Desenganem-se os que desvalorizam Donald Trump pensando que é um franco-atirador isolado, perigoso mas agindo por conta própria. Ou os que o consideram apenas uma caricatura do populismo, da ignorância, da arrogância, do autoritarismo e da grosseria política. Trump é tudo isso, mas é muito mais. E o mais importa.
1. Trump tem um programa político nacionalista e autoritário de direita e tem uma base social de apoio que se revê nas decisões que já tomou. É um programa simultaneamente de desregulação dos mercados e de protecionismo nacional, um programa contra o trabalho e contra os mínimos de Estado social que, num passado ainda recente, eram património comum, na Europa, de sociais-democratas e democratas-cristãos. E é esse programa que tem o apoio não apenas de cidadãos republicanos nos EUA, mas, embora de modo ainda envergonhado, de setores importantes da direita em vários países europeus, incluindo em Portugal, como foi assinalado por Pacheco Pereira.
2. As políticas sociais-democratas não visam anular o mercado. Visam, sim, a promoção da igualdade nas sociedades capitalistas através da regulação dos vários mercados e do desenvolvimento de mecanismos de compensação do seu funcionamento e de delimitação do seu âmbito. Visam, em suma, a construção de sociedades ao mesmo tempo prósperas e decentes.
Políticas de regulação, no caso de mercado de trabalho, para equilibrar a relação de poder entre empregados e empregadores, reduzir as desigualdades de rendimentos do trabalho e minimizar a pobreza entre os que trabalham, como são as políticas de promoção da liberdade sindical, de contratação coletiva e de definição de um salário mínimo. Políticas de compensação do funcionamento do mercado de trabalho, como são o rendimento social de inserção, as pensões mínimas ou o complemento solidário para idosos, que servem para proteger e combater a pobreza extrema daqueles que, estando dentro ou fora do mercado de trabalho, não têm rendimentos para sobreviver decentemente. Políticas de delimitação do âmbito dos mercados que, recusando a transformação das economias de mercado em sociedades de mercado, estiverem na origem da criação de serviços públicos universais e gratuitos. Em muitos países, a educação e a saúde constituíram-se como importantes exemplos de organização da vida social em moldes não mercantis, permitindo, naqueles domínios, a criação de patamares de bem-estar social para a generalidade da população.
3. O programa de Trump é definido contra estas políticas, ou melhor, contra as variantes fracas destas políticas nos EUA. E é por isso que agrada à direita mais radical, defensora de um capitalismo sem regras.
Proclamando o right of work, Trump propõe-se acabar com o que resta das políticas de regulação do mercado de trabalho, diminuindo os efeitos da contratação coletiva e colocando obstáculos à ação dos sindicatos e à sindicalização dos trabalhadores. Nomeando para ministra da Educação uma milionária que defende políticas de privatização das escolas e de generalização do cheque-ensino, ao mesmo tempo que inicia o processo legislativo de desmantelamento do Obamacare, Trump propõe-se limitar drasticamente a prestação pública de serviços sociais. Reduzindo os impostos e as contribuições das empresas, Trump propõe-se alienar a possibilidade de desenvolvimento de políticas públicas redistributivas e de promoção do bem comum. E, finalmente, com a desregulação do sistema financeiro, Trump está a tornar mais atrativo o investimento especulativo, valorizando a economia de casino em detrimento da economia produtiva e criando condições para uma nova crise financeira.
4. O que está a emergir não é novo. Trump está a reeditar os loucos anos 20 do século passado, quando o brilho das festas milionárias coexistia com o desespero das filas de desempregados e da sopa dos pobres. Ou quando a desregulação do sistema financeiro terminou de forma inglória na crise de 1929. Trump está a reabrir feridas antigas que pareciam saradas.
A incorporação, no funcionamento das democracias ocidentais, desde o pós-guerra, de princípios do ideário social-democrata, com variantes mais ou menos alargadas, adormeceu-nos e fez-nos esquecer o caminho percorrido. Fez-nos esquecer que para afirmar e defender o valor do trabalho perante o capital, para construir sociedades mais decentes, foi necessário um combate longo, uma luta de classes como então se dizia. A forma radical, sectária e agressiva como Trump está a avançar com o seu programa revela predisposição para abrir uma verdadeira guerra do capital contra o trabalho. A luta de classes está de volta, mas a iniciativa mudou de mãos.
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