segunda-feira, 3 de junho de 2024

Cuidar e defender a família não é bandeira ideológica ou religiosa



Imagem ex-librisOpinião do Estadão

Cuidar da família não é bandeira ideológica ou religiosa. É zelar pela fundamental rede de apoio afetivo, social e econômico a que se recorre em primeiro lugar. É de interesse público      

A campanha eleitoral começou marcada pela disputa ferrenha pelo chamado “voto evangélico”. Com o reducionismo próprio dessa disputa, em que questões complexas se convertem em jingles simplistas, o “voto evangélico” é caracterizado como a expressão de um conservadorismo extremado, muitas vezes compreendido como atrasado por aqueles que têm dificuldade de conquistá-lo.

É fato que uma parte significativa do universo evangélico repele a esquerda justamente porque identifica nela ameaças a seus valores mais caros, sobretudo os relacionados à integridade da família. Certo ou errado, esse sentimento parece ter se cristalizado, a ponto de, conforme atestam as pesquisas, muitos evangélicos preferirem votar em Jair Bolsonaro, a despeito de seu comportamento muitas vezes imoral, somente porque a alternativa, Lula da Silva, alegadamente representa uma ameaça concreta à estabilidade familiar. Afinal, são bandeiras da esquerda a legalização das drogas e do aborto, além da discussão aberta sobre sexualidade nas escolas, temas que preocupam pais e mães, sejam evangélicos ou não.

Faz sentido, portanto, que os candidatos da esquerda que pretendem se apresentar como moderados evitem esses temas ou, no limite, abandonem essas bandeiras de modo a reduzir a resistência do tal “voto evangélico”. Foi o que fez, por exemplo, o próprio Lula da Silva, quando se declarou contrário ao aborto, como forma de abrandar as críticas que recebeu por ter defendido o direito ao procedimento e por ter dito que “essa pauta da família, dos valores, é muito atrasada”. Ou, mais recentemente, como fez o mais vistoso representante da esquerda na disputa pelo governo do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, do PSB, quando decidiu abandonar sua conhecida defesa da legalização das drogas, causando desconforto entre seus apoiadores. “Sou contra qualquer coisa que venha dividir a sociedade brasileira hoje. Não sou favorável. Acho que a gente precisa criar emprego, garantir saúde e fazer um policiamento que seja preventivo”, disse Marcelo Freixo à Record TV.

É preciso salientar, contudo, que a confusão entre valores familiares e o chamado “voto evangélico” esconde uma questão bem mais relevante: a “pauta da família”, como chamou desdenhosamente Lula, vai muito além dos contornos religiosos que a retórica política parece impor. Defender a família não tem nada de atrasado nem tampouco está relacionado a fanatismo religioso. Nenhum pai de família, seja de que religião for, pode ser criticado ou estigmatizado por desejar que o governante de seu país o ajude a proteger seus filhos daquilo que enxerga como um risco.

Nessas discussões sobre a conquista do “voto evangélico”, fica evidente, uma vez mais, a incapacidade de boa parte dos partidos de reconhecer as preocupações e os interesses reais da população, atribuindo um viés político-ideológico a temas que nada têm a ver com ideologia.

É simplesmente inconcebível que a defesa da família se tenha tornado uma espécie de monopólio do bolsonarismo. A importância social e econômica da família não se baseia numa agenda ideológica específica. Políticas públicas que protegem, preservam e fortalecem as famílias têm um evidente interesse público e concretizam, de forma muito direta, as preocupações reais da população. Cuidar da família não é uma bandeira ideológica. É cuidar das crianças e dos idosos. É diminuir a vulnerabilidade social de quem mais precisa. É fortalecer não uma “instituição tradicional”, mas a mais importante rede de apoio afetivo, social e econômico.

A população quer ter condições de criar bem os seus filhos, o que inclui não apenas uma escola de qualidade, mas uma convivência longe das drogas. Quer ter emprego, atendimento médico adequado, segurança na sua rua, transporte público pontual, saneamento básico e tantos outros serviços que não se relacionam com ser de esquerda, de direita ou de centro. São temas vitais para todos.

A política pode e deve ter variadas cores, expressando o pluralismo que há numa sociedade livre. Mas deve tratar com respeito as preocupações concretas das famílias, suas aspirações e seus valores. A família é tema de interesse público.

 

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