Em meio a propostas de redução no financiamento desses serviços nos EUA e uma polarização crescente do debate, BBC visita organização na Louisiana e conversa com pacientes, médicos e ativistas dos dois lados da questão.
12 ago 2018
06h47
atualizado às 15h51
Dez mulheres andam por um corredor lotado e iluminado com uma luz
fluorescente. Nuas da cintura para baixo, elas usam enormes lençóis
brancos amarrados sobre os quadris, enquanto se dirigem à "sala de
relaxamento", um quarto sem janela equipado com grandes sofás e uma TV.
Elas aguardarão ali a sua vez de realizar um aborto.
Estamos no Hope Medical Group, uma pequena clínica de aborto em
Shreveport, Louisiana (sul dos EUA), que atende uma ampla região rural
do Estado e dos vizinhos Texas, Arkansas e Mississippi. Trinta mulheres
haviam agendado abortos no dia da visita da reportagem da BBC, e apenas
uma delas faltou.
"Achou lotado? Espere para ver como são os sábados", diz Kathaleen Pittman, 60 anos, administradora da clínica.
Pittman conta que tem dificuldades em dormir à noite, mas não por
culpa. "De jeito nenhum. É porque fico preocupada em como podemos cuidar
de nossas pacientes com todas essas novas regras que estão tentando
impor", diz.
Clínicas como a Hope enfrentam forte oposição do governo conservador de
Donald Trump. Meses atrás, a Casa Branca anunciou uma proposta de
cortar o financiamento federal de organizações que ofereçam ou discutam o
aborto com suas pacientes.
A Planned Parenthood, uma das organizações alvejadas, afirmou que a
proposta é "perigosa, ultrajante e de consequências devastadoras". Já
ativistas antiaborto agradeceram Trump por "cumprir uma promessa
crucial" de campanha.
Quando Pittman começou a trabalhar no Hope Medical Group, nos anos 1980, o cenário era diferente da polarização atual.
Havia em Louisiana 11 organizações que ajudavam mulheres que decidiam
interromper a gestação; hoje, há apenas três, às quais recorrem 10 mil
mulheres, estima Pittman.
Pelo país inteiro, o número de clínicas caiu na última década. Sete Estados têm apenas um estabelecimento cada.
E, ante regras de funcionamento cada vez mais rígidas e financiamento
escasso, esses locais vivem pressão crescente. Em 2017, 19 Estados
aprovaram 63 restrições à prática do aborto. Vinte e nove Estados
atualmente têm restrições o bastante para serem considerados hostis a
diretos reprodutivos femininos, segundo o centro de pesquisas Guttmacher
Institute.
No âmbito federal, Trump também mudou o equilíbrio da Suprema Corte -
até então com quatro juízes conservadores e quatro liberais - com a
nomeação, para um lugar vago desde o governo Obama, do juiz conservador
Neil Gorsuch, além de cortar verbas a grupos que orientam mulheres que
querem abortar.
E ativistas antiaborto também passaram a se mobilizar mais desde as eleições presidenciais de 2016.
"Vou te dizer, as coisas não estão melhorando", desabafa Pittman.
Lucy viajou três horas para chegar à clínica Hope. Grávida de oito
semanas, ela tirou uma dia de licença do trabalho como caixa de loja em
uma cidade que ela prefere não citar. Pediu a uma amiga que a levasse
ali.
Ela se senta com a filha de dez meses de idade. Lucy, 21 anos, não deseja mais um bebê.
"Quero voltar a estudar, e não vai dar com duas crianças", diz.
Ela pretende realizar o aborto, a despeito dos desejos do pai das crianças.
"É o mesmo cara do meu primeiro bebê, e ele nem cuida dela, então não posso esperar que ele cuide de um segundo filho."
Lucy é levada para uma sessão de aconselhamento obrigatória, segundo a
lei estadual. É uma conversa com uma das conselheiras da clínica, e
ambas discutem o preenchimento de um longo formulário de consentimento.
Delia, a conselheira, explica em detalhes os potenciais riscos do
procedimento - como infecções, coágulos, hemorragia ou perfuração da
parede do útero.
Lucy escuta, mas sem demonstrar hesitação. Explica que talvez precise
de ajuda financeira, uma vez que o procedimento custa US$ 550 (R$ 1,7
mil), mais do que seu salário de US$ 525 (R$ 1,6 mil). Em Louisiana, o
Estado só cobre os custos de abortos em casos de estupro, incesto ou
risco de vida.
Uma contribuição da própria clínica reduzirá os custos para US$ 400. Lucy agenda uma consulta para cinco dias depois.
"Terça? Tudo bem", ela diz. "Quarta-feira é meu dia de folga, então poderei descansar."
Uma divisão de 45 anos
O aborto é legalizado nos EUA desde um julgamento histórico da Suprema Corte em 1973, conhecido como Roe X Wade.
O tema gera intensos debates desde então, com divisões ideológicas e religiosas.
Um estudo de 2017 do Centro de Pesquisas Pew apontou que "a divisão
partidária quanto ao aborto está muito mais polarizada" do que duas
décadas atrás.
E isso ficou evidente na mais recente eleição presidencial.
Durante a campanha, Trump prometeu agir para fazer "avançar os direitos
de crianças não nascidas e suas mães", mas sua escolha para vice - Mike
Pence, um dos mais ativos políticos antiaborto do país - agradou
simpatizantes conservadores.
Os resultados para o governo Trump foram ambíguos. Uma lei destinada a
impedir o financiamento da Planned Parenthood, maior rede de clínicas
para mulheres dos EUA, não passou no Congresso.
Mas, em janeiro, Trump emitiu uma medida que, na prática, favorece os
Estados que excluam clínicas do tipo do financimento estadual. Outra
medida permite que agentes de saúde se recusem a realizar abortos com
base em objeções "religiosas ou morais".
Segurança e vigilância
Na entrada da Hope, uma recepcionista abre a passagem para as pacientes
através de uma porta com segurança reforçada, que ela monitora com 15
câmeras.
Casos de invasão, roubos e vandalismo cresceram de modo acentuado em
clínicas pelo país desde a campanha das eleições presidenciais de 2016.
Relatos de ameaças e intimidações a funcionários dessas clínicas também
aumentaram, segundo a Federação Nacional do Aborto (NAF, na sigla em
inglês), associação de médicos que compila estatísticas desde 1977.
Ameaças de violência ou morte quase dobraram nas clínicas no ano
passado; casos de invasões mais do que triplicaram em relação a 2016.
Por conta disso, os médicos da Hope pedem anonimato à reportagem.
"Os inimigos do aborto têm destruído nossa capacidade de sobreviver", diz um ginecologista que trabalha ali há 36 anos.
Ele realiza abortos duas vezes por semana e mantém uma clínica privada
na cidade. Ativistas antiaborto deixaram panfletos em seu consultório,
dizendo aos vizinhos que ele "mata bebês" e ameaçando "levá-lo a Jesus".
Ele precisou pedir proteção policial em sua casa.
"A pressão é tamanha que outros médicos decidiram parar de fazer abortos", conta.
Mas ele não planeja seguir o mesmo caminho. "É um serviço necessário,
especialmente em um Estado pobre e historicamente contrário ao direito
de escolha (como Louisiana)."
Ativistas
"O debate sobre o aborto está mais proeminente porque não há questões
mais importantes na vida do que a vida em si", diz Chris Davis,
porta-voz da comunidade antiaborto de Shreveport.
Ele conversa com a reportagem da BBC na entrada da Bossier Medical
Suite, que fechou as portas em abril de 2017. O estacionamento da casa
agora está vazio.
"Antes, aqui ficava lotado de carros", conta Davis. "Rezávamos
diariamente aqui fora e achamos que Deus atendeu nossas preces de forma
grandiosa."
Davis, pai de três filhos que se define como um "forte cristão", participa de vigílias constantes nas calçadas das clínicas.
Seu grupo se chama Praying Warriors (guerreiros das orações, em
tradução livre). Eles acampam fora do perímetro das clínicas e tentam
chamar a atenção das pacientes a caminho do local. Leis de propriedade
os impedem de entrar no terreno das clínicas.
"Nosso foco não é necessariamente reverter (o resultado do julgamento) Roe X Wade da noite para o dia", diz Davis.
"A cada mulher que muda de ideia depois de falar conosco ou rezar, o
Roe X Wade é derrubado pelos esforços de raiz. Uma mulher, um bebê por
vez."
Catalya
Catalya evita qualquer contato com os manifestantes enquanto apressa o passo em direção à clínica.
Vestida com uma calça de moletom, chinelos e uma camiseta vermelha
gasta, a jovem de 22 anos dirigiu durante duas horas desde o Texas para
realizar um aborto. É o seu segundo.
"Eu e meu namorado concordamos que não temos como sustentar uma criança
no momento. Era ou aborto, ou (entregar para) adoção... E simplesmente
não consigo me imaginar entregando meu filho."
O casal já tem uma criança de um ano.
"Trabalho à noite, e o pai trabalha de manhã", ela diz. "Mas temos tido
menos oferta de trabalho recentemente, está sendo difícil seguir em
frente."
Juntos, eles ganham cerca de US$ 800 (R$ 2,4 mil) em turnos de dez horas em uma empresa de processamento alimentar.
"E nunca estamos juntos com o Andre (filho do casal). Isso já é ruim,
então como podemos fazer mais uma criança passar por isso?"
Se ganhasse mais dinheiro, diz Catalya, "com certeza" prosseguiria com a gravidez.
Casos como o dela são comuns na clínica. Dificuldades financeiras,
dizem os administradores, são a principal razão dada pelas mulheres - em
sua maioria afroamericanas, com poucas oportunidades educacionais e
baixo acesso a contraceptivos - para pôr fim a suas gestações.
Catalya diz que está hesitante quanto a seguir adiante com o aborto, mas não compartilha essa preocupação com sua conselheira.
Ela acha que a questão é pessoal e tem de ser resolvida dentro de casa - seu namorado ainda não está convencido do aborto.
O ultrassom confirma que Catalya está grávida de cinco semanas. Ela se recusa a olhar o monitor durante o exame.
No fim da consulta, ela cai em prantos. "Não é culpa do bebê... Não é
culpa de ninguém. Simplesmente não temos como sustentá-lo, me desculpe."
Batalhas estaduais
Voltar a tornar o aborto ilegal nos EUA seria algo complexo: apenas a
Suprema Corte ou uma emenda constitucional teria poder de reverter Roe X
Wade.
Então, em anos recentes, conservadores tentaram mudar as leis em âmbito estadual, em vez de buscar um veto total.
Nos primeiros seis meses do governo Trump, houve 431 medidas
restringindo o acesso ao aborto em Estados americanos, segundo o
Guttmacher Institute.
Louisiana tem uma das leis mais controversas de todas: veta o aborto
após 15 semanas de gestação, em vez do limite de 20 semanas determinado
pelo Senado em abril.
Se a lei for promulgada, será o segundo mais rígido limite em âmbito nacional, ao lado de Mississippi e atrás apenas de Iowa.
Críticos consideram essas leis inconstitucionais.
"Restrições, restrições", diz Kathaleen Pittman. "Provavelmente a
primeira que nos afetou dramaticamente foi o período de espera de 24
horas."
Desde 1995, todas as mulheres têm de se consultar com o médico ao menos
24 horas antes de realizar um aborto, em duas consultas separadas.
Louisiana quer ampliar esse período para 72 horas, mas a lei foi
contestada na Justiça pelo Centro de Direitos Reprodutivos.
"O sistema de duas consultas já é difícil o bastante", diz Stephannie Chaffee, que trabalha com Pittman há dez anos.
"Muitas mulheres perdem dias de trabalho e salário, muitas têm de
arrumar alguém para cuidar de seus filhos. E têm de fazer isso duas
vezes. Elas vêm de longe, às vezes têm de pagar acomodação. Impor um
período de 72 horas tornaria esse processo ainda mais custoso."
Ela acha que isso tampouco vai dissuadir as mulheres de realizar o aborto.
"95% das que nos procuram já pensaram longamente antes de ligar para
cá", afirma Chafee. "Então a espera obrigatória de 24 horas raramente as
faz mudar de ideia."
Divisões
Enquanto uma tempestade tropical avança com força sobre Shreveport no sábado, a clínica tem um de seus dias mais concorridos.
Há 50 abortos agendados, o dobro do registrado em dias de semana. As fortes chuvas não impedem as pacientes de aparecer.
Lá fora, a atividade também é incessante. Um grupo de ativistas
antiaborto se reúne na calçada, munido de enormes guarda-chuvas.
São 32 deles, de idades variadas, peregrinando a passos lentos ao redor
da clínica, rezando e segurando cruzes, bíblias e rosários.
Uma van com um trailer roda por ali com um enorme cartaz colado na
parede, com uma imagem de um feto e as palavras: "Você vai me proteger?"
"Não estamos aqui para atacar médicos, mas sim para promover a vida bem
onde ela está sendo destruída", diz Richard Sonnier, que se ajoelha e
joga as mãos ao céu.
Ele conta que, 40 anos atrás, pagou para sua namorada abortar e se arrepende disso desde então.
"Agora é a nossa hora. Mudanças na lei vão levar ao fechamento de
várias clínicas", agrega o ativista Charles, segurando um crucifixo de
madeira. "Já é hora de esta cidade se livrar do aborto."
Embora o conservadorismo do atual governo tenha dado forças ao
movimento antiaborto, também encorajou vários defensores dos diretos
reprodutivos, elevando o número de voluntários nas clínicas.
Vestidos em coletes fluorescentes, eles acompanham as mulheres que saem
dos carros estacionados. "Elas já têm muito na cabeça; ver um rosto
amigável as ajuda", diz Ron Thurston, 69 anos, que frequentemente ajuda
na Hope.
"Os manifestantes estão se dirigindo às pessoas erradas", agrega
Christian, 23 anos. "Essa batalha diz respeito a leis. Então não entendo
por que eles acham que vão conseguir o que querem gritando com mulheres
já angustiadas."
Dentro da clínica, todos ficam de olho nas câmeras de segurança.
"Se nos sentimos intimidados? De jeito nenhum", diz Pittman, que se diz
"ocupada demais para ter raiva". Há uma multidão de pacientes a serem
atendidas.
Após o aborto
A reportagem da BBC telefonou para Lucy uma semana após ela ter
realizado o aborto na Hope. Ela estava recuperada e de volta ao seu
emprego como caixa.
Mas nem tudo saiu conforme o planejado.
"Foi muito ruim, muito dolorido, mesmo elas tendo dito que não seria",
conta. Ela não voltaria a se submeter ao procedimento, e não só por
causa da dor física.
"Eu sinto... meio que arrependimento", diz. "Falei com o pai, e em
retrospecto eu teria ficado com o bebê. Não achei que fosse me
arrepender, mas a verdade é que me arrependo."
Catalya também seguiu adiante com o aborto, mas não mudou de opinião.
Seu parceiro a levou à clínica e esperou por ela.
"Claro que é uma decisão difícil, que não tomamos de modo casual", diz.
"Mas foi melhor para nossa família. Estou aliviada de ter tido a
oportunidade, com meus direitos como mulher, de ter tido um aborto."
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