quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

QUEM MERECE O QUÊ?

Leandro Karnal
08 Fevereiro 2017 | 04h00
Uma palavra cresceu muito recentemente: meritocracia. Sua raiz está em muitos lugares. Começa com a crítica à sociedade estamental do Antigo Regime. No mundo dos reis absolutos, as pessoas eram definidas pelo nascimento. No século de Luís XIV, por exemplo, a nobreza tinha privilégios de foro jurídico, acesso a cargos, presença na Corte, precedências sociais e, até, o direito de usar certos tecidos e cores (leis suntuárias).
A maioria da população (o povo) viu com desconfiança um mundo definido pela loteria do nascimento e não pela capacidade de alguém. Reivindicou-se a isonomia, ou seja, a igualdade diante da lei. Quem garantiria que era melhor ter como comandante militar um duque ou príncipe de sangue, se um humilde oficial poderia ter mais preparo e melhor estratégia, mesmo que nascido de berço simples? 
Uma das reações ocorreu no novo modelo de exército liderado pelo puritano Oliver Cromwell contra as tropas absolutistas de Carlos I Stuart. O sucesso de um exército disciplinado com oficiais promovidos por mérito foi evidente: o rei foi decapitado e os ingleses conheceram uma inédita República. A meritocracia era eficaz.
Ao final do Antigo Regime, a ascensão de Napoleão Bonaparte foi a consagração da capacidade sobre a origem. O corso venceu vários imperadores. Claro que tudo tem seu custo e, mesmo Napoleão, tão prático, fez uma concessão simbólica ao se coroar. 
O conceito de meritocracia aumentou em importância com a ascensão do capitalismo liberal, especialmente no século 19. De Adam Smith a Stuart Mill, domina a ideia de que o esforço pessoal seja o distintivo de cada ser. Riqueza e pobreza eram fruto de uma correlação entre capacidade e trabalho. 
Nos Estados Unidos, o empreendedor bem-sucedido transformou-se na encarnação do Liberalismo. A meritocracia seria similar à evolução das espécies: em um mesmo ambiente, apenas as mais adaptadas e hábeis sobrevivem. 
Quase ao mesmo tempo, ideias socialistas deram explicação contrária. A sociedade capitalista era concentradora de renda e impedia a ascensão de forma igualitária. Para liberais clássicos, a desigualdade era uma decorrência natural dos diferentes talentos e esforços. Para os socialistas, era uma situação artificial criada para garantir o domínio de uma pequena elite. A meritocracia era uma construção ideológica para parte da esquerda e era uma verdade pétrea para uma parte dos conservadores. Parte dessa crítica está na obra de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.
Liberais gostam de citar, no Brasil, Machado de Assis. Nascido em condição social humilde, mulato, educou-se e galgou postos profissionais por exclusivo esforço pessoal. O fundador da Academia Brasileira de Letras seria o exemplo de que todos têm oportunidades, basta empenho. 
Os inimigos da ideia do esforço como motor maior pensam em Machado como exceção. Usá-lo seria como dizer a todo atleta de várzea: jogue bastante bola porque Neymar ficou milionário assim. Para críticos da meritocracia, os exemplos excepcionais de um Machado só servem para reforçar a ideia de que, para a maioria, os caminhos estariam fechados. 
O tema é complexo e não tem apenas dois polos: é preciso lembrar que o pensamento aristocrático continuou a encontrar eco em boa parte do século 20, negando a ideia de mérito e as críticas socialistas. Sándor Márai capta essa terceira via no romance As Brasas, ao narrar o quase monólogo do general Henrik acusando seu amigo de infância, Konrad, de invejar seu berço aristocrático e sua vida abastada na corte de Francisco José. Konrad era mais inteligente e esforçado, tinha mais mérito em tudo. Vinha de origem mais humilde. Mas jamais seria como Konrad por uma questão de nascimento. Isso tudo em 1941! Arno J. Mayer analisa a persistência da nobreza como referência até 1914 no clássico A Força da Tradição. 
No plano individual, um aluno que se esforce mais tem mais chances de sucesso. Não seria justo que todos colhessem o mesmo com sementes e esforços de plantio bem distintos. No plano mais amplo, uma formação ruim e até uma ingestão insatisfatória de alimentos em alguns momentos pode representar danos muito difíceis de serem superados. Em processo de ensino, nem todo degrau pode ser recuperado. A pergunta incômoda é se todos possuem condições de esforço. Em outras palavras: querer é poder, mas... será que todos podem querer? Eu não tenho resposta clara. Sempre achei que somos mais livres do que deterministas de toda espécie imaginam, mas menos autônomos na vontade do que liberais idealizam.
Óbvio concluir que dar boas condições a alguns também não garante o êxito. O esforço é necessário independentemente da origem do esforçado. Seria ele suficiente? Responder a esta questão complexa sobre meritocracia está na base de políticas como Bolsa Família e cotas em processos seletivos. Na verdade, toda política pública dessa natureza nasce da ideia de que as condições não são iguais para todos e que seriam necessárias medidas para garantir, de fato, meritocracia.

As perguntas básicas são: A) há condições de crescimento para todos mediante esforço? B) a meritocracia ainda é o critério básico para distinguir sucesso e fracasso? Talvez o questionamento derradeiro seja: quem merece o quê? 

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