleos de Ações de Ouvidoria e Prevenção (NAOP), órgãos regionais da CGU, escalarem o número de empresários impactados. Essa alavancagem seria proporcionada pela realização, em cada estado participante, por pelo menos uma palestra ou workshop ainda no segundo semestre daquele ano. O objetivo foi amplamente alcançado, pois com 29 eventos realizados em 21 municípios, o total de empresários impactados superou a marca de 3.000, demonstrando tanto o interesse dos mesmos em relação ao tema, como o acerto na decisão estratégica da construção da REI.
O segundo pilar, o Movimento da Empresa Íntegra, encontra-se em desenvolvimento no SEBRAE objetivando alcançar 80.000 empresários no primeiro ano e, para tanto, prevê importantes ações de comunicação e de relacionamento com os empresários impactados pelas ações da REI. O projeto se baseia, de um lado, em uma ampla campanha de comunicação a ser realizada principalmente nas redes sociais e nos portais do SEBRAE, CGU e potenciais parceiros que possuam pequenos empresários entre seus membros (CACB, CNDL, OSB entre outros). Pensado como uma campanha de impacto, o principal objetivo é captar a energia latente do empresariado e da sociedade no que tange a uma mudança cultural em prol da integridade como forma de mudar o país.
Do outro lado, o projeto será suportado por um portal interativo para onde os empresários impactados tanto pela campanha de comunicação como pelos eventos da REI serão direcionados. Essa ação responde a um questionamento muito comum que advém do empresário que assiste às palestras ou workshops: “Ok, eu entendi a mensagem e estou pronto para desenvolver minha política de integridade. O que eu faço agora?”. Uma das possíveis respostas será dada por esse portal, onde o empresário poderá, por meio de uma linguagem altamente interativa (chamada no ambiente tecnológico de gamificação) desenvolver as principais ações necessárias à construção de uma política interna de integridade, tais como a declaração de compromisso da alta direção, a construção do código de ética e a realização de análise de riscos. Essa ferramenta também proporcionará a publicação, pela empresa participante, de suas conquistas nas redes sociais, propiciando uma disseminação ainda maior dessa chamada “cultura da integridade empresarial”.
Da leitura desse artigo, resultam três informações relevantes e inter-relacionadas. Primeiro que a evolução do ambiente político-legal, observado desde o advento da LC 123/06, vem aumentando, ano a ano, não só a formalização de pequenos negócios (MEI, MP e EPP) como a sua participação nas compras públicas e nas grandes cadeias de valor e que essa maior participação acaba por exigir dessas empresas um maior conhecimento dos regramentos federais, estaduais e municipais impositivos especialmente ao relacionamento público-privado. A esse rol de imposições foi adicionada, em 2013, a Lei 12.846 ou Lei Anticorrupção.
A segunda demonstra que, apesar da legião de descrentes que povoa o ambiente legal brasileiro, a Lei Anticorrupção mostra que veio para ficar, ou melhor, que veio para mudar o ambiente de negócios. A prova disso é a proliferação de regramentos estaduais que passam a exigir a prática do compliance nos órgãos públicos e as primeiras diretrizes locais exigindo a comprovação de políticas internas de integridade àquelas empresas que tiverem contratos com órgãos públicos (ver Lei 7.753/17 do Rio de Janeiro e Lei 6.112/18 do Distrito Federal). Importante notar que ainda não se exige essa comprovação como requisito para participar de processos licitatórios, mas não se pode negar que isso poderá ocorrer em um futuro próximo. Afinal, também já existe, como dito, Projeto de Lei que visa mudar tanto a Lei 12.846 como a lei 8.666 para esse fim.
A terceira e última informação aponta para o fato de que sejam quais forem os desdobramentos do atual cenário, e acredita-se que seja o do aumento no número de legislações nacionais e federais que dificultem a vida dos corruptos de plantão, o pequeno empresário não estará desamparado, pois o tratamento diferenciado continuará sendo pauta de instituições como o SEBRAE e a CGU, bem como iniciativas tais como a Rede Nacional da Empresa Íntegra e o Movimento da Empresa íntegra continuarão a capacitar e preparar os pequenos negócios para as oportunidades advindas de um ambiente de negócios mais justo e imparcial.
Afinal, não é exatamente isso que se espera de um país onde 98% das empresas são pequenas e mesmo assim são responsáveis pela maioria dos empregos formais? Que venha então um país mais íntegro, com oportunidades mais justas a quem trabalha sério e com honestidade.
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