Em meio àqueles que comemoram as mais recentes denúncias e prisões da
operação Lava Jato, muitos veem nelas um motivo adicional para uma
descrença total nos políticos brasileiros.
O clima de revolta com os políticos se acirrou ainda mais após a
divulgação na semana passada das delações dos executivos da JBS e das
conversas mantidas por um dos donos da empresa com o presidente Michel
Temer e, em outra ocasião, com o senador Aécio Neves (PSDB-MG).
Nas redes sociais, têm sido comuns manifestações de revolta que vão
desde "prendam todos os corruptos" e até a negação quase total da
política - "ninguém presta".
Para o economista e cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis,
as duas lógicas são perigosas - e nenhuma delas resolverá a crise
política que assola o país desde 2014, porque "prender corruptos não
significa extinguir a corrupção".
"A leitura aí é que você prende os corruptos, e então vão ficar só os
não-corruptos. Isso é conversa fiada, uma bobagem", afirma.
"É ingenuidade achar que a Lava Jato vai extinguir a corrupção", acrescenta.
Reis compara a corrupção aos vírus de computador - por mais que se
criem antivírus, eles não vão ser capazes de extinguir todos os vírus
existentes.
- Reformas são mais importantes para elite econômica do que a preservação de Temer, diz analista
"Você tem que combater corrupção, sim, é uma tarefa permanente do
Estado, mas é mais ou menos como empresa de computação criando
antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus. Ela vai fazer
antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada", exemplifica.
Reis diz ainda que o desafio do Brasil não é descobrir como se livrar
de políticos corruptos, mas sim como proteger o político da corrupção
ativa praticada pela sociedade.
Para o professor na UFMG e pesquisador do estudo
Dinheiro e Política: A Influência do Poder Econômico no Congresso Nacional
, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a corrupção na
política brasileira "não é mais fator desviante, e sim comportamento
padrão".
E a solução, ele garante, não está em "prender todo mundo", mas em uma
boa reforma do atual sistema político - que, em suas palavras, "é
corrupto por lei".
Leia os principais trechos da entrevista com Bruno Pinheiro Wanderley Reis.
BBC Brasil: O senhor costuma dizer que a "conduta de corrupção na
política brasileira não é mais fator desviante, mas
comportamento-padrão". Como e por que se chegou a essa situação?
Bruno P. W. Reis:
No Brasil, o dispositivo específico, que só incide aqui, é que o teto
de doação (de campanha) tem que ser proporcional ao do doador. Até 2014
(quando doações de empresas eram permitidas), era no máximo 10% do
rendimento da pessoa ou 2% do faturamento bruto da empresa. Qual é a
lógica que isso cria? O candidato só ia pedir dinheiro às empresas que
mais faturam, às pessoas mais ricas. Aí entram bancos, mineradoras,
empreiteiras.
Então fica claro que você vai ter um jogo - porque só pouquíssimas
empresas podiam doar bilhões dentro dessa regra.Obviamente isso vicia o
sistema político e o jogo eleitoral. Vai arrecadar mais o candidato que
tiver boas relações e bom fluxo de recursos com as grandes empresas,
bancos, empreiteiras, mineradoras. É uma anomalia, essa regra só existe
aqui no Brasil.
A gente produz uma competição de centenas de candidaturas individuais
disputando dezenas de cadeiras em distritos com milhões de eleitores. E
isso é muito difícil de fiscalizar, os TREs (Tribunais Regionais
Eleitorais) são admiráveis, mas é impossível governar um sistema em que
concorrem mais de mil candidatos na mesma circunscrição.
Enquanto no resto do mundo você tem uma dezena de chapas disputando
favores e doações de milhares de doadores, aqui no Brasil a gente faz
uma competição em que milhares de candidatos disputam os favores
financeiros de uma dúzia de doadores potenciais.
- Da pujança ao escândalo: a ascensão dos irmãos Batista, pivôs do escândalo que ameaça Temer
Você vai ter uma elite parlamentar, tanto de vereadores quanto de
deputados, extremamente dependente de poucos grandes financiadores. Isso
é um sistema que dá um poder sem igual a financiadores, a agentes
privados que legitimamente têm seus interesses políticos e as suas
prioridades próprias. Só que nenhum país deixa seu representante
político tão vulnerável a seu financiador.
São as grandes empresas, as doadoras, quem dá as cartas nesse sistema (brasileiro).
BBC Brasil: Em 2014, o senhor fez uma análise sobre a Lava Jato
dizendo que a estratégia adotada por ela com as delações premiadas seria
"autodestrutiva" para a política e que ela estaria apenas "enxugando
gelo". Por que o senhor acredita nisso?
Reis:
A delação premiada foi inventada pra pegar máfias, porque máfias têm
uma rede de silêncio. Então você pega um cara que esteja encrencado e
oferece algo em troca para pegar mais gente. E isso é eficaz. Você puxa
um fio e chega até o topo. Mas para mim esse é o pecado crucial da Lava
Jato. A gente quer desbaratar a máfia, mas a gente não quer desbaratar o
sistema político todo.
Em vez de a gente usar o sistema de controle, que está cada vez melhor,
canalizar as investigações para captar os problemas e solucionar
mudando a legislação (do sistema eleitoral), a gente está querendo puxar
o fio - e isso é extremamente destrutivo.
- Líder do DEM diz que acusações são graves, mas que partido vai esperar para decidir se sai do governo Temer
Eu não aplicaria a delação premiada. A exposição do (setor do)
petróleo, com identificação de diretores que estavam recebendo propinas,
já é um mega choque no sistema, que provavelmente mudaria práticas.
Agora, o que você tem é uma clara deterioração institucional, está um
salve-se quem puder.
A capacidade da Lava Jato de investigar pessoas tão poderosas deriva da
estabilidade relativa do sistema político de 1988 para cá. Essa é a
parte mais triste. Esse sistema que está aí agora é o sistema menos
malsucedido que esse país já foi capaz de por em pé em toda a sua
história. A ideia de que o próximo vai ser melhor é só uma esperança.
BBC Brasil: Como o Sr. vê o futuro da Lava Jato?
Reis:
Estamos em uma situação em que todo mundo que é preso a gente já começa
a pensar, qual será a delação? É uma bola de neve. Isso não vai acabar.
Quando vai acabar? Quando o país todo estiver na cadeia, aí você joga a
chave fora? Quando vier um "salvador da pátria"?
Nesse momento, ninguém consegue aprovar no Congresso medidas que
limitem a atuação das investigações, mas vai acontecer. No momento em
que o sistema se reestabilizar, cedo ou tarde isso acontece, algum
salvador da pátria que vai ser eleito vai ter que voltar a ter o
dispositivo de poder. Para fazê-lo de maneira confiável, crível pelos
atores, vai precisar pôr limite na atuação do Judiciário. E é aí que a
ambição de limpeza se mostra destrutiva.
BBC Brasil: Mas não seria tarefa do Estado combater a corrupção em operações como a Lava Jato?
Reis:
Você tem que combater corrupção, sim, essa é uma tarefa permanente do
Estado. Mas é mais ou menos como funciona em uma empresa de computação
que cria antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus, aboli-los.
Ela vai fazer antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada.
Para isso, você tem que ir aperfeiçoando por rotinas burocráticas,
administrativas, etc. a capacidade do sistema de controlar a corrupção. A
gente vinha fazendo isso.
Nossa capacidade de combater a corrupção hoje é muito maior do que há
30 anos. Agora, do jeito que vai, vai piorar. Porque o sistema está
sendo desarticulado na sua teia de interesses, na sua capacidade de
autocontrole. A gente está num processo de autodestruição. O que poderia
acontecer de pior seria o desmantelamento do sistema partidário, que
foi o que aconteceu na Itália, algo catastrófico.
BBC Brasil: Mas se a 'culpa' pela corrupção que toma conta da política
hoje em dia é do sistema eleitoral, a Lava Jato não poderia ajudar a
"consertá-lo"?
Reis:
Não é função da primeira instância, mas o Supremo tem um papel nisso. E
nas declarações dos líderes da operação Lava Jato aparece essa intenção
também, de "limpar o sistema". E nisso eles são precisamente ingênuos.
Não é que você só pode investigar se for fulano, sicrano e beltrano, mas
não pode pegar os graúdos. Não, não é isso. Se você está tocando a
investigação e caiu no colo uma prova contra o presidente da República,
você tem que denunciar. Agora, o que a gente está fazendo aqui é uma
busca retórica de incriminação de políticos importantes, que é guiada
por uma ambição ingênua de purificação do sistema - algo que eu entendo
que é contraproducente.
A leitura da Lava Jato é a de que você prende os corruptos, e então
você vai ter somente os não-corruptos. Mas isso é conversa fiada, uma
bobagem. É demagogia.
O desafio não é como a gente se livra de político corrupto, mas como a
gente protege o político da corrupção ativa praticada pela sociedade.
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Então em vez de a gente reformar a lei, a gente prende os caras. Os
representantes votados pelo eleitorado, induzidos por essa grana. Mas aí
foi preso porque estava cheio de dinheiro - e quem é o suplente? De
onde ele recebeu dinheiro? Estamos enxugando gelo, desestabilizando um
sistema que é estruturalmente viciado e mantido vigente. E ninguém fala
em mudar a lei. A discussão não vai a lugar nenhum.
BBC Brasil: Como, então, se combate a corrupção?
Reis:
O que me preocupa aí é a sustentabilidade desse combate à corrupção. Eu
não vejo isso com bons olhos quando tenho a impressão de que o lastro
institucional que viabilizou com melhoria nítida o combate à corrupção
está em desarranjo. Pode ser que dê certo? Pode ser, por acaso. O normal
é ter conflito, o que se espera de processos como o que a gente está
metido é uma desorganização profunda do lastro partidário e subsequente
comprometimento do controle da corrupção.
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BBC Brasil: Qual seria o sistema político mais viável para o Brasil - e que não "favoreça" a corrupção?
Reis:
Como meu diagnóstico está baseado numa interação infeliz entre o
sistema eleitoral e as regras de financiamento, eu mudaria essas duas
coisas, no que diz respeito ao início do processo. Quer dizer, você tem
que ter tetos nominais para doações, e de números razoáveis, da ordem de
milhares de reais. Eu manteria empresa e pessoa física, desde que cada
um esteja doando (até) R$ 10 mil, R$ 50 mil... Não resolve todos os
problemas, mas fica menos ruim.
A primeira solução seria essa: tetos que não permitam que nenhum doador
individual seja o dono de uma campanha. Isso já tenta induzir uma
fragmentação da fonte de recurso.
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Do outro lado, se o sistema eleitoral produz uma demanda muito alta por
recursos fragmentados, eu tenho que tentar concentrá-lo. O que eu
faria? Fecharia a lista (voto em lista fechada significa voto em
partidos, e não em candidatos a deputados). E diminuindo o número de
candidatos, a eleição fica mais controlável, mais fiscalizável. E por
fim, eu subiria o quociente eleitoral, que automaticamente diminuiria o
número de partidos no plenário.
É simples, não é inventar a roda.
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