domingo, 2 de agosto de 2020

Por que os EUA têm os piores índices de pobreza do mundo desenvolvido

CONOMIA

O país que conseguiu chegar à Lua

e criou a revolução da internet tem

40 milhões de pessoas abaixo da

linha de pobreza e pouco reduziu

este índice desde 1963 — o que

explica facetas tão distintas?

2 AGO2020

Milhares de famílias dependem da ajuda de bancos
de alimentos nos EUA
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Este é um dos grandes paradoxos dos

nossos tempos: os Estados Unidos, país

mais rico do mundo, têm alguns dos piores

índices de pobreza no grupo dos países

desenvolvidos.

Mais de meio século depois que o presidente

Lyndon B. Johnson declarou "guerra

incondicional à pobreza", os EUA ainda

não descobriram como vencê-la.

Desde a declaração de Johnson, em 1964, o

país teve conquistas surpreendentes, como

chegar à Lua ou gestar a internet. Entretanto,

nesse período, conseguiu uma tímida redução

no índice de pobreza, que caiu de 19% para

cerca de 12%.

Isso significa que quase 40 milhões de

americanos vivem abaixo da linha oficial

de pobreza.

O problema é muito maior e mais antigo do

que se vê na atual pandemia do novo

coronavírus, que também vem revelando

e intensificando questões sociais do

país — os EUA têm o maior número de

casos de covid-19 no mundo e agora

enfrentam os piores níveis de desemprego

desde a Grande Depressão de 1930.

Até hoje, segundo estudiosos, o aumento

da pobreza foi contido nos EUA graças a

uma expansão histórica de subsídios

do governo.

Mesmo antes da crise na saúde, o país

já destinava anualmente bilhões de dólares

a programas de combate à pobreza, em

quantias até maiores do que o Produto

Interno Bruto (PIB) de alguns países da

América Latina.

"Essa é a ironia: seria uma coisa se

fôssemos um país pobre e realmente

não pudéssemos fazer muito a respeito.

Mas temos os recursos", diz Mark Rank,

professor da Universidade de Washington

em St. Louis, considerado um dos maiores

especialistas em pobreza nos EUA, à BBC

News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Questão cultural: o tabu do fracasso individual

Nos EUA, 40 milhões de pessoas vivem abaixo da
linha da pobreza
Foto: AFP / BBC News Brasil

Pesquisadores apontam para duas razões

fundamentais por trás da pobreza nos

Estados Unidos: uma tem a ver com

simbologia e a outra é pragmaticamente

econômica.

Primeiro, os EUA carecem de uma rede

de assistência social forte ou programas de

apoio à renda como outros países.

Os programas de assistência social que

os Estados Unidos implementaram nas

últimas décadas, como vale-alimentação

ou seguro desemprego, permitiram reduzir

em alguns pontos a pobreza, mas são

considerados limitados.

Fatores culturais são geralmente lembrados

para explicar isso.

"Nós tendemos a ver a pobreza nos EUA

como um fracasso individual, ou seja, como

se as pessoas não tivessem trabalhado duro

o suficiente. Como se tivessem tomado

decisões ruins ou não tivessem talento o

suficiente. Assim, é algo como: cabe a você

se erguer", afirma Rank.

"O resultado é que realmente não fazemos 

muito em termos de políticas sociais para tirar 

as pessoas da pobreza."

Somam-se a isso as desigualdades 

raciais: as minorias sofrem 

desproporcionalmente no país.

Enquanto 11% das crianças brancas nos

EUA vivem na pobreza, essa taxa chega a

32% para crianças negras e 26% para

crianças latinas, segundo dados do censo

levantados pelo Centro de Dados Kids

Count.

"A pobreza é frequentemente vista como

um problema para os não-brancos, e isso

também reduz a vontade de ajudar os

outros", diz Rank.

"Existem estudos mostrando que em países

mais homogêneos em termos de raça e

etnia, existe uma rede de segurança mais

robusta, porque as pessoas veem os outros

como semelhantes — tendo maior probabilidade

de querer ajudar."


Desigualdade nos EUA é ainda mais presente 
e sofridaentre os negros
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Maior desigualdade

Por outro lado, especialistas apontam para

um fator econômico: a deterioração do

mercado de trabalho americano para

aqueles com salários mais baixos, que

representam cerca de 40% do total e

sofreram perdas em seus ganhos reais

nas últimas décadas.

As razões vão do enfraquecimento dos

sindicatos às transformações tecnológicas.

Assim, a desigualdade de renda e riqueza

nos EUA aumentou e é maior do que em

quase qualquer outro país desenvolvido, de

acordo com o Council on Foreign Relations,

um centro de pesquisas em Washington.

Christopher Wimer, codiretor do Centro de

Pobreza e Política Social da Universidade

de Columbia, argumenta que, nos EUA, "as

oportunidades no mercado de trabalho

tendem a ir para pessoas com formação

superior e que se beneficiaram do

crescimento econômico".

"E grande parte desse crescimento

econômico não foi compartilhado nas

faixas de renda ou escolaridade que

vêm abaixo", contou à BBC News Mundo.

Apenas alguns segmentos da população americana,
como aqueles com acesso ao ensino superior, se
beneficiaram das conquistas econômicas do país
nas últimas décadas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

'Uma escolha política'

Mas houve sim, nas últimas décadas, alguns

avanços sociais — como níveis mais altos

de escolaridade e queda na mortalidade

infantil.

Além disso, especialistas alertam que o

cálculo do índice oficial de pobreza nos

EUA se baseia apenas em renda, sem

contar com auxílios do governo como

créditos fiscais, cupons de alimentos

ou assistência habitacional.

Um estudo recente de Wimer e outros

pesquisadores de Columbia projetou que,

sem ajuda emergencial aprovada na

pandemia de coronavírus, a taxa de

pobreza do país teria saltado de

12,5% antes da crise para 16,3%.

Mas esses benefícios, que incluem

cheques semanais de US$ 600 a

trabalhadores afetados pela

pandemia, expiraram no final

do mês. Sua continuidade depende

de um acordo entre o Congresso e

a Casa Branca.

Antes da covid-19, especialistas já 

alertavam que o país era condescendente 

com níveis muito altos de pobreza.

"Os Estados Unidos são um dos países

mais ricos, poderosos e tecnologicamente

inovadores do mundo. Mas nem sua riqueza,

nem seu poder, nem sua tecnologia estão

sendo usados para resolver a situação em

que 40 milhões de pessoas continuam

vivendo na pobreza", indicou no final de

2017 o então relator especial das Nações

Unidas para a pobreza extrema e direitos

humanos, Philip Alston.

Entre outras coisas, Alston observou que

os EUA tinham a maior mortalidade infantil

no mundo desenvolvido, que a expectativa

de vida de

seus cidadãos era menor e menos saudável

do que em outras democracias ricas.

E também que sua pobreza e desigualdade

estavam entre as piores no clube dos

países ricos da Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE), além de uma

taxa de encarceramento entre as mais

altas do mundo.

"No fim das contas", afirmou ele,

"particularmente em um país rico como

os EUA, a persistência da pobreza

extrema é uma escolha política feita

pelos que estão no poder".

No mundo desenvolvido, EUA também
chama a
atenção por indicadores preocupantes
em relação
às crianças
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Luke Shaefer, diretor da iniciativa Poverty

Solutions da Universidade de Michigan,

defende políticas mais simples nos EUA

e com uma abordagem mais universal.

Um estudo realizado por ele e outros

especialistas da universidade indicou

que os Estados Unidos investem

US$ 278 bilhões (mais de R$ 1,4 trilhões)

por ano em programas governamentais de

combate à pobreza, sem contar os gastos

com saúde.

Somando-se programas de saúde para os

mais pobres, como o Medicaid, o

investimento anual chega a US$ 857

bilhões (mais de R$ 4,4 trilhões), ou seja,

mais do que o PIB da Argentina e do Chile

somados.

"Muitos desses dólares não estão indo

realmente para os mais pobres", alerta

Shaefer.

As eleições presidenciais de novembro

podem dar aos EUA uma nova 

oportunidade para repensar como melhorar 

esses gastos, acreditam aqueles que 

se dedicam ao tema há anos.

"Existem pessoas da esquerda e da direita

falando que essa abordagem (atual) não

está funcionando. Temos que fazer

algumas coisas de maneira diferente,

precisamos simplificar", diz ele.

"Tenho alguma esperança de que

possamos progredir."

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