Especialistas explicam que uso de intermediários e offshores dificulta identificação de elo direto entre propina e políticos, e que aqueles mais 'graduados' dificilmente deixam rastros óbvios.
31 jan 2018 
O principal ponto de controvérsia em julgamentos importantes de 
corrupção, como do mensalão e aquele que confirmou a condenação do 
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última quarta-feira, é a 
necessidade ou não de provas diretas sobre o suposto recebimento de 
propina por um agente público e o uso do cargo para beneficiar quem fez o
 pagamento.
Corrupção, por natureza, é um crime que se mantém nas sombras. E, 
quanto mais alta a posição ocupada pela pessoa julgada, menores são as 
chances de que deixe rastros óbvios dos crimes cometidos. Por isso, um 
conjunto de provas, que incluem delações e relatos de testemunhas, acaba
 sendo usado para juntar as peças do quebra-cabeça.
E essa dificuldade em comprovar casos de corrupção não é exclusividade 
brasileira. Segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, encontrar 
provas diretas de propina, especialmente quando há políticos e 
empresários poderosos envolvidos, é um "desafio global".
Os mais críticos, contudo, afirmam que interpretações baseadas em 
evidências indiretas podem ferir a presunção de inocência e trazer 
riscos ao devido processo legal.
"Parte da dificuldade de análise acadêmica e também jurídica é 
justamente a coleta de dados. No caso da corrupção, o desafio é coletar 
evidências de links causais do tipo A pagou B que passou para C que, por
 sua vez, se beneficiou de algo", observa o pesquisador brasileiro 
Armando Martins de Castro, da universidade britânica London School of 
Economics (LSE),
Enquanto pesquisadores normalmente usam medidas que se baseiam na 
percepção da corrupção ou experimentos para medir níveis de tolerância 
ou como as pessoas se comportam em determinadas situações, policiais, 
procuradores e juízes têm se fiado cada vez mais no relato de 
colaboradores para tentar coletar indícios.
Rede complexa de corrupção
O professor Alamiro Velludo Salvador Netto, do Departamento de Direito 
Penal da Universidade de São Paulo (USP), destaca que as práticas de 
corrupção ganharam sofisticação ao longo do tempo.
Grandes corporações, com divisão de tarefas internas, passaram a adotar
 práticas corruptas, inclusive com ramificações no exterior, aponta ele.
"Hoje o fenômeno da corrupção não é só aquele do particular com o 
funcionário público, com uma repartição clara de benefícios. Temos 
grandes empresas com divisão de tarefas. E, na medida em que essas 
empresas são grandes, há também uma infiltração internacional", destaca.
"É muito diferente do pagamento ao guarda de trânsito. A corrupção 
envolve, às vezes, compras internacionais, obras internacionais, e tudo 
isso leva a uma dificuldade maior na identificação dos atores."
O professor Martins Castro, da London School of Economics, destaca que 
esquemas "mais sofisticados de corrupção têm intermediários, que usam 
offshore (empresa ou conta aberta em um território com menor tributação)
 e contas secretas para receber e fazer pagamentos", o que dificulta 
identificar os reais beneficiários do dinheiro e os mandantes.
"Se não tiver um colaborador ou um denunciante, fica quase impossível 
rastrear empresas de fachada usadas normalmente para fazer 
transferências em poucas horas e em jurisdições onde não há 
obrigatoriedade de se revelar quem são os titulares das contas ou o dono
 do dinheiro", completa o pesquisador, que também leciona no 
departamento de administração da LSE.
'Nenhum político inteligente deixa rastro'
Para Matthew M. Taylor, professor de política da American University, 
em Washington, em "lugar nenhum do mundo é fácil comprovar corrupção 
entre autoridades graduadas".
"Nenhum político inteligente que pratique corrupção permitiria deixar 
rastros claros do crime," diz Taylor, também pesquisador do Woodrow 
Wilson Centre, também na capital americana.
Por isso, alguns tribunais deixaram de exigir a existência comprovada 
de um "ato de ofício" concreto por parte do agente público em troca da 
vantagem indevida que recebeu.
Isso aconteceu no julgamento do mensalão, em 2012, quando o Supremo 
Tribunal Federal (STF) fixou o entendimento de que a oferta da vantagem e
 o aceite por parte do funcionário público já caracterizam o crime de 
corrupção.
Taylor defende que, na falta de uma prova que aponte um "link direto", é
 possível justificar uma condenação a partir da existência de uma 
"preponderância" de evidências que apontem para o crime de corrupção.
"É importante compreender que os julgamentos de casos de corrupção, 
muitas vezes, precisam se fiar numa preponderância de evidências. Não 
há, normalmente, um
 
  quid pro co
 
 , uma clara troca de um benefício por outro, mas sim evidências que, juntas, apontam para a ocorrência do crime", diz.
Para o professor Alamiro Velludo Salvador Netto, da USP, no caso do 
Brasil, seria necessária uma mudança no Código Penal brasileiro para 
permitir condenações sem a comprovação de um ato concreto do agente 
público direcionado a retribuir a propina.
"Esse tipo de construção demanda uma alteração legislativa. No caso 
brasileiro, temos dificuldade em fazer isso, porque os dispositivos que 
tratam de corrupção fazem referência direta aos atos de ofício", diz o 
especialista em Direito Penal, que discorda da interpretação atual do 
Supremo.
"Outros países já superaram isso na legislação. Compete ao Parlamento 
rever se, para tornar efetivo o combate da corrupção, é adequado ou não 
suprimir o ato de ofício ao condenar", defende.
Ocultação do dinheiro
Outro argumento usado pela defesa do ex-presidente Lula no processo em 
que foi condenado é o de que o Ministério Público não foi capaz de 
identificar o chamado "caminho do dinheiro", ou seja, a relação entre o 
dinheiro usado pela OAS para as reformas do tríplex e recursos desviados
 de contratos da Petrobras.
Essa dificuldade em especificar claramente o "trajeto" e origem dos 
recursos usados em trocas de propina existe em grande parte das 
investigações de esquemas de corrupção no Brasil e no mundo, apontam os 
especialistas ouvidos pela BBC Brasil.
Sem citar o caso do ex-presidente, Martins de Castro, da London School 
of Economics, explica que dificilmente dinheiro da corrupção aparece 
como tal na contabilidade das empresas.
"O dinheiro da corrupção normalmente não é colocado em balanço de 
empresa. Algumas empresas da Lava Jato, por exemplo, afirmaram que 
pagavam propina por meio de consultorias", diz o pesquisador, que se 
dedica a pesquisar corrupção, com foco nas empresas, mas sempre 
observando a interação do mundo privado com o público.
Além disso, ressalta ele, assumir o envolvimento com casos de corrupção
 compromete a imagem das empresas e assusta acionistas. Isso seria mais 
um motivo para manter oculta ou tentar dar fachada legal a transações 
ilícitas.
O uso de delações como meio de prova
Na Lava Jato, a atuação do Ministério Publico e do Judiciário também 
tem sido alvo de polêmicas pelo amplo uso de delações de investigados 
interessados em reduzir as próprias penas.
O ex-procurador italiano Raffaele Cantone, que atuou na investigação da
 máfia Camorra, destaca que, no crime de corrupção, normalmente não há 
"conflito de interesses" entre os criminosos envolvidos. Portanto, as 
provas costumam ser eficientemente ocultadas, o que torna o mecanismo da
 delação essencial para a investigação, segundo ele.
"A descoberta da corrupção só surge através desses mecanismos (de 
colaboração), porque, por sua natureza, não há conflito de interesses 
que possa tornar esse crime público", diz Cantone, que é atualmente 
presidente da Autoridade Nacional Anticorrupção da Itália, órgão 
administrativo responsável pela supervisão das medidas de prevenção.
"A corrupção é baseada na
 
  omertà
 
 (o silêncio cúmplice típico da máfia). Se não criarmos uma vantagem 
para quem optar por colaborar, enviamos a mensagem ao corrupto de que 
vale à pena tentar. Como ganhamos da máfia na Itália? Através do sistema
 de colaborações. Os criminosos passaram a não se sentir mais 
invencíveis. É uma escolha utilitária, mas fundamental."
É possível confiar no delator?
O professor de Direito Penal da USP Alamiro Velludo Salvador Netto também destaca o caráter "secreto" do crime de corrupção.
"Na medida em que eu não tenho uma vítima concreta, todas as pessoas 
que participam do delito estabelecem uma lógica comum de ocultá-lo."
As delações, portanto, servem como como instrumento para estimular a 
quebra desse "contrato de sigilo". Mas, para Netto, a colaboração de 
suspeitos só serve como ponto de partida para as investigação e para 
facilitar a obtenção de provas, não para embasar condenações.
"Não nego que é um meio de obtenção de prova útil. O problema é saber 
até que ponto a palavra do delator tem força. Ele vai receber benefícios
 na exata medida da informação que der. Então, no afã da obtenção de 
maiores benefícios, ele vai tentar falar tudo o que sabe e talvez até o 
que não sabe", argumenta.
Salvador Netto defende ainda que as delações sejam oferecidas de forma 
estratégica, com a finalidade de penalizar os chefes das organizações 
criminosa. Para ele, a possibilidade de firmar delações está sendo 
oferecida de forma indiscriminada no âmbito da operação Lava Jato.
"Vejo que as colaborações são oferecidas para um número indistinto de 
pessoas. Às vezes, as mesas operações têm diversos colaboradores. Não se
 sabe nem mais quem é réu e quem é colaborador. E os benefícios 
oferecidos ultrapassam os previstos na lei."
Provas no caso Lula
No caso do julgamento de Lula, a defesa do ex-presidente argumentou que
 o Ministério Público baseou as acusações em delações de colaboradores, 
principalmente de ex-executivos da construtora OAS.
O petista é acusado de receber, a título de propina, um apartamento 
tríplex no Guarujá. Em troca, teria atuado para beneficiar a OAS em 
contratos com a Petrobras.
Para o professor Taylor, da American University, os desembargadores do 
Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que condenaram Lula a 12 anos e 
um mês de prisão, se dedicaram em demonstrar que basearam a decisão em 
um conjunto variado de evidências que se complementam e que incluem 
provas documentais, relato de testemunhas e delações.
"Não há um
 
  quid pro quo
 
 , uma troca clara de um benefício específico pelo apartamento. Mas o 
tribunal procurou responder a isso mostrando que havia uma 
preponderância de evidências de diferentes fontes, incluindo documentos 
relacionados ao apartamento e a nomeação de diretores da Petrobras", diz
 o pesquisador, que é autor de três livros sobre corrupção, sistema 
judicial e política brasileira.
O professor Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais,
 salienta que a coleta de evidências relacionadas a crimes de corrupção 
tende a ser mais complexa, justamente pela natureza oculta das 
transações.
"Em diversos casos você não tem a prova material, mas o conjunto 
probatório aponta para uma mesma direção", avalia o professor, que 
pesquisa e já organizou livros sobre corrupção.
Na avaliação de Avrizter, contudo, isso não aconteceu no caso do 
ex-presidente. Ao contrário do que pensa Taylor, para o professor da 
UFMG "não existe um conjunto probatório para uma direção" que aponte que
 o tríplex foi entregue a Lula e reformado para atender a exigências 
dele como pagamento de propina.
Novas discussões
Na avaliação de Martins de Castro, a Lava Jato em alguns casos tem 
adotado determinados posicionamentos similares ao chamado "direito 
comum", ou "common law", que teve origem na Inglaterra.
No direito inglês, um juiz se baseia na jurisprudência, ou seja, em 
interpretações de decisões anteriores, e em costumes comuns. As decisões
 são tomadas por um juiz por meio da troca de argumentos e provas 
apresentados por defesa e acusação, sem a necessidade de ter normas 
pré-definidas escritas.
O sistema jurídico adotado pelo Brasil é diferente. Chamado de "civil 
law", segue leis e uma série de códigos e regras escritas. Assim, o que 
não está especificado no texto não pode ser tido como ilegal.
No caso de corrupção, o Código Penal brasileiro tem, segundo 
especialistas, uma descrição restrita. Pelo texto da lei, limita-se na 
forma passiva a solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou 
indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem indevida. E, na forma 
ativa, oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público.
"Julgamentos como o do Lula abrem caminho para novas discussões tanto 
no Legislativo quanto no Supremo sobre a forma como se segue e 
interpreta as leis no país", afirma Martins de Castro, dizendo que ao 
aplicar elementos do "common law" em países como o Brasil pode gerar 
insegurança jurídica.
  Com colaboração de Alfredo Spalla, em Roma.
 
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