Foto: João Amoêdo/Facebook
“A liberdade do homem livre é a causa da grande opressão dos escravos”, concluiu Adam Smith em suas Leituras da Justiça. Na mesma ocasião, o pai do liberalismo econômico não se acanhou em expor a nudez monárquica dos adeptos da vanguarda iluminista de sua época, chegando a afirmar que a escravidão poderia ser mais facilmente suprimida em um governo despótico que em um governo livre ou democrático cujos organismos representativos estão exclusivamente reservados aos proprietários brancos: “toda lei é feita pelos seus donos, os quais nunca vão deixar passar uma medida desfavorável a eles”. Ao tratar do assunto, o historiador Domenico Losurdo dá mais uma volta no parafuso ao questionar se poderia ser considerado um liberal alguém que, numa situação específica, exprime sua preferência por um governo tirânico.
“Todos os homens foram criados iguais”, grita a Declaração de Independência dos EUA. É necessário “salvaguardar para nós mesmos e para os nossos descendentes o dom da liberdade”, declara a Constituição de 1787 do mesmo país. Uma leitura menos preguiçosa, contudo, é suficiente para fazer notar que ainda no seu artigo 1º há a diferenciação entre “homens livres” e o “resto da população” (otherpersons). Quem seria este “resto da população”? Os escravos.
“O domínio mais opressor jamais exercido pelo homem sobre o homem, fundado na mera distinção de cor, se impõe no período mais iluminado”. Um entusiasta de milícias como o MBL, herdeiros morais dos Confederados do Sul, poderia muito bem atribuir esta frase a algum daqueles que costumam chamar de “extrema esquerda” em suas redes sociais. Seu autor, no entanto, é ninguém menos que James Madison, pai da Constituição norte-americana. O próprio Madison era proprietário de escravos, assim como boa parte dos chamados “Pais Fundadores”.
A ascensão do liberalismo e a difusão da mão-de-obra escrava com fundamento na raça estão umbilicalmente ligadas. Não há incompatibilidade moral ou filosófica entre a escravidão e o arcabouço filosófico liberal. “Meus sentimentos são do tamanho de uma moeda”, explica um despachante de escravos em uma emblemática cena de 12 Anos de Escravidão, vencedor do prêmio de melhor filme no Oscar de 2014. “O homem faz o que quer com sua propriedade”, brada Edwin Epps, senhor de escravos que fundamenta seu direito a ser proprietário de gente tanto na lei como na Bíblia.
John Locke, enquanto defendia a liberdade com entusiástico radicalismo em seus escritos, investia em ações da Royal African Company, monopolista do tráfico de escravos.
Em 1819, um projeto de lei apresentado no parlamento inglês que proibia o trabalho de crianças de 9 anos de idade e restringia a 12 horas por dia o trabalho de crianças de 10 a 16 anos era confrontado pelos liberais da Câmara dos Lordes por atentar contra a “liberdade de contrato”. Em 2008, o então presidente dos EUA, George W. Bush, defendeu a estatização do sistema financeiro norte-americano e as injeções de bilhões de dólares para salvá-lo como uma medida de livre mercado.
Aqui no Brasil, os principais idealizadores da Revolução Constitucionalista de 1817 pretendiam, seguindo a boa tradição norte-americana, implantar uma república na qual a escravidão ainda permaneceria viva e forte.
A própria abolição formal da escravidão foi realizada na esteira dos interesses da elite econômica e do sufocamento da proposta de reforma agrária. A implantação de um imposto sobre terras improdutivas e a desapropriação em favor de ex-escravos eram bandeiras defendidas por líderes abolicionistas como André Rebouças e Joaquim Nabuco. A finalidade era óbvia: não fazer da abolição um mero formalismo, conferindo, assim, um mínimo de condições para que os recém-libertos não fossem despejados à míngua nas ruas. Liberais, republicanos e abolicionistas moderados foram contra, fechando com latifundiários para que a abolição não mexesse no modelo excludente previsto pela Lei de Terras de 1850.
As conclusões de Adam Smith reproduzidas linhas acima explicam, um pouco, o desalento de Nabuco com a república que acabara de nascer.[3]
Em recente entrevista ao Roda Viva, o banqueiro João Amoêdo, pré-candidato à presidência pelo Partido Novo, fez orgulhar a tradição iluminista escravocrata, despejando uma série de vulgatas liberais típicas de paixonites adolescentes efêmeras. Amoêdo, que em tudo que é canto gosta de se colocar como o legítimo herdeiro moral de monstros sagrados como Smith e Ricardo, balbuciou ao ter que explicar a incoerência de ser “liberal na economia, mas conservador nos costumes”, uma jabuticaba do tipo ser vegetariano até que o garçom sirva a picanha.
O cerne da doutrina liberal clássica diz respeito à contenção do ímpeto estatal em interferir nas condutas individuais que não trazem prejuízos à vida e à propriedade de terceiros. Liberdade, em tese, não diz respeito apenas a temas relacionados aos códigos das relações mercantis – muito embora na prática apenas estas interessem para a turma de Amoêdo, como o próprio deixou claro ao falar nas dificuldades burocráticas em fundar um banco (um crime imperdoável, diria Brecht) tal qual estivesse falando de um trailer de cachorro quente. Não faz parte da agenda de Amoêdo, um conservador para lá de vulgar, a proteção da “menor minoria” contra o Estado no campo dos costumes. Se o sujeito quer fumar maconha, o Estado não tem nada que se meter nisso. O mesmo em relação a direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Amoêdo, entretanto, discorda. Liberdade mesmo só para ter porte de arma.
Nesse sentido, o candidato é coerente com a tradição liberal na prática por contemporizar a noção de liberdade e submetê-la às suas preferências e valores pessoais conservadores (embora isto não tenha muito a ver com o liberalismo na teoria), os quais, por sua vez, têm um evidente recorte de classe. Diante de uma democracia liberal, pouco interessa a opinião pessoal sobre se alguém, no pleno gozo de suas faculdades mentais, deve ou não fazer uso de entorpecentes. O sujeito pode até ser pessoalmente contra, e deve ter a garantia de poder se pronunciar dessa forma, diria Voltaire. O que não pode é instrumentalizar o Estado para dizer se é biscoito ou bolacha e para estabelecer que é permitido comprar armas no supermercado, mas não maconha.
Não surpreende que pessoas e coletivos que se dizem liberais apoiem excrescências autoritárias como a Escola sem Partido e a criminalização de sindicatos, organizações e movimentos sociais. “Cadê os liberais para argumentar que greve é instrumento institucional de protesto e reivindicação dos trabalhadores?”, indaga Marilena Chauí em artigo de 11 de julho de 1983 na F. de São Paulo. Em outro artigo, publicado em 02 de dezembro de 1985, conclui que “no limiar do século XXI, a classe dominante brasileira ainda não conseguiu absorver o que sua predecessora europeia estabeleceu há dois séculos. Pior. A incultura crassa e a ferocidade, marcas da classe dominante brasileira, fazem que confunda direitos humanos e subversão internacional!”.
A noção de liberdade de Amoêdo – que obviamente defendeu na entrevista que o combate à discriminação racial não é responsabilidade do Estado – não difere da de James Madison, John Locke, dos membros da Câmara dos Lordes de 1819 e dos abolicionistas contrários a Nabuco e Rebouças, o que demonstra que há um núcleo ideológico que, em última instância, se coloca claramente contra a concepção mais radical e emancipatória de liberdade, como comprovaram os ex-escravos haitianos ao acharem inocentemente que as tropas napoleônicas, supostamente premidas por ideais iluministas, aportaram no Haiti para prestigiar a revolução capitaneada por Toussaint Louverture e não para reprimi-la.
Liberdade para Amoêdo é a de comércio, restrita à dinâmica mercantil; a liberdade de vender, comprar, contratar – incluindo a de criar bancos como se fossem bodegas de esquina. Em 2 de setembro de 1789, ninguém menos que Robespierre desafiou essa concepção inescrupulosa de liberdade ao denunciar os danos do liberalismo econômico em uma declaração que podia muito bem ter sido feita no século XXI: “como se pôde pretender que toda espécie de estorvo, ou melhor, que toda regra sobre a venda do trigo era um atentado contra a propriedade e disfarçar esse sistema bárbaro debaixo do nome capcioso de liberdade de comércio?”.
Foi Robespierre quem disse.
Gustavo Freire Barbosa é Advogado.
Comentário deste blogueiro: O liberalismo em si não é mau para os trabalhadores. Ele só se torna tal coisa quando associado à superpopulação - levando a que a abundância de trabalhadores leve à sentença da desproteção (executada pelos capitalistas que, assim, implantam a "lei do mais forte"). Em suma: existindo planejamento familiar de longa data, o liberalismo não constitui um problema mas o melhor caminho. Agora, num quadro de superpopulação (local ou mundial), ele já se torna problemático (uma "mão" nada "invisível" e deveras imperfeita de condução mercantil).
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