O país que conseguiu chegar à Lua
e criou a revolução da internet tem
40 milhões de pessoas abaixo da
linha de pobreza e pouco reduziu
este índice desde 1963 — o que
explica facetas tão distintas?
Este é um dos grandes paradoxos dos
nossos tempos: os Estados Unidos, país
mais rico do mundo, têm alguns dos piores
índices de pobreza no grupo dos países
desenvolvidos.
Mais de meio século depois que o presidente
Lyndon B. Johnson declarou "guerra
incondicional à pobreza", os EUA ainda
não descobriram como vencê-la.
Desde a declaração de Johnson, em 1964, o
país teve conquistas surpreendentes, como
chegar à Lua ou gestar a internet. Entretanto,
nesse período, conseguiu uma tímida redução
no índice de pobreza, que caiu de 19% para
cerca de 12%.
Isso significa que quase 40 milhões de
americanos vivem abaixo da linha oficial
de pobreza.
O problema é muito maior e mais antigo do
que se vê na atual pandemia do novo
coronavírus, que também vem revelando
e intensificando questões sociais do
país — os EUA têm o maior número de
casos de covid-19 no mundo e agora
enfrentam os piores níveis de desemprego
desde a Grande Depressão de 1930.
Até hoje, segundo estudiosos, o aumento
da pobreza foi contido nos EUA graças a
uma expansão histórica de subsídios
do governo.
Mesmo antes da crise na saúde, o país
já destinava anualmente bilhões de dólares
a programas de combate à pobreza, em
quantias até maiores do que o Produto
Interno Bruto (PIB) de alguns países da
América Latina.
"Essa é a ironia: seria uma coisa se
fôssemos um país pobre e realmente
não pudéssemos fazer muito a respeito.
Mas temos os recursos", diz Mark Rank,
professor da Universidade de Washington
em St. Louis, considerado um dos maiores
especialistas em pobreza nos EUA, à BBC
News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Questão cultural: o tabu do fracasso individual
Pesquisadores apontam para duas razões
fundamentais por trás da pobreza nos
Estados Unidos: uma tem a ver com
simbologia e a outra é pragmaticamente
econômica.
Primeiro, os EUA carecem de uma rede
de assistência social forte ou programas de
apoio à renda como outros países.
Os programas de assistência social que
os Estados Unidos implementaram nas
últimas décadas, como vale-alimentação
ou seguro desemprego, permitiram reduzir
em alguns pontos a pobreza, mas são
considerados limitados.
Fatores culturais são geralmente lembrados
para explicar isso.
"Nós tendemos a ver a pobreza nos EUA
como um fracasso individual, ou seja, como
se as pessoas não tivessem trabalhado duro
o suficiente. Como se tivessem tomado
decisões ruins ou não tivessem talento o
suficiente. Assim, é algo como: cabe a você
se erguer", afirma Rank.
"O resultado é que realmente não fazemos
muito em termos de políticas sociais para tirar
as pessoas da pobreza."
Somam-se a isso as desigualdades
raciais: as minorias sofrem
desproporcionalmente no país.
Enquanto 11% das crianças brancas nos
EUA vivem na pobreza, essa taxa chega a
32% para crianças negras e 26% para
crianças latinas, segundo dados do censo
levantados pelo Centro de Dados Kids
Count.
"A pobreza é frequentemente vista como
um problema para os não-brancos, e isso
também reduz a vontade de ajudar os
outros", diz Rank.
"Existem estudos mostrando que em países
mais homogêneos em termos de raça e
etnia, existe uma rede de segurança mais
robusta, porque as pessoas veem os outros
como semelhantes — tendo maior probabilidade
de querer ajudar."
Maior desigualdade
Por outro lado, especialistas apontam para
um fator econômico: a deterioração do
mercado de trabalho americano para
aqueles com salários mais baixos, que
representam cerca de 40% do total e
sofreram perdas em seus ganhos reais
nas últimas décadas.
As razões vão do enfraquecimento dos
sindicatos às transformações tecnológicas.
Assim, a desigualdade de renda e riqueza
nos EUA aumentou e é maior do que em
quase qualquer outro país desenvolvido, de
acordo com o Council on Foreign Relations,
um centro de pesquisas em Washington.
Christopher Wimer, codiretor do Centro de
Pobreza e Política Social da Universidade
de Columbia, argumenta que, nos EUA, "as
oportunidades no mercado de trabalho
tendem a ir para pessoas com formação
superior e que se beneficiaram do
crescimento econômico".
"E grande parte desse crescimento
econômico não foi compartilhado nas
faixas de renda ou escolaridade que
vêm abaixo", contou à BBC News Mundo.
'Uma escolha política'
Mas houve sim, nas últimas décadas, alguns
avanços sociais — como níveis mais altos
de escolaridade e queda na mortalidade
infantil.
Além disso, especialistas alertam que o
cálculo do índice oficial de pobreza nos
EUA se baseia apenas em renda, sem
contar com auxílios do governo como
créditos fiscais, cupons de alimentos
ou assistência habitacional.
Um estudo recente de Wimer e outros
pesquisadores de Columbia projetou que,
sem ajuda emergencial aprovada na
pandemia de coronavírus, a taxa de
pobreza do país teria saltado de
12,5% antes da crise para 16,3%.
Mas esses benefícios, que incluem
cheques semanais de US$ 600 a
trabalhadores afetados pela
pandemia, expiraram no final
do mês. Sua continuidade depende
de um acordo entre o Congresso e
a Casa Branca.
Antes da covid-19, especialistas já
alertavam que o país era condescendente
com níveis muito altos de pobreza.
"Os Estados Unidos são um dos países
mais ricos, poderosos e tecnologicamente
inovadores do mundo. Mas nem sua riqueza,
nem seu poder, nem sua tecnologia estão
sendo usados para resolver a situação em
que 40 milhões de pessoas continuam
vivendo na pobreza", indicou no final de
2017 o então relator especial das Nações
Unidas para a pobreza extrema e direitos
humanos, Philip Alston.
Entre outras coisas, Alston observou que
os EUA tinham a maior mortalidade infantil
no mundo desenvolvido, que a expectativa
de vida de
seus cidadãos era menor e menos saudável
do que em outras democracias ricas.
E também que sua pobreza e desigualdade
estavam entre as piores no clube dos
países ricos da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), além de uma
taxa de encarceramento entre as mais
altas do mundo.
"No fim das contas", afirmou ele,
"particularmente em um país rico como
os EUA, a persistência da pobreza
extrema é uma escolha política feita
pelos que estão no poder".
Luke Shaefer, diretor da iniciativa Poverty
Solutions da Universidade de Michigan,
defende políticas mais simples nos EUA
e com uma abordagem mais universal.
Um estudo realizado por ele e outros
especialistas da universidade indicou
que os Estados Unidos investem
US$ 278 bilhões (mais de R$ 1,4 trilhões)
por ano em programas governamentais de
combate à pobreza, sem contar os gastos
com saúde.
Somando-se programas de saúde para os
mais pobres, como o Medicaid, o
investimento anual chega a US$ 857
bilhões (mais de R$ 4,4 trilhões), ou seja,
mais do que o PIB da Argentina e do Chile
somados.
"Muitos desses dólares não estão indo
realmente para os mais pobres", alerta
Shaefer.
As eleições presidenciais de novembro
podem dar aos EUA uma nova
oportunidade para repensar como melhorar
esses gastos, acreditam aqueles que
se dedicam ao tema há anos.
"Existem pessoas da esquerda e da direita
falando que essa abordagem (atual) não
está funcionando. Temos que fazer
algumas coisas de maneira diferente,
precisamos simplificar", diz ele.
"Tenho alguma esperança de que
possamos progredir."
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