São duas teorias que mudaram radicalmente a forma como vemos o universo e o que nos rodeia, mas são inconsistentes entre si. O que isso significa e por que é importante entender esse mistério?
São duas ideias gigantes, muito admiradas, estrelas importantes por direito próprio, mas que se ignoram.
"Cada uma delas parece escrita como se a outra não existisse", observa o físico teórico e autor Carlo Rovelli.
As duas teorias que constituíram a grande revolução científica do século XX: a relatividade geral de Albert Einstein e a mecânica quântica, levam a "duas formas diferentes de descrever o mundo, à primeira vista incompatíveis".
"O que um professor de relatividade geral explica em aula não faz sentido para seu colega que ensina mecânica quântica na aula ao lado, e vice-versa", indica o especialista em seu livro E se o tempo não existisse? (Edições 70, 2022).
"Isso poderia ser visto como uma espécie de maldição, as duas teorias mais belas e poderosas que temos sobre o universo são inconsistentes entre si", diz Alberto Casas, professor e pesquisador do Conselho Superior de Pesquisa Científica da Espanha, à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Mas o que as torna inconciliáveis e por que é importante resolver esta contradição entre a relatividade geral e a mecânica quântica?
"Neste momento esta é a questão mais fundamental da física teórica, sabemos que em algum momento elas terão que se unir", indica a física teórica Irene Valenzuela.
E como afirma Rovelli: "O mundo não pode depender de duas teorias incompatíveis".
A relatividade geral
"A relatividade geral, que explica precisamente a força da gravidade, transformou radicalmente a nossa compreensão do espaço e do tempo", escreveu Rovelli.
Enquanto a mecânica quântica, que descreve o mundo microscópico, "transformou profundamente o nosso conhecimento da matéria".
Ambas são teorias "excelentes" e que tiveram "grande sucesso", diz Casas.
"Eles são capazes de prever milhares, até milhões, de fenômenos com extraordinária precisão e até agora nenhuma falha foi encontrada."
Mas em seu "caráter muito diferente" reside a incompatibilidade.
Por um lado, a teoria da relatividade geral é uma teoria clássica, o que significa que as quantidades, ou as magnitudes, que ela contempla têm valores bem definidos.
Nele, a gravidade é uma propriedade geométrica do espaço-tempo.
Lembremos, como explica Rovelli em seu livro, que com a relatividade especial, Einstein estabeleceu que o espaço e o tempo "estão intimamente ligados entre si e formam um todo inseparável, o espaço-tempo, o que significa que se o espaço é sensível à presença das massas e modificado por elas, o tempo também o é."
Segundo Casas, a ideia fundamental da relatividade geral é que a matéria e a energia determinam a geometria do espaço-tempo, ou seja, se você tem uma massa grande, "que curva o espaço-tempo, muda a geometria do espaço e do tempo."
"A força da gravidade é simplesmente que, quando os objetos passam perto de uma grande massa, eles percebem um espaço-tempo curvo e isso faz com que suas trajetórias se curvem."
E a mecânica quântica?
A mecânica quântica estuda partículas e sistemas atômicos e subatômicos.
Se na teoria da relatividade geral os valores estão bem definidos, na mecânica quântica acontece algo único.
"É uma teoria muito estranha em que as grandezas físicas podem não ter valores bem definidos", explica Casas.
E as leis de probabilidade governam o mundo em uma escala microscópica.
Por exemplo, uma partícula pode estar em uma superposição de estados: em um estado ela está em uma posição e em outro estado está em uma posição diferente, ou seja, de alguma forma a partícula está em duas posições ao mesmo tempo.
"Embora possa parecer incrível, é verdade", diz Casas.
E aí vem a incompatibilidade: "uma partícula que está em duas posições ao mesmo tempo, deforma o espaço-tempo ao seu redor em duas posições diferentes ao mesmo tempo".
Ou seja, leva a uma superposição de geometrias espaço-temporais.
"A geometria, então, não estaria mais bem definida, porque as partículas que a produzem estão em um estado indefinido, em um estado que não tem posição específica."
E isso contradiz a teoria da relatividade, que é formulada de tal forma que o espaço-tempo "é algo perfeitamente definido, não está em superposições de estados".
A gravidade inevitável
No cerne da inconsistência entre as duas teorias está a dificuldade de unir a gravidade e a mecânica quântica.
Mikael Rodríguez Chala, autor e pesquisador de Física de Partículas da Universidade de Granada, lembra que a base da mecânica quântica é o princípio da incerteza.
Isso significa que "quanto menor o sistema físico que você deseja explorar, mais energia será necessária para fazê-lo".
"Na presença da gravidade, isso é um problema, já que muita energia em uma região muito pequena do espaço gera um buraco negro", diz Rodríguez Chala à BBC Mundo.
"Isso parece indicar que, em energias muito, muito altas, a gravidade e, portanto, os conceitos de espaço e tempo (a gravidade segundo Einstein é a deformação do espaço-tempo) são muito diferentes do que acreditamos hoje".
Abordar a relatividade de forma clássica e as partículas de forma quântica não é uma opção, explica Casas, "porque as partículas podem estar em superposições de estados e como as partículas determinam a geometria do espaço-tempo, elas também nos darão superposições de geometrias".
Assim, o problema continua.
E, como destaca Valenzuela, "a gravidade interage com tudo, não há como escapar dela".
"Qualquer coisa que tenha energia interage com a gravidade", diz ele à BBC Mundo.
Teoria quântica de campos
Durante décadas, os físicos tentaram conciliar a gravidade com a mecânica quântica.
Na década de 1950, foi possível combinar a mecânica quântica com a teoria da relatividade especial, através do que é conhecido como teoria quântica de campos.
Neste referencial teórico são descritas as forças da natureza responsáveis pelos fenômenos que ocorrem no universo: eletromagnética, nuclear forte, nuclear fraca. Mas há uma grande exceção: a gravidade.
O prolema surge quando os cientistas tentam unificar a gravidade com a mecânica quântica.
"Absurdo"
O professor Casas explica que "se a teoria da relatividade geral fosse tratada como uma teoria quântica de campos, portanto, de forma ingênua, daria resultados infinitos. Por exemplo, você calcula uma probabilidade e sai um resultado infinito, o que é um absurdo."
"São teorias matematicamente inconsistentes."
Não esqueçamos que o que a mecânica quântica faz é calcular probabilidades de fenômenos.
Por exemplo, destaca Rodríguez, a mecânica quântica nos diz que quando duas partículas colidem, "muitas coisas diferentes podem acontecer e cada uma delas ocorre com probabilidades diferentes, é um processo eminentemente aleatório".
Segundo Casas, a criação de uma teoria quântica da gravidade implicaria que, assim como as partículas podem estar em superposições de estados, a geometria do espaço-tempo também poderia estar em superposições de estados, tendo valores indefinidos.
Mas o especialista lembra novamente que na relatividade geral as magnitudes físicas têm valores muito bem determinados.
"A teoria da relatividade de Einstein é muito rígida. Diz: 'você tem esta matéria, esta curvatura, este espaço-tempo'. Mas a mecânica quântica diz: 'não, a matéria poderia estar em uma superposição de estados'".
Na relatividade geral, se tivermos uma massa como a da Terra, a Terra curva o espaço-tempo em torno dela e curva-o de uma forma muito definida e muito concreta.
Por outro lado - continua o acadêmico - em uma teoria quântica, o estado da Terra pode estar em uma superposição de posições, energias ou outras magnitudes físicas e isso significa que a própria geometria do espaço-tempo não tem um bom valor definido.
Einstein não conseguiu
Mas o que acontece se tentarmos quantizar a gravidade, isto é, torná-la consistente com a mecânica quântica?
Surge um problema: o próprio espaço-tempo é uma quantidade dinâmica que também precisa ser quantizada, "não serve como uma estrutura estável para fazer cálculos porque quando queremos calcular uma colisão de partículas, essas partículas modificam o espaço-tempo", diz Casas.
"É como se quiséssemos construir um prédio sobre areia movediça": assim que começamos, tudo começa a se mover, ou seja, ocorrem inconsistências lógicas que dificultam extremamente a continuidade.
"Por isso se acredita que para quantizar a gravidade é necessário dar um salto conceitual, reinterpretar de alguma forma o espaço-tempo para criar uma teoria consistente."
Na verdade, Einstein não tentou quantizar a gravidade.
"Einstein queria fazer uma teoria que unificasse a gravidade com as outras forças, ele a chamou de teoria do campo unificado, mas abordou-a de um ponto de vista clássico."
"E ele não teve sucesso, foi uma das poucas batalhas científicas que ele não venceu."
No horizonte
No horizonte dos físicos existe uma possibilidade: um dia chegaremos a uma teoria única que explique todos os fenômenos da natureza, um modelo que unifique as interações físicas fundamentais. Esse ideal tem um nome: a teoria de tudo.
Existem diversas teorias ou famílias de teorias que buscam conciliar a relatividade geral e a mecânica quântica.
Rovelli, por exemplo, foi um dos fundadores da teoria da gravidade quântica em loop ou teoria do loop, que postula uma estrutura fina e granular do espaço. É como uma rede de loops quantizados de campos gravitacionais.
Há também a teoria das cordas, que se baseia no pressuposto de que as partículas subatômicas são pequenas cordas que podem se esticar e ter diferentes estados de vibração, o que lhes permite ter propriedades diferentes.
Para muitos especialistas, este é um forte candidato para alcançar a tão esperada reconciliação.
"Seu grande problema é que não foi possível fazer uma previsão mensurável com os dispositivos que temos", diz Casas, referindo-se aos imensos e "inimagináveis" aceleradores de partículas que seriam necessários.
Valenzuela, que trabalha no CERN (Organização Europeia para a Investigação Nuclear, na Suíça), é um dos pesquisadores dessa teoria.
"50 anos para entender a gravidade não é nada", diz ele com um sorriso, e nos dá como exemplo o bóson de Higgs, que, sendo um fenômeno mais simples comparado à gravidade quântica, foi descoberto com o Grande Colisor de Hádrons 50 anos depois do que era previsto.
"Não temos experimentos diretos que detectem o efeito da gravidade quântica, pois precisamos melhorar a tecnologia em muito mais ordens de grandeza do que o necessário com o Higgs", indica o físico.
Mas por não ter experimentos diretos que ofereçam informações, Valenzuela e seus colegas buscam previsões indiretas: "é preciso fazer isso teoricamente, procurar que sejam matematicamente consistentes e ver quais implicações podem ter".
"Exemplo supremo"
Embora para Casas a inconsistência entre a relatividade geral e a física quântica possa ser vista "como uma espécie de maldição", na verdade, é "uma grande motivação".
"E uma vantagem porque essa inconsistência nos diz que há muitas coisas que ainda não entendemos e, ao mesmo tempo, nos dá pistas sobre como resolvê-las. Isso aconteceu muitas vezes na história."
"Possivelmente, quando a gravidade for unificada com a mecânica quântica, será o exemplo supremo disso."
Entretanto, alcançar esta reconciliação continuará a ser o problema central da física teórica.
"Se quisermos continuar entendendo como funciona o universo, o que acontece dentro dos buracos negros, descobrir o que aconteceu no início do universo, precisamos da gravidade quântica", diz Valenzuela.
Para resolver algumas das questões fundamentais da Física, essas duas estrelas brilhantes devem ser reunidas no mesmo palco, mesmo que à primeira vista pareçam incompatíveis.