sábado, 27 de maio de 2017

A ideia de que 'prender todo mundo' acaba com a corrupção é ingênua, diz cientista político

Em meio àqueles que comemoram as mais recentes denúncias e prisões da operação Lava Jato, muitos veem nelas um motivo adicional para uma descrença total nos políticos brasileiros.
Foto: BBCBrasil.com
O clima de revolta com os políticos se acirrou ainda mais após a divulgação na semana passada das delações dos executivos da JBS e das conversas mantidas por um dos donos da empresa com o presidente Michel Temer e, em outra ocasião, com o senador Aécio Neves (PSDB-MG).
Nas redes sociais, têm sido comuns manifestações de revolta que vão desde "prendam todos os corruptos" e até a negação quase total da política - "ninguém presta".
Para o economista e cientista político Bruno Pinheiro Wanderley Reis, as duas lógicas são perigosas - e nenhuma delas resolverá a crise política que assola o país desde 2014, porque "prender corruptos não significa extinguir a corrupção".
"A leitura aí é que você prende os corruptos, e então vão ficar só os não-corruptos. Isso é conversa fiada, uma bobagem", afirma.
"É ingenuidade achar que a Lava Jato vai extinguir a corrupção", acrescenta.
Reis compara a corrupção aos vírus de computador - por mais que se criem antivírus, eles não vão ser capazes de extinguir todos os vírus existentes.
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"Você tem que combater corrupção, sim, é uma tarefa permanente do Estado, mas é mais ou menos como empresa de computação criando antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus. Ela vai fazer antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada", exemplifica.
Reis diz ainda que o desafio do Brasil não é descobrir como se livrar de políticos corruptos, mas sim como proteger o político da corrupção ativa praticada pela sociedade.
Para o professor na UFMG e pesquisador do estudo Dinheiro e Política: A Influência do Poder Econômico no Congresso Nacional , no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a corrupção na política brasileira "não é mais fator desviante, e sim comportamento padrão".
E a solução, ele garante, não está em "prender todo mundo", mas em uma boa reforma do atual sistema político - que, em suas palavras, "é corrupto por lei".
Leia os principais trechos da entrevista com Bruno Pinheiro Wanderley Reis.
BBC Brasil: O senhor costuma dizer que a "conduta de corrupção na política brasileira não é mais fator desviante, mas comportamento-padrão". Como e por que se chegou a essa situação?
Bruno P. W. Reis: No Brasil, o dispositivo específico, que só incide aqui, é que o teto de doação (de campanha) tem que ser proporcional ao do doador. Até 2014 (quando doações de empresas eram permitidas), era no máximo 10% do rendimento da pessoa ou 2% do faturamento bruto da empresa. Qual é a lógica que isso cria? O candidato só ia pedir dinheiro às empresas que mais faturam, às pessoas mais ricas. Aí entram bancos, mineradoras, empreiteiras.
Então fica claro que você vai ter um jogo - porque só pouquíssimas empresas podiam doar bilhões dentro dessa regra.Obviamente isso vicia o sistema político e o jogo eleitoral. Vai arrecadar mais o candidato que tiver boas relações e bom fluxo de recursos com as grandes empresas, bancos, empreiteiras, mineradoras. É uma anomalia, essa regra só existe aqui no Brasil.
A gente produz uma competição de centenas de candidaturas individuais disputando dezenas de cadeiras em distritos com milhões de eleitores. E isso é muito difícil de fiscalizar, os TREs (Tribunais Regionais Eleitorais) são admiráveis, mas é impossível governar um sistema em que concorrem mais de mil candidatos na mesma circunscrição.
Enquanto no resto do mundo você tem uma dezena de chapas disputando favores e doações de milhares de doadores, aqui no Brasil a gente faz uma competição em que milhares de candidatos disputam os favores financeiros de uma dúzia de doadores potenciais.
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Você vai ter uma elite parlamentar, tanto de vereadores quanto de deputados, extremamente dependente de poucos grandes financiadores. Isso é um sistema que dá um poder sem igual a financiadores, a agentes privados que legitimamente têm seus interesses políticos e as suas prioridades próprias. Só que nenhum país deixa seu representante político tão vulnerável a seu financiador.
São as grandes empresas, as doadoras, quem dá as cartas nesse sistema (brasileiro).
BBC Brasil: Em 2014, o senhor fez uma análise sobre a Lava Jato dizendo que a estratégia adotada por ela com as delações premiadas seria "autodestrutiva" para a política e que ela estaria apenas "enxugando gelo". Por que o senhor acredita nisso?
Reis: A delação premiada foi inventada pra pegar máfias, porque máfias têm uma rede de silêncio. Então você pega um cara que esteja encrencado e oferece algo em troca para pegar mais gente. E isso é eficaz. Você puxa um fio e chega até o topo. Mas para mim esse é o pecado crucial da Lava Jato. A gente quer desbaratar a máfia, mas a gente não quer desbaratar o sistema político todo.
Em vez de a gente usar o sistema de controle, que está cada vez melhor, canalizar as investigações para captar os problemas e solucionar mudando a legislação (do sistema eleitoral), a gente está querendo puxar o fio - e isso é extremamente destrutivo.
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Eu não aplicaria a delação premiada. A exposição do (setor do) petróleo, com identificação de diretores que estavam recebendo propinas, já é um mega choque no sistema, que provavelmente mudaria práticas. Agora, o que você tem é uma clara deterioração institucional, está um salve-se quem puder.
A capacidade da Lava Jato de investigar pessoas tão poderosas deriva da estabilidade relativa do sistema político de 1988 para cá. Essa é a parte mais triste. Esse sistema que está aí agora é o sistema menos malsucedido que esse país já foi capaz de por em pé em toda a sua história. A ideia de que o próximo vai ser melhor é só uma esperança.
BBC Brasil: Como o Sr. vê o futuro da Lava Jato?
Reis: Estamos em uma situação em que todo mundo que é preso a gente já começa a pensar, qual será a delação? É uma bola de neve. Isso não vai acabar. Quando vai acabar? Quando o país todo estiver na cadeia, aí você joga a chave fora? Quando vier um "salvador da pátria"?
Nesse momento, ninguém consegue aprovar no Congresso medidas que limitem a atuação das investigações, mas vai acontecer. No momento em que o sistema se reestabilizar, cedo ou tarde isso acontece, algum salvador da pátria que vai ser eleito vai ter que voltar a ter o dispositivo de poder. Para fazê-lo de maneira confiável, crível pelos atores, vai precisar pôr limite na atuação do Judiciário. E é aí que a ambição de limpeza se mostra destrutiva.
BBC Brasil: Mas não seria tarefa do Estado combater a corrupção em operações como a Lava Jato?
Reis: Você tem que combater corrupção, sim, essa é uma tarefa permanente do Estado. Mas é mais ou menos como funciona em uma empresa de computação que cria antivírus. Ela não vai conseguir extinguir os vírus, aboli-los. Ela vai fazer antivírus o tempo todo. Isso não tem um ponto de chegada. Para isso, você tem que ir aperfeiçoando por rotinas burocráticas, administrativas, etc. a capacidade do sistema de controlar a corrupção. A gente vinha fazendo isso.
Nossa capacidade de combater a corrupção hoje é muito maior do que há 30 anos. Agora, do jeito que vai, vai piorar. Porque o sistema está sendo desarticulado na sua teia de interesses, na sua capacidade de autocontrole. A gente está num processo de autodestruição. O que poderia acontecer de pior seria o desmantelamento do sistema partidário, que foi o que aconteceu na Itália, algo catastrófico.
BBC Brasil: Mas se a 'culpa' pela corrupção que toma conta da política hoje em dia é do sistema eleitoral, a Lava Jato não poderia ajudar a "consertá-lo"?
Reis: Não é função da primeira instância, mas o Supremo tem um papel nisso. E nas declarações dos líderes da operação Lava Jato aparece essa intenção também, de "limpar o sistema". E nisso eles são precisamente ingênuos. Não é que você só pode investigar se for fulano, sicrano e beltrano, mas não pode pegar os graúdos. Não, não é isso. Se você está tocando a investigação e caiu no colo uma prova contra o presidente da República, você tem que denunciar. Agora, o que a gente está fazendo aqui é uma busca retórica de incriminação de políticos importantes, que é guiada por uma ambição ingênua de purificação do sistema - algo que eu entendo que é contraproducente.
A leitura da Lava Jato é a de que você prende os corruptos, e então você vai ter somente os não-corruptos. Mas isso é conversa fiada, uma bobagem. É demagogia.
O desafio não é como a gente se livra de político corrupto, mas como a gente protege o político da corrupção ativa praticada pela sociedade.
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Então em vez de a gente reformar a lei, a gente prende os caras. Os representantes votados pelo eleitorado, induzidos por essa grana. Mas aí foi preso porque estava cheio de dinheiro - e quem é o suplente? De onde ele recebeu dinheiro? Estamos enxugando gelo, desestabilizando um sistema que é estruturalmente viciado e mantido vigente. E ninguém fala em mudar a lei. A discussão não vai a lugar nenhum.
BBC Brasil: Como, então, se combate a corrupção?
Reis: O que me preocupa aí é a sustentabilidade desse combate à corrupção. Eu não vejo isso com bons olhos quando tenho a impressão de que o lastro institucional que viabilizou com melhoria nítida o combate à corrupção está em desarranjo. Pode ser que dê certo? Pode ser, por acaso. O normal é ter conflito, o que se espera de processos como o que a gente está metido é uma desorganização profunda do lastro partidário e subsequente comprometimento do controle da corrupção.
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BBC Brasil: Qual seria o sistema político mais viável para o Brasil - e que não "favoreça" a corrupção?
Reis: Como meu diagnóstico está baseado numa interação infeliz entre o sistema eleitoral e as regras de financiamento, eu mudaria essas duas coisas, no que diz respeito ao início do processo. Quer dizer, você tem que ter tetos nominais para doações, e de números razoáveis, da ordem de milhares de reais. Eu manteria empresa e pessoa física, desde que cada um esteja doando (até) R$ 10 mil, R$ 50 mil... Não resolve todos os problemas, mas fica menos ruim.
A primeira solução seria essa: tetos que não permitam que nenhum doador individual seja o dono de uma campanha. Isso já tenta induzir uma fragmentação da fonte de recurso.
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Do outro lado, se o sistema eleitoral produz uma demanda muito alta por recursos fragmentados, eu tenho que tentar concentrá-lo. O que eu faria? Fecharia a lista (voto em lista fechada significa voto em partidos, e não em candidatos a deputados). E diminuindo o número de candidatos, a eleição fica mais controlável, mais fiscalizável. E por fim, eu subiria o quociente eleitoral, que automaticamente diminuiria o número de partidos no plenário.
É simples, não é inventar a roda.

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