quinta-feira, 19 de novembro de 2020

O bem que o TOQUE nos faz e como lidar com a privação dele

Getty Images
Pesquisas científicas confirmam a importância do contacto físico para a manutenção do nosso equilíbrio a todos os níveis. O que podemos fazer, em tempo de fadiga pandémica, para colmatar a privação da proximidade tátil sem comprometer as medidas de segurança

Não seria preciso um estudo em neurociência sobre os efeitos das carícias e do toque íntimo partilhado entre duas pessoas para concluir que os padrões cerebrais se sincronizam quando elas se abraçam, mas uma equipa de investigadores finlandeses da Aalto University, numa parceria com o Turku PET Center, acaba de confirmar isso mesmo. Pediram dez casais, à vez,  para passarem 45 minutos dentro de um equipamento com imagem de ressonância magnética funcional (fMRI). Enquanto os participantes tocavam nos lábios um do outro, eram registadas as reações produzidas no córtex motor e sensorial dos cérebros de cada dupla. Após algum tempo de toque interpessoal, as funções cerebrais e os níveis de cortisol (produzidos pelas glândulas supra-renais) de cada um sincronizar-se, a par de ajustes das ações que ocorriam a cada momento, por imitação e espelhamento dos movimentos do casal. 

Embora existam diferenças culturais que levam em conta o espaço vital de cada um e a proximidade ideal entre pessoas (graus de parentesco, amizade, ligações amorosas, grupos), o contacto num contexto não ameaçador tem a mesma função: nutrir, apoiar e estabelecer ou reforçar a conexão humana. Que o digam as crianças, os jovens adultos, os menos jovens e aqueles que passam por crises, dificuldades e convalescenças, do início até ao fim da vida. A ligação entre o toque e as emoções revela-se um amortecedor nas horas difíceis e, ainda, uma vitamina de saúde e bem-estar.

Bendita oxitocina

Os estudos da investigadora americana Helen Fisher sobre a biologia do amor permitiram inventariar os mecanismos da paixão e o papel das hormonas e neurotransmissores na passagem desse estado para outros vínculos, como os relacionamentos duradouros. Uma dessas substâncias, também conhecida por “hormona do amor”, é libertada durante a amamentação e durante o orgasmo, mas também em gestos como dar a mão, abraçar, olhar nos olhos e trocar carícias, com efeitos benéficos na saúde física, mental, emocional e espiritual:

  • Reduz a pressão arterial e os níveis de cortisol (hormonas do stresse) 
  • Promove estados de bem-estar e sentimentos de vinculação e de empatia 
  • Diminui a sensibilidade ao medo, pela sensação de segurança no contacto próximo
  • Reforça o sistema imunitário, pela menor vulnerabilidade a infeções e doenças  
  • Atenua e bloqueia os sinais da dor nos circuitos neuronais 
  • O aconchego do corpo de outro antes de dormir acalma a respiração e induz relaxamento 
  • Contribui para um estado de serenidade e de disponibilidade, em sintonia com o mundo 

Sentir-se tocado no plano somatossensorial (sensações do corpo) permite regular as emoções, especialmente em contextos favoráveis, como numa situação romântica ou na relação entre amigos e familiares próximos. Embora não existissem meios sofisticados, como hoje, para compreender o que se passa no cérebro dos mamíferos durante o contacto físico, há mais de meio século que se sabe que bebés sem acesso ao toque ou negligenciados pelos cuidadores tendiam a ficar doentes e, até, a morrer.

Somos programados para ser gregários: foi desse modo que sobrevivemos enquanto espécie. Talvez tenha sido por isso que, no início do desconfinamento, os gabinetes de massagem se encheram e as agendas de cabeleireiros, barbeiros e esteticistas ficaram completas de um dia para o outro. Os cuidados pessoais que envolvem contacto, segurança e intimidade geram satisfação, relaxamento e bem-estar.

A “fadiga da pandemia”, ou o sentimento de sobrecarga por nos mantermos constantemente vigilantes e saturados de obedecer a restrições na nossa vida, está a afetar 60% das pessoas, segundo a OMS 

Cansaço legítimo

Precisamos de tal forma do contacto humano que não constituiu surpresa o estudo recente divulgado pela Organização Mundial da Saúde: a “fadiga da pandemia”, ou o sentimento de sobrecarga por nos mantermos constantemente vigilantes e saturados de obedecer a restrições na nossa vida, está a afetar 60% das pessoas. Este impacto negativo traduz-se ao nível dos comportamentos: por um lado, uma perceção de risco diminuída (aumento da tolerância, por se tornar redundante); por outro, dificuldades em visualizar o futuro, lidar com a desinformação e as alterações frequentes (do aumento dos casos de infeção às mudanças nas orientações, ao longo de meses). Feitas as contas, estima-se que entre 20% e 30% estejam a sofrer com o impacto psicológico da pandemia, sob a forma de perturbações ansiosas, depressivas e de stresse. 

A este respeito, a Ordem dos Psicólogos Portugueses lançou um documento alertando para a importância de “continuar a fazer a nossa vida sem baixar a guarda”, em três passos: 

  • Repetir comportamentos para que os possamos adotar sem esforço
  • Andar sempre com desinfetante e máscara
  • Adaptar-se à nova realidade com ajustes de conduta (como sucedeu com o fim dos sacos de plástico descartáveis no supermercado) 

Confrontados com mais um novo Estado de Emergência, não terá sido a melhor coisa do mundo ter ouvido o “recado” do chefe do Executivo, António Costa: “Quem se sente cansado não tem direito a sentir-se cansado”. A nota terá sido recebida com algum incómodo por todos, incluindo aqueles que se desdobram em esforços para não serem agentes transmissores e que têm cumprido com zelo as restrições impostas. Em face desta – já longa – privação, haverá alguma coisa que nos serene e ajude a aguentar a maratona, isto é, a conviver com o Sars-Cov-2?  

Carícias ao domicílio

Bem antes da pandemia, já havia sinais da falta de toque humano nas sociedades desenvolvidas. Há sete anos, após ter assistido a um vídeo da Campanha do Abraço Livre (Free Hugs, que também chegaria a Portugal, com  pessoas na rua empunhando cartazes e propondo abraços, gratuitos ou com donativos), uma personal trainer americana, do Estado de Oregon, decidiu lançar um serviço que, à primeira vista, era apenas insólito e talvez uma ideia para não levar a sério. Tinha então 30 anos, dores crónicas resultantes das sequelas de acidentes rodoviários e deixara para trás um casamento insatisfatório, sobretudo por falta de toque. Se ela sentia isto, era possível que outros também o sentissem. E avançou para um negócio próprio, assente na prestação de aconchego como terapia. Inicialmente, os clientes eram maioritariamente pessoas com deficiência e Stresse Pós-Traumático. Um ano mais tarde, o Cuddle Up to Me chegou à imprensa e, desde então, a procura não mais parou.

Samantha Hesse, Cuddle Up To Me
Samantha Hess, a personal trainer que lançou um serviço de carícias profissional. Com a pandemia, faz aconchego virtual DR

“Sam” construiu um manual, desenvolveu um método e criou, até, uma certificação. No livro Touch: The Power of Human Connection, a profissional do mimo (cuddler) afirma que as pessoas tendem a negligenciar as suas necessidades básicas, lembrando coisas tão óbvias como esta: “O toque conforta-nos quando estamos tristes e cura-nos quando estamos doentes.” Estava longe de imaginar que, apesar da redobrada importância das carícias enquanto promotoras de autoestima e dignidade humana, iríamos, todos, ficar carentes delas, com a chegada da Covid-19. 

Aos 37 anos, a empresária não fechou portas, mas adaptou o formato. No site, apresenta a equipa e um vídeo grátis com a duração de 11 minutos, onde propõe estabelecer contacto visual com a sugestão “eu vejo-te, eu aceito-te”, deixando ao critério de cada um permanecer no exercício, fazer pausas e desviar o olhar ou terminar a meio. As sessões de “aconchego virtual”, por telefone ou videochat, são agora o registo mais comum, mas é possível ter sessões presenciais, embora com regras bem mais apertadas.  

Gestos de humanidade não tiram férias 

Numa altura em que se pede ainda mais resiliência a fim de minimizar danos, Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, admite que “não há como sair ileso das dificuldades em concretizar o toque”.

É preciso reconhecer que estamos ansiosos e carentes de afetos, sem fazer de conta que isso não é importante, e compensar a falta de toque com outras manifestações de intimidade

Sofia Ramalho, Vice-presidente da Ordem dos Psicólogos

O que faz a diferença? “É preciso reconhecer que estamos ansiosos e carentes de afetos, sem fazer de conta que isso não é importante, e compensar a falta de toque com outras manifestações de intimidade” de forma a que as pessoas não se sintam desvalorizadas ou que não estão a ser acolhidas. Isto aplica-se, sobretudo, às crianças em idades em que predomina o pensamento concreto: “Foram ensinadas a cumprimentar com um beijo e de repente são instruídas no sentido contrário por causa de um vírus que não é palpável porque não o conseguem ver.” 

O psicólogo clínico Eduardo Sá alerta para a “vertigem inquietante” a que se assiste em algumas escolas: “Uma criança tosse e é colocada à margem pelas mães dos colegas e até pelos seus amigos, ou é ameaçada de suspensão por apanhar uma coisa do chão.” Da mesma forma, “não é sensato que os alunos do primeiro ciclo não tenham recreio”, como também acontece. “Só falta pedir-lhes para não serem crianças”, ironiza.   

Os mais pequenos precisam do nosso rosto, do nosso toque, dos nossos abraços; contrariamente ao que tenho ouvido, elas não aguentam tudo e os custos vão sentir-se a médio prazo

Eduardo Sá, Psicólogo clínico

Nos esforços para sobreviver à pandemia, podemos estar perder a noção dos valores humanos: “Os mais pequenos precisam do nosso rosto, do nosso toque, dos nossos abraços; contrariamente ao que tenho ouvido, elas não aguentam tudo e os custos vão sentir-se a médio prazo.” Até podem adotar um comportamento simpático mas “se as crianças tiverem o azar de ser tocadas com afeto com uma festa na cabeça, podem reagir com repugnância por medo de serem contaminadas, como se os gestos de humanidade tivessem ido de férias”.

Nós, adultos, também precisamos de uma abordagem mais humanizada e “com medidas de fiscalização eficazes (caso das festas dos adolescentes), consideração pelos mais velhos, que estão a ser empurrados para a depressão (reconhecer as suas capacidades e estar presente) e falando verdade às pessoas”.  Com sensibilidade e bom senso, portanto.

 

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