Planos de manejo para exploração madeireira registram em média 2,5 vezes mais árvores valiosas, como o ipê, do que de fato existem no local, o que serve para 'esquentar' madeira retirada ilegalmente de outros locais onde não há permissão de corte
15 ago 2018
15h43
Na Amazônia paraense, vendem-se jaranas, tanimbucas e
timboranas por ipê. E ipês de terras indígenas e unidades de
conservação como se fossem provenientes de área privada. Ou como se
fossem árvores maiores e mais largas do que de fato são.
As artimanhas, adotadas em processos de licenciamento de
exploração de madeira no Pará, servem para "esquentar" troncos
retirados de modo ilegal e estão ameaçando a árvore que hoje é a mais
valiosa explorada na Amazônia. As fraudes potenciais foram reveladas em
estudo publicado por um grupo de pesquisadores da Esalq/USP, da UFSCar e
da Universidade Estadual do Oregon nesta quarta-feira, 15, na revista Science Advances.
Os pesquisadores cruzaram os volumes de madeira
apresentados em 427 planos de manejo apresentados entre 2012 e 2017 no
Estado com os volumes estimados de madeira presentes no inventário
nacional de florestas (o Radam). Eles observaram que quanto maior o
valor da madeira, maior era discrepância entre os dois.
Os dados do Radam são da década de 70, mas são o único
levantamento do tipo já feito no Brasil, in loco, com a ajuda de
expedições em terra e sobrevoos. Esse trabalho foi usado como base
porque, naquela época, a floresta era mais preservada que hoje. Então,
se um plano de manejo indica que há numa determinada área mais madeira
do que foi registrado pelo Radam, algo pode estar errado.
De acordo com o levantamento, em média, o registro dos
planos de manejo para ipê, por exemplo, traz 2,5 vezes mais madeira do
que está nos registros do Radam. "O que o trabalho mostra é uma
discrepância. Ele em si não demonstra a fraude, é preciso ter
investigação de campo", explica o pesquisador Pedro Brancalion, da
Esalq, principal autor do trabalho.
"Mas encontramos sinal claro que pode estar ocorrendo
uma inflação do volume das espécies mais valiosas para esquentar um
corte de madeira que, na verdade, é ilegal (extraída de outros lugares
que não tem nada a ver com o plano de manejo, como terras indígenas, por
exemplo)", diz.
Depois da análise de laboratório, os pesquisadores
acompanharam um investigação de campo do Ibama em seis locais que tinham
recebido permissão da Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Semas)
para exploração, mas em cujo plano de manejo havia discrepâncias, para
checar se elas eram reais.
As seis permissões cobriam uma área de quase 672 mil
hectares no oeste do Pará. De acordo com os planos de manejo, a
concentração de ipês ali era de mais de 4 metros cúbicos por hectare,
quando o Radam indicada uma presença de 0,7 m³/ha.
Na checagem de campo, viu-se que apenas 61% das 152 árvores que haviam sido identificadas nos planos de manejo como ipês (Handroanthus spp)
de fato eram da espécie. "Erros" de identificação botânica chegaram a
ser de 93,3% em um dos locais - 13 outras espécies comerciais apareciam
identificadas como se fossem ipês. É o caso das árvores citadas no
início do texto.
"Ocorre que ipês são árvores que podem ser facilmente
identificadas e claramente distinguidas morfologicamente das espécies
que mais frequentemente foram identificadas como ipês, de modo que o
erro de identificação só pode ser atribuído à fraude", escrevem os
autores no trabalho.
Outro truque observado pelos pesquisadores é que o
diâmetro das árvores também aparece frequentemente superestimado nos
planos de manejo analisados. Na checagem de campo, o diâmetro do toco de
130 árvores que tinham sido cortadas era 31% menor do que o registrado
nas licenças de exploração.
"É um problema que ocorre porque os planos de manejo são
autodeclaratórios. O proprietário de terra que quer explorar madeira em
sua propriedade contrata um engenheiro florestal que faz um lado das
árvores do local, quanto vai ser tirado, em quanto tempo e entrega para o
órgão ambiental que dá a licença ou não. Mas em geral ninguém consegue
ir a campo checar se o que aparece no papel de fato está no campo",
afirma Brancalion.
"Sabendo dessa incapacidade do Estado checar, tem muita
gente que simplesmente infla o volume de espécies mais nobres e vai
pegar madeira ilegal de terra indígena, de unidade de conservação",
complementa o pesquisador.
A situação vem sendo alertada e enfrentada pelo Ibama há
anos. A checagem de campo acompanhada pelos pesquisadores levou a
autuação dos proprietários de terra dos seis locais e dos engenheiros
responsáveis pelos planos de manejo, além d a abertura de uma
investigação, que está nas mãos do Ministério Público Federal do Pará.
A expedição teve também a companhia da ONG Greenpeace,
que denunciou o problema com a campanha "árvores imaginárias" em março
deste ano. Veja abaixo um vídeo divulgado na ocasião.
Concorrência
Os pesquisadores que um sistema online de registro de
planos de manejo poderia facilitar esse controle. "É irreal imaginar que
os técnicos da Secretaria de Meio Ambiente consigam ir a campo para
checar cada plano de manejo, mas poderia existir um sistema
informatizado, como o do Cadastro Ambiental Rural, que cruzasse as
informações com os dados do Radam e tivesse filtros", sugere Edson
Vidal, também da Esalq e outro autor do trabalho.
"Sabemos mais ou menos quanto podemos esperar de
densidade de ipês em cada região do Estado. Se o plano de manejo traz um
número muito acima disso, já deveria lançar um alerta. Se for muito
absurdo, aí se faz a checagem. Nos documentos que analisamos vimos umas
densidades que eram impossíveis se pensarmos que se trata de uma árvore
rara. Tinha levantamento que apontava 10 vezes mais árvores do que o
real", explica.
Os pesquisadores alertam que as fraudes podem deixar o
ipê num nível de ameaça semelhante ao que ocorreu com o mogno, que teve
de ter ser corte proibido para que ele não fosse extinto. "O ipê cresce
ainda mais lentamente que o mogno, ele demora muito para se recuperar.
Em ciclos de 30 anos de exploração, só 4% se recuperam. Com essa
sutileza que estão usando no campo, de repente vamos ver que não temos
mais ipês", afirma Vidal.
Outro problema, diz, é a concorrência desleal com quem
explora madeira dentro da legalidade. "Quem comete a fraude acaba
vendendo num preço muito menor do que quem faz tudo direitinho. Acaba
sendo um câncer do manejo florestal. Não tem condições de avançar porque
a competição é muito cruel", complementa.
O coordenador -geral de Fiscalização do Ibama, Renê
Oliveira, afirma que esse é um problema já bastante conhecido dos
fiscais e que ocorre em outros Estados da Amazônia.
"A gente via em apreensões feitas nas serrarias, com os
ipês quase prontos para a exportação, e ao fazermos as rotas inversas
chegamos aos seis planos de manejo fraudulentos que vistoriamos em
campo. O estudo de agora traz robustez para o que a gente vem mostrando
há anos, mostra que o problema é amplo e reforça a necessidade de um
maior rigor na análise dos licenciamentos."
A Secretaria de Meio Ambiente do Pará foi procurada pela reportagem para comentar o estudo, mas não se manifestou até as 17h.
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