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Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR
Hoje, vou escrever primordialmente para 
economistas, mas espero que o texto seja acessível, ao menos em parte, 
também para outros. Quero tratar de uma controvérsia entre os 
economistas heterodoxos. São basicamente dois grupos. De um lado da 
controvérsia, os mais tradicionais, para quem os déficits e a dívida 
pública são preocupações relevantes. De outro, os mais inovadores e 
extremistas, para quem isso não passa, essencialmente, de um mito 
ortodoxo, derivado de uma má compreensão da economia. O primeiro grupo é
 constituído de keynesianos convencionais. O segundo é influenciado pela
 Teoria Monetária Moderna, que surgiu há alguns anos nos EUA e teve 
grande repercussão lá e em outros países. A controvérsia é complexa; não
 vou abordar senão alguns de seus aspectos.
Uma advertência preliminar 
Antes de entrar no assunto, uma breve 
advertência. Trata-se, leitor, de uma briga dentro da mesma família. Bem
 sei que essas brigas tendem a ser as piores, podendo tornar-se 
realmente fratricidas. Por isso mesmo, cabe moderar os ânimos. Tanto 
mais que a economia está longe, muito longe de ser uma ciência exata. 
Nem sei se existe alguma ciência “exata”. Seja como for, a verdade é que
 a economia prima por inexatidão. Nós, economistas, não temos, a rigor, 
certeza de nada. Von Mises chegou a dizer, tongue in cheek, que a única coisa inquestionável em economia seriam as identidades contábeis. 
Além disso, não podemos esquecer que o quadro 
político nacional é muito delicado. Não cabe alimentar lutas internas no
 campo progressista capazes de nos desviar do essencial, que é combater o
 bolsonarismo e o ideário econômico dito neoliberal, mas na realidade 
paleoliberal, a ele associado. 
Há um fator na conjuntura brasileira que exacerba
 a controvérsia teórica entre heterodoxos: a aproximação de uma possível
 eleição de Lula. E a questão central passa a ser: como deve ser a 
política econômica e, em especial, a política fiscal, de gastos e 
tributação, desse possível futuro governo? 
O que direi na sequência é controvertido. Ofereço essas reflexões como modesta contribuição a um debate intrincado, que vai continuar por algum tempo.
A heterodoxia extremada
Vou me dedicar ao grupo mais interessante – o dos
 heterodoxos extremados. O que eles dizem, com algumas poucas 
qualificações, é que não há limite efetivo para o gasto público quando o
 Estado emite uma moeda soberana e não tem dívida expressiva denominada 
em moeda estrangeira. Nesse caso, todas (ou quase todas) as dívidas 
acumuladas pelo setor público são pagas em uma moeda que o Estado emite e
 controla. Por isso, a ideia de que a dívida possa se tornar impagável 
ou insustentável é essencialmente uma lenda ortodoxa. Não há que se 
preocupar com o financiamento do gasto público e sim, primordialmente, 
com a natureza do gasto. O argumento não vale, destaca-se, para 
economias dolarizadas ou com um governo fortemente endividado em moeda 
externa.
Talvez o parágrafo anterior, uma apertada 
síntese, como dizem os advogados, não faça justiça ao argumento. Peço 
que me corrijam, se for o caso, e prossigo. 
Feita a ressalva de que eu possa estar fazendo 
alguma caricatura, diria que o argumento extremado, embora instigante, 
não me parece inteiramente correto. Veja bem, leitor, não porque seja 
extremado. Brasileiro tem (ou tinha) mania de se apresentar como 
moderado, equilibrado etc. e tem, regra geral, preconceito contra 
extremismos. Mas isso é bobagem. Se a verdade está no extremo, vamos a 
ele! O problema é que, nesse caso, não está.
A Teoria Monetária Moderna tem dado importante 
contribuição para desbancar, nos EUA e depois em outras partes, as 
simplificações da ortodoxia econômica, que pode ser tão poderosa quanto 
ignorante. As décadas passaram, mas devo dizer que continuo me 
identificando, temperamentalmente, com os iconoclastas. E vou mais 
longe: acho francamente ridícula a corrida entre alguns economistas 
progressistas para se mostrarem “responsáveis” e “sérios”, endossando, 
no todo ou em parte, os preconceitos econômicos mais rasos do mercado e 
da turma da bufunfa.
Relevância dos déficits e da dívida do setor público 
Mesmo assim, leitor, não vejo como dar razão completa à heterodoxia extremada. Seria uma beleza se não houvesse restrição fiscal e se bastasse nos livrarmos de um ideário superado e pernicioso. Infelizmente, não é bem assim. Os déficits e a dívida do setor público não são irrelevantes, ou de pouca relevância, mesmo em economias com moeda própria e governos não-endividados em moeda estrangeira.
Vejamos por quê. A razão menos controvertida, 
presente já em Abba Lerner, um dos principais antepassados teóricos da 
Teoria Monetária Moderna, é a restrição de capacidade produtiva. Uma 
expansão do déficit fiscal, que reflita uma política de ampliação do 
gasto ou de diminuição da carga tributária, pode esbarrar em limitações 
de oferta agregada quando é alto o grau pré-existente de utilização da 
capacidade existente. E, note-se – a restrição de capacidade pode ser 
relevante mesmo que o grau médio de ociosidade seja elevado. Uma 
dispersão em torno dessa média pode fazer com que gargalos e pressões 
setoriais de demanda sobre preços e salários surjam bem antes da 
economia se aproximar do pleno emprego da mão de obra, das instalações 
produtivas e dos demais fatores de produção. 
Pode-se indagar em contra-argumento: mas isso 
vale mesmo que a expansão do gasto governamental ou a diminuição da 
receita tributária resultem em aumento da capacidade produtiva da 
economia, via maior investimento público ou estímulos ao investimento 
privado? Mesmo assim. A oferta responde mais lentamente do que a demanda
 agregada. Esgotada a capacidade pré-existente, ou já com a aproximação 
desse limite, instala-se um quadro de excesso de demanda, com 
consequências em termos de inflação mais alta e desequilíbrios no 
balanço de pagamentos em transações correntes. 
O desequilíbrio de balanço de pagamentos nos 
conduz a uma segunda razão para não aceitar a heterodoxia extremada. 
Quando o Estado não é emissor de moeda de liquidez internacional, a 
economia fica submetida, potencialmente, a uma restrição externa. O 
aspecto central aqui não é nem a conta corrente do balanço de 
pagamentos, mas a movimentação de capitais. Se a política fiscal 
expansiva provocar a percepção nos detentores do capital de que a dívida
 pública cresce de maneira insustentável, tende a haver pressão sobre a 
taxa de câmbio e/ou as reservas internacionais, com impactos adversos na
 inflação, nas taxas de juro e em outros aspectos da economia. Note-se 
que, na ausência de controles efetivos de capital, as reações relevantes
 se estendem também aos detentores domésticos de capital. Note-se, 
também, que a ausência de dívida pública em moeda estrangeira não 
elimina o problema. Basta que sejam elevados, como costuma ocorrer, os 
passivos externos líquidos do país ou os ativos domésticos líquidos 
relativamente ao estoque de reservas internacionais no Banco Central.
Mas fica ainda assim a pergunta, na qual insistem
 os heterodoxos extremados: faz sentido falar em “sustentabilidade” da 
dívida? Ou isso não passa de um preconceito ortodoxo, a ser superado 
pelo abandono de ideias ultrapassados? Haveria, portanto, uma petição de
 princípio no parágrafo anterior? Duas respostas aqui. Uma, mais fraca, é
 que os detentores do capital acreditam nessas “ideias ultrapassadas” e 
podem reagir de acordo com elas. Essa resposta é mais fraca porque é 
possível admitir que, ao longo do tempo, o choque com a realidade 
dissiparia os preconceitos. 
Mais fundamental é reconhecer que, sim, a dívida 
pública pode se revelar “insustentável”, ainda que não com a rapidez e a
 previsibilidade imaginada pela ortodoxia. Isso porque a dívida pode 
entrar numa dinâmica de bola de neve e alcançar uma proporção proibitiva
 do PIB e da riqueza nacional. 
Como? O crescimento da dívida corresponde ao 
déficit (descontado o aumento da base monetária). O déficit, por sua 
vez, depende da despesa de juros, que reflete o estoque pré-existente de
 dívida e a taxa de juro média incidente sobre a dívida. A dívida gera 
déficit que gera dívida em valores sempre maiores – a menos que o setor 
público seja capaz de compensar essa tendência com superávits primários 
elevados. O que interessa, entretanto, não é o valor absoluto da dívida,
 mas a sua relação com o PIB, a receita tributária e o estoque de 
riqueza nacional. Por conveniência, o costume é comparar a dívida com o 
PIB, que aparece como proxy da riqueza e da capacidade de pagamento do 
setor público. 
Com um pouco de aritmética, pode-se demonstrar 
que as variáveis-chave na determinação da trajetória da razão dívida/PIB
 ao longo do tempo são, de um lado, o diferencial entre a taxa de juro 
sobre a dívida e a taxa de crescimento do PIB e, de outro, o resultado 
primário. A variação do quociente dívida/PIB é função direta desse 
diferencial e função inversa do resultado primário. 
O argumento dos heterodoxos extremados é que 
basta assegurar uma taxa de juro inferior à taxa de crescimento 
econômico para estabilizar a razão dívida/PIB sem que o superávit 
primário necessário para alcançar tal objetivo seja muito elevado. 
Ademais, lembram eles, o crescimento econômico induzido pela política 
fiscal expansiva e pela política de juros modestos não só aumenta o 
denominador da razão, como facilita a geração de superávits nas contas 
primárias ao elevar a arrecadação e diminuir as despesas de caráter 
cíclico (seguro-desemprego e outras).
Tudo isso é verdade, mas só até certo ponto. As 
acima mencionadas restrições de capacidade e de balanço de pagamentos 
podem tornar inviável a combinação de políticas fiscais e monetárias 
expansionistas. Mas se a taxa de juro passa então a superar a taxa de 
crescimento econômico, fica difícil impedir fica impedir o aumento da 
razão dívida/PIB. Esse aumento não tem como continuar indefinidamente, 
pois não pode exceder o estoque de riqueza nacional. Muito antes de 
bater nesse teto, o crescimento da dívida levará a um aumento dos 
prêmios de risco embutidos na taxa de juro dos títulos públicos, 
realimentando o crescimento da dívida via componente financeiro do 
gasto. 
O governo acabará confrontado, cedo ou tarde, com
 a tarefa sempre politicamente difícil de cortar gastos ou aumentar 
impostos – difícil em si mesma e prejudicial, além disso, para a demanda
 agregada e o PIB, o que joga a economia num círculo vicioso e 
realimenta, também por essa via, o crescimento da dívida.
Heterodoxia, pero no mucho
A heterodoxia extremada tem muitos méritos, 
inclusive alguns que não cheguei a abordar aqui. Ela é superior, mesmo 
na versão talvez caricatural que aqui critiquei, ao fiscalismo tosco de 
muitos economistas ortodoxos. Mas ao favorecer a percepção de que não 
há, ou há poucos, limites para o gasto público, ela pode contribuir para
 desastres de política econômica.
Como dizia o presidente Ernesto Geisel, um 
governo será composto, por toda a eternidade, de um ministério em que 
todos os ministros querem gastar – todos menos um, a quem cabe 
economizar: o ministro da Fazenda ou da Economia. Se esse último quiser 
ser gastador também, aí o governo corre risco.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 1 de abril de 2022. 
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do 
Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de 
Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e 
diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de
 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O 
Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um 
economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre 
nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. 
E-mail: paulonbjr@hotmail.com
Twitter: @paulonbjr
Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br 
Portal: www.nogueirabatista.com.br
 
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