A REVOLUÇÃO DO 'PRÉ-SAL CAIPIRA'
Entre Rios do Oeste/PR
19 de fevereiro de 2020 | 10h00
O
que poderia levar um empresário há 40 anos no ramo da indústria a
começar a criar porcos? “Só o que me interessa é a merda deles”,
responde, rindo, Romário Schaefer, dono da cerâmica Stein, no Paraná.
Os
dejetos dos suínos de sua propriedade no município de Entre Rios do
Oeste (PR), a 133 quilômetros de Foz do Iguaçu, são matéria-prima para a
produção de biogás. O combustível abastece um gerador que ajudou a
reduzir a conta de luz da empresa pela metade.
Antes
um problema ambiental, os resíduos da produção agropecuária passaram a
ser fonte de renda para produtores do oeste do Paraná e, entre os mais
entusiasmados, já é chamado de “pré-sal caipira”.
O
modelo de negócios se tornou viável por meio da geração distribuída
(GD), na qual o consumidor passa a gerar sua própria energia. A
modalidade é mais conhecida pelos painéis solares, e a possibilidade de
revisão das regras do sistema gerou tanta polêmica que até o presidente
Jair Bolsonaro se envolveu no tema, pregando que o governo é contra “taxar o sol”.
Mas a GD vai muito além, e inclui a energia gerada por eólicas, bagaço
de cana-de-açúcar, aterros sanitários e, também, pelo esterco de
animais.
Quem
viaja pelo oeste do Paraná a turismo normalmente se limita a visitar as
famosas Cataratas do Iguaçu. Aqueles que ficam mais dias podem passar
também pelo Paraguai, para compras, e pela usina de Itaipu, segunda
maior hidrelétrica do mundo. Mas no caminho desses destinos, o turista
logo vai perceber que o que movimenta a região mesmo é o agronegócio.
O
Paraná é o maior produtor de suínos do País e em aves perde apenas para
Santa Catarina. E foi há 12 anos, ao longo das vistorias no
reservatório de Itaipu, de 1.350 quilômetros quadrados, que técnicos
perceberam o acúmulo de proteína animal, proveniente dos dejetos da
produção agropecuária da região.
Somente
o oeste do Estado concentra 4,2 milhões de suínos, 105 milhões de aves e
1,3 milhão de bovinos. Para se ter uma ideia, a estimativa é que, por
ano, eles gerem resíduos equivalentes à água que desce nas Cataratas do
Iguaçu por cinco minutos.
Estender
a vida útil da usina de Itaipu ao máximo - hoje estimada em 182 anos -
passa por ações que evitem o assoreamento de seu reservatório. Para
isso, era vital encontrar uma forma sustentável de lidar com esses
resíduos, que eram lançados no lago. Em função dessa necessidade,
Itaipu, por meio do Parque Tecnológico da hidrelétrica, firmou uma
parceria com o Centro Internacional de Energias Renováveis (CIBiogás).
As
análises do CIBiogás mostraram que uma propriedade com 800 suínos pode
gerar luz suficiente para abastecer 23 residências. Para isso, é preciso
tratar os dejetos e separar o biogás. Explicam os especialistas: é um
composto gasoso resultante da degradação anaeróbia de matéria orgânica
por microorganismos. O processo gera também digestato, um fertilizante
natural rico em nitrogênio, fósforo e potássio.
De
acordo com o diretor-presidente do CBiogás, Rafael González, a
agroindústria da Região Sul do País tem potencial para produzir 3
bilhões de metros cúbicos (Nm³) de biogás por ano, o suficiente para
abastecer 2,5 milhões de casas populares.
Para
gerar o combustível, é preciso instalar um biodigestor, estrutura que
permite o tratamento dos dejetos. Com um investimento inicial
relativamente elevado, de R$ 75 mil a R$ 100 mil, o negócio se tornou
viável por meio do enquadramento como geração distribuída – que possui subsídios, pagos por meio da conta de luz dos demais consumidores. Os produtores garantem que o retorno se dá em três anos.
Minicentral termelétrica movida a biogás montada pela prefeitura de Entre Rios do Oeste (PR). Kiko Sierich/Estadão
Prefeitura transformou problema ambiental em geração de energia
Entre Rios do Oeste
Para
granjas de pequeno porte, a geração de energia a partir de biogás nem
sempre é viável. Mas, dependendo do modelo de negócios, a produção do
insumo pode compensar o investimento. Por meio de uma solução coletiva, a
prefeitura de Entre Rios do Oeste conseguiu colocar de pé um projeto
que gerou economia de energia e resolveu um passivo ambiental.
Com
uma população de 4,6 mil habitantes e de 255 mil suínos, o município
tinha alta carga poluidora. Para lidar com o problema, a cidade
construiu uma rede coletora de 22 quilômetros para recolher o biogás
gerado por 18 propriedades – cada uma pagou seu próprio biodigestor. Os
cerca de 40 mil porcos produzem 4,7 mil metros cúbicos de biogás por
dia, que são transportados até uma minicentral termelétrica.
A
geração de energia da usina abate a conta de luz de 62 edifícios
públicos. Em contrapartida, os produtores são remunerados com R$ 0,28
por metro cúbico de biogás produzido. Cada um recebe entre R$ 800 e R$ 5
mil, suficiente para pagar com folga sua conta de luz.
Mesmo
com o pagamento, a prefeitura economiza entre 5% e 15% em relação ao
que gastava em energia antes do projeto, afirma o secretário municipal
de Saneamento Básico, Energias Renováveis e Iluminação Pública, Carlos
Eduardo Levandowski.
Um
dos produtores que integram a rede é Claudinei Jardel Stein,
proprietário da granja Santo Expedito. Ele cria 7,4 mil suínos e recebe,
em média, R$ 1.500 do município. Sua conta de luz mensal varia entre R$
1.200 e R$ 1.400. O biodigestor mudou a qualidade de vida na
propriedade. “O mau cheiro e as moscas diminuíram muito”, disse.
Ademir
Escher, também dono de uma granja que faz parte do projeto, concorda.
Ele vive na propriedade com sua família e conta que, depois do
biodigestor, a filha parou de reclamar do mau cheiro que impregnava em
suas roupas. Ele recebe mensalmente entre R$ 1.000 e R$ 1.200 da
Prefeitura pelo biogás gerado por 1,2 mil suínos.
O
projeto, estruturado pela CIBiogás, custou R$ 17,5 milhões, obtidos com
verba de pesquisa e desenvolvimento (P&D), em uma parceria entre
Itaipu, Parque Tecnológico Itaipu e a distribuidora Copel.
Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),
o País tem hoje 182 empreendimentos que geram energia a partir de
biogás. No ano passado, a potência instalada dos projetos somou 36 MW,
ante 110 kW em 2014.
Engenheiro
ambiental da CIBiogás, Luís Thiago Lúcio, afirma que cada projeto deve
levar em conta a estrutura e espaço físico da granja e as condições da
rede da concessionária de distribuição. “Nem todo projeto
individualmente é competitivo, mas coletivamente ele pode dar certo”,
diz, em referência ao projeto da prefeitura.
O produtor Ademir Escher recebe mensalmente entre R$ 1.000 e R$ 1.200 da prefeitura pelo biogás gerado por 1,2 mil suínos. Kiko Sierich/Estadão
Com esterco de porcos, empresário reduz em R$ 30 mil por mês a conta de luz
Entre Rios do Oeste
Dono
de uma cerâmica, o empresário Romário Schaefer não tinha experiência
alguma no agronegócio. Foi a possibilidade economizar energia que
motivou o industrial a investir na criação de suínos. “Não entendia nada
de porcos. Só o que me interessava era a merda deles”, afirmou.
A
família tem a cerâmica Stein há 40 anos e produz 40 mil tijolos por
dia, com faturamento mensal de R$ 500 mil. Em 2012, Schaefer comprou um
forno contínuo para a cerâmica, que funciona 24 horas por dia e não pode
ser desligado. O gasto com eletricidade aumentou consideravelmente.
“Foi quando achamos a alternativa do biogás”, disse.
Em
2013, ele investiu R$ 300 mil na construção da granja e na compra de um
biodigestor e de um gerador próprio. Começou com 3 mil suínos. Todo o
biogás gerado – 446 metros cúbicos por dia – rende 28 megawatts-hora por
mês, energia que é integralmente utilizada na indústria.
“Religiosamente”,
como ele descreve, o gerador é ligado entre as 18h e 21h, horário de
ponta, quando a distribuidora local pode cobrar cinco vezes mais pela
energia que vende.
Mais
recentemente, o industrial automatizou processos da cerâmica e decidiu
dobrar o plantel para 7 mil suínos. Agora, o biogás será também queimado
diretamente em seus próprios fornos. “Investi na granja para resolver
um problema de energia. Foi fantástico. Reduzi meu custo de produção, ao
diminuir a conta de luz, e, ao mesmo tempo, estou criando porcos, o que
gera uma receita que paga meu investimento”, afirmou.
Schaefer
relata que o retorno do investimento se deu em três anos. Ele conseguiu
reduzir sua conta de luz pela metade – de R$ 60 mil para cerca de R$ 30
mil mensais. O industrial doa o biofertilizante gerado para os
vizinhos.
O
biogás também aumentou a segurança energética da indústria. Localizada
na fronteira com o Paraguai, Entre Rios do Oeste está próxima do fim da
rede da Copel e, por isso, costuma ser afetada por desligamentos em
tempestades. “Nesses dias, eu faço tudo no biogás. Não falha, não pisca,
não oscila”, disse.
Os suínos podem morrer se a granja ficar mais de uma hora sem eletricidade. Kiko Sierich/Estadão
Granja pioneira em geração de biogás no Brasil vai virar fornecedora de energia para município
Sócio
proprietário da granja São Pedro, Pedro Colombari foi o primeiro
produtor a investir em geração distribuída no País, em 2008. Na
propriedade, localizada em São Miguel do Iguaçu, ele cria 5 mil suínos e
400 bovinos, e também planta milho e soja. Com o biogás gerado por seu
plantel, economiza entre R$ 5 mil e R$ 7 mil mensais em energia elétrica
na granja e em outros imóveis e propriedades da família.
A
propriedade foi pioneira de um projeto-piloto em parceria com Itaipu.
Recebeu um motogerador a biogás para produção de energia e um
biodigestor. A granja gera 770 metros cúbicos de biogás por dia e produz
32 megawatts-hora por mês. A energia gerada na granja custa um terço do
valor cobrado pela distribuidora.
O
biofertilizante é usado no plantio de pastagens. Com o aumento da
segurança energética, ele também comprou mais máquinas elétricas para a
propriedade – uma bomba de irrigação e ventiladores para a granja.
Embora
o investimento necessário para gerar energia a partir de biogás seja
mais alto para projetos individuais – entre R$ 300 mil a R$ 500 mil –,
Colombari não vê a suinocultura sem biogás.
Na nossa região, por exemplo, a maioria das propriedades é de pequeno porte, e os proprietários residem nas granjas. Nossa qualidade de vida aumentou muito. Uma lagoa a céu aberto produz um odor muito forte e atrai muitos vetores (moscas). Com o biodigestor, isso se reduziu a zeroPedro Colombari, produtor
Ele
destaca ainda a segurança ambiental que o biodigestor proporciona para
as propriedades. “Num período de chuvas fortes, se você tem uma lagoa
aberta, ela pode transbordar. É uma segurança também para os nossos
rios”, afirma.
Agora,
ele participa de um novo projeto-piloto para criação de uma rede
própria (microgrid) com Itaipu, Parque Tecnológico de Itaipu, CIBiogás e
a distribuidora Copel. A ideia é que a granja forneça energia para
unidades próximas em momentos de queda de fornecimento.
A
energia é insumo essencial para produtores de aves e suínos, já que os
animais podem morrer se as granjas ficam mais de uma hora sem
eletricidade.
Potencial de produção de biogás corresponde ao dobro do volume de gás que Brasil importa da Bolívia
O
potencial de biogás do Brasil País corresponde a até duas vezes o
volume médio de gás natural importado da Bolívia em 2018. O dado integra
o Plano Nacional de Energia Elétrica (PDE) 2029, divulgado no último
dia 11 de fevereiro. A ideia é utilizar o combustível para substituir o diesel, além de misturar o insumo ao gás natural fóssil na malha de gasodutos.
O
cenário de referência do governo estima investimentos de R$ 1,575
bilhão até 2029 em termelétricas a biomassa, com 30 megawatts (MW)
contratados por ano entre 2023 e 2029, totalizando 210 MW. O maior
potencial, segundo o documento, está nos resíduos do setor
sucroenergético, com a biodigestão do bagaço da cana-de-açúcar, resíduos
animais e urbanos.
“Temos
que entender a matriz energética brasileira dentro das características
regionais que temos. Não adianta fazer biogás no Nordeste, onde não
temos pecuária, assim como colocar uma eólica onde não tem vento. Nosso plano contempla essas características”, afirmou o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque.
Se
no Brasil essa tecnologia está começando a aumentar sua presença na
matriz energética, na Europa, já são 17,5 mil plantas que produzem
energia a partir do biogás.
A
Alemanha lidera o ranking, com quase 10 mil empreendimentos. O avanço
se deu em meio aos conflitos entre Rússia e Ucrânia pelo gás, a partir
de 2009, que cortaram o fornecimento para o país – até então, 40% do gás
que abastecia os alemães chegava por esse caminho.
Kiko Sierich/Estadão
Outra
possibilidade de uso do biogás é na indústria de transportes. O
tratamento e refino do biogás gera o biometano, combustível que funciona
como substituto do gás natural e pode, inclusive, ser injetado em
gasodutos.
O
potencial de biometano disponível no País, considerando agropecuária,
indústria sucroenergética, resíduos e efluentes seria suficiente para
substituir 70% do volume de diesel consumido no Brasil.
Em
Itaipu, a frota de veículos já é abastecida com esse combustível. Na
unidade de tratamento da empresa, os resíduos produzem 200 metros
cúbicos de biometano por dia.
O
País tem hoje oito empreendimentos que produzem biometano – dois são
aterros sanitários. Em média, uma tonelada de resíduos orgânicos gera 75
metros cúbicos de biogás, que, tratados, se tornam 38 metros cúbicos de
biometano.
Mesmo
depois de fechados por 16 anos, os aterros sanitários continuam gerando
biometanos, afirma o diretor de Desenvolvimento Tecnológico do CBiogás,
Felipe Marques.
A
indústria já acredita no potencial do combustível. A Scania deve
começar a entregar os primeiros caminhões movidos a GNV, GNL e biometano
em abril. Os primeiros tratores movidos a biometano da New Holland
também chegam ao mercado neste ano.