A Islândia é uma ilha no Atlântico Norte que vive - bem -
da pesca e do turismo. Com cerca de 340 mil habitantes, essa pequena
nação nórdica costuma chamar pouca atenção, mas sempre aparece com
destaque em relatórios e rankings sobre igualdade social.
O país tem a melhor distribuição de renda em um ranking de 44 países
listados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Já o Brasil aparece em antepenúltimo lugar - atrás apenas de
Colômbia e África do Sul -, mesmo após a redução da desigualdade
ocorrida em décadas recentes.
Mas como se comparam os salários do funcionalismo nesses dois países? A
diferença na distribuição de renda se verifica também nesse setor - em
que o Estado, como empregador único, supostamente dá condições iguais a
todos os seus funcionários?
Para fazer essa comparação, a BBC Brasil realizou, em parceria com a
FGV-SP, um levantamento dos salários dos servidores públicos brasileiros
e islandeses.
O resultado mostra que, em média, na Islândia, os cargos de gestão do
setor público ganham o dobro das posições mais baixas. Enquanto isto, no
Brasil, essa diferença é cinco vezes maior.
"Há uma distribuição de renda muito concentrada nas mãos de poucos no
Brasil, e isto está aparecendo no setor público também", comenta Nelson
Marconi, professor e coordenador do Fórum de Economia da FGV-SP, que
colaborou com a compilação e análise dos dados.
Os números são do Centro para Estatísticas Oficiais da Islândia, o
Statice, e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do
IBGE. Eles comparam as variações salariais médias de oito ocupações, por
nível hierárquico, nos dois países.
Os cargos de gestão abrangem desde o de presidente e ministros ao de
diretores e gerentes de várias áreas. A base compreende as chamadas
ocupações elementares, ou seja, profissionais de limpeza, alimentação,
manutenção e outros.
Na Islândia, a média salarial mensal dos gestores é de 851 mil coroas
islandesas (R$ 24 mil); na posição elementar é de 400 mil (R$ 11 mil).
No Brasil, a média é de R$ 5.707 para o mais alto, e R$ 1.139, no mais
baixo.
Desigualdade em todos os níveis
A distribuição de renda no serviço público da Islândia é mais justa não
apenas quando se olha do cargo mais alto ao mais baixo. Há distorções
salariais tanto entre os níveis de governo (governo federal, estadual e
municípios) como dentro de uma mesma ocupação, segundo o levantamento.
Na Islândia, por exemplo, um profissional de nível técnico pode ganhar
em média 50% a mais que outro profissional da mesma posição. No Brasil,
esse trabalhador pode ganhar o triplo de outro da mesma hierarquia.
Além disso, no país nórdico, um profissional da ocupação elementar no
nível federal ganha apenas 2% a mais que o do nível municipal - o país
não tem estrutura estadual. No Brasil, a diferença é de 137% entre o
federal e municipal para esse mesmo cargo.
Entre os gestores islandeses, o governo federal paga 34% a mais que o
municipal. No caso dos brasileiros, 150% a mais. Outros resultados do
levantamento seguem essa mesma linha.
A desigualdade no funcionalismo público brasileiro pode ser, na
realidade, ainda maior que a traduzida pelos números oficiais. Como a
Pnad se baseia na declaração de entrevistados, é provável que benefícios
indiretos de altos funcionários do governo, como por exemplo o
auxílio-moradia ou transporte, não estejam computados, lembra Marconi.
Poder de barganha forte no Brasil
Dos Três Poderes, o Judiciário concentra os salários mais altos; em seguida está o Legislativo e, por último, o Executivo.
Para Nelson Marconi, o poder de cada categoria ou corporação na briga
por reajustes explica boa parte da desigualdade no funcionalismo
brasileiro.
"O poder de barganha do Poder Judiciário é muito grande, já que eles
podem complicar o andamento de processos do Executivo", cita, como
exemplo, o pesquisador.
O fenômeno ficou mais evidente, diz Marconi, nas décadas de 1980 e
1990, com a alta inflação. Os salários desvalorizavam mais rapidamente, e
aqueles (grupos ou categorias) com maior poder de negociação conseguiam
os melhores reajustes, aumentando a desigualdade no setor público.
Nas últimas décadas, no entanto, houve uma leve redução na disparidade
de renda dentro do funcionalismo. A mestranda da FGV-SP Francine Braite
chegou a essa conclusão após calcular o coeficiente de Gini dos setores
público e privado.
O índice é bastante usado para avaliar a distância entre ricos e
pobres. Ele funciona numa escala de 0 a 1: quanto mais perto de 1, mais
desigual o grupo ou país.
Pela pesquisa, o coeficiente de Gini do setor públicocaiu 6% em 20
anos: de 0,54, em 1991, para 0,51, em 2011. No setor privado, a redução
no período foi de 12%: de 0,50 para 0,44.
"A queda mais rápida na desigualdade do setor privado ocorre porque as
dinâmicas são diferentes", explica o professor da FGV-SP Vladimir Teles,
orientador de Francine.
Enquanto os salários do setor privado têm relação direta com as
flutuações econômicas, os do setor público são definidos por lei, e
muitas vezes os reajustes não refletem variações reais da economia.
O bom exemplo da Islândia
Mas o que afinal levou a Islândia a garantir uma distribuição de renda
mais homogênea para sua população e, também, no serviço público?
O tamanho da nação islandesa, de apenas 340 mil habitantes certamente ajuda. Mas essa não é a única explicação.
Tanto que o país caribenho de Belize tem uma população parecida com a
da Islândia - de 380 mil habitantes - e uma desigualdade tão grande
quanto a do Brasil - ambos somam 0,53 pontos no coeficiente de Gini,
pelos dados do Banco Mundial.
As sociedades nórdicas em geral têm a menor desigualdade do mundo.
Estudos mostram que o investimento em bem-estar social, desde o fim da
Segunda Guerra, garantiu acesso universal a serviços básicos,
contribuindo para limitar a diferença entre ricos e pobres nessas
nações.
E o resultado é aprovado pela população islandesa: 83% estão
satisfeitos com a educação pública; e 73%, com a saúde, segundo a OCDE.
Essa distribuição mais justa acaba, naturalmente, se refletindo também
nos indicadores do serviço público. Mas há outro fator para explicar a
equiparação salarial no funcionalismo público, apontado pela
especialista Janine Berg
,
economista da Organização Internacional do Trabalho (ILO, na sigla em inglês) e coordenadora do livro
Labour Markets, Institutions and Inequality: Building just societies in the 21st century
, sem tradução para o português: a forte atuação dos sindicatos dos servidores na Islândia.
"O país tem um Estado grande, e não tem salário mínimo definido pelo
governo, então estabeleceu-se uma cultura de diálogo social e acordos
coletivos constantes", comenta Berg.
Já os salários de cargos altos, como os de presidente e membros do
Parlamento, são definidos por um departamento do governo, a Comissão de
Salários. Em novembro de 2016, o presidente Guðni Th. Jóhannesson chegou
a recusar um aumento de 600 mil coroas (R$ 17 mil), segundo o
Iceland Magazine
. Com isso, ele continua recebendo 2,2 milhões de coroas (R$ 62 mil).
Funcionários da prefeitura de Reykjavík também rejeitaram um aumento de cerca de 35%.
Janine Berg explica ainda que os planos de carreira e os salários,
incluindo pagamentos extras, são transparentes. Não há garantia de
estabilidade, mas os níveis de educação são altos, o que contribui para
manter médias salariais competitivas e pareadas com o setor privado. E
ambos os setores têm impostos mais altos para aqueles que ganham mais.
Altos e baixos
Há décadas que os índices de desigualdade de renda da Islândia são
reduzidos, mas já sofreram alguns altos e baixos. O coeficiente de Gini
do país alargou-se de 0,19 em 1993 para 0,31 em 2007.
Um trabalho da Universidade da Islândia explica que isto tem relação,
entre outros fatores, com o crescimento do setor financeiro no país, que
concentrou ganhos altos nas mãos de poucos.
A crise financeira global de 2008 atingiu em cheio a Islândia, levando
ao colapso de seu sistema bancário e a uma profunda crise econômica.
Logo após o início da crise, os salários do setor privado caíram muito,
enquanto que os dos servidores foram menos afetados.
Mesmo com a crise, o pequeno país escandinavo manteve os gastos com o
estado de bem-estar social e garantiu a proteção de grupos mais
vulneráveis, segundo o estudo. A desigualdade do país voltou a cair nos
anos seguintes, e, em 2015, chegou a 0,23 pontos.
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