sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Jesus e a revolução judaico-cristã

1. As sabedorias filosóficas antigas, orientais e da Grécia, elaboraram "espiritualidades"
em ordem a uma vida boa, sem passar nem por Deus nem pela fé. Foi frente a essas
sabedorias que o cristianismo, a partir da sua herança judaica, ergueu uma orientação
nova, religiosa, de salvação, enraizada na fé num Deus pessoal, transcendente e criador.
Essa nova representação foi "tão atraente e prometedora" que triunfou durante séculos
sobretudo na Europa. Esta é a tese desenvolvida pelo filósofo não crente Luc Ferry,
antigo ministro da Educação em França. O que é facto é que, "entre o século V e o
século XVII, o Ocidente foi essencialmente cristão, cultural e filosoficamente cristão,
de tal modo que a filosofia moderna, a partir do século XVII, mesmo quando foi crítica
em relação às religiões, até resolutamente ateia, não deixou de ser marcada de modo
decisivo por esta herança religiosa". O fundo de cultura judeo-cristã é omnipresente e
por isso "é indispensável" que mesmo os não crentes se interessem e captem os traços
fundamentais dessa cultura, para "se compreenderem a si mesmos e compreenderem o
mundo dentro do qual vivemos", escreve Luc Ferry. A pergunta é: "Que havia de tão
profundo, de tão sedutor, atraente e fascinante na mensagem de Jesus (e concretamente
no que se refere à morte que injecta sempre a angústia no coração dos homens), para
ter-se arrogado com tanta força o monopólio da definição legítima da salvação e da
vida boa, em detrimento das espiritualidades filosóficas que formavam o essencial das
sabedorias antigas?"
2 "O primeiro e mais importante ponto de ruptura" com as grandes cosmologias e
sabedorias antigas "situa-se na personificação do divino". O cosmos, o Logos eram
divinos, o divino era o cosmos, o Logos. Ora, logo no início do Evangelho segundo
São João, lemos que "no princípio era o Logos, e o Logos fez-se carne". O Logos é
uma pessoa. Deus encarnou em Jesus Cristo. O divino já não se confunde com o
cosmos, o Universo anónimo, mas é uma pessoa. Já não estamos dentro de uma
ordem impessoal e anónima, e isso "implica uma mudança radical na relação com
Deus". Aliás, foi com o cristianismo que se deu a descoberta da pessoa e a afirmação
de que todos os seres humanos são pessoas, o que não acontecia nem na Grécia nem
em Roma.
Por outro lado, a nova atitude do homem perante o Deus pessoal só pode ser a da
confiança, da fé (fides, donde vem fé e confiança). A entrega confiada a Cristo e a
Deus é que é decisiva. Daqui provém uma nova relação entre fé e razão: crer para
compreender, compreender para crer.
3 O nascimento da moral cristã constituiu uma ruptura radical com as éticas
aristocráticas gregas. "Primeiro passo para a democracia moderna, para os direitos
do homem e para a ideia de igualdade, a moral cristã faz literalmente voar em estilhaços
os princípios fundamentais das grandes éticas aristocráticas gregas. Estamos perante
uma revolução de uma amplidão abissal, verdadeiramente a única revolução moral
realmente importante desde há dois mil anos: crentes ou não, vivemos ainda assentes
em valores elaborados pelo cristianismo". Aliás, "não é por acaso que a democracia
moderna foi instaurada num mundo culturalmente cristão e em mais lado nenhum".
Isto vê-se bem na parábola dos talentos. O terceiro servo, com um talento apenas, teve
medo e enterrou-o. Ora, "o medo é o contrário da confiança, da fé" e, por isso, o senhor
insulta-o. Contra a visão moral aristocrática, "a dignidade de um ser não depende dos
talentos recebidos à nascença, mas do que se faz deles, não da natureza e dos dons
naturais, mas da liberdade e da vontade, sejam quais forem os dons à partida". Há
desigualdade por natureza, mas "é o trabalho que valoriza o homem, não a natureza".
Isto é uma revolução, pois "introduz a ideia moderna de igualdade entendida no
sentido da igual dignidade dos seres, independentemente dos talentos naturais".
Como teorizará Kant, não é a força, a inteligência, a beleza, etc. que são fonte de
moralidade, pois pode-se usar esses dons na direcção do bem ou do mal; por isso,
é a liberdade, a vontade boa, que constitui a moralidade; a virtude depende do
dever-ser e não das disposições naturais.
4 Jesus revela Deus como amor incondicional, que, portanto, não abandona os seus
nem sequer na morte. Deus é um Deus de vivos e não de mortos. Contra a eternidade
impessoal proposta pelas filosofias do cosmos, o cristianismo promete que "nunca
morreremos verdadeiramente, que nunca estaremos sós, que seremos sempre amados,
e que reencontraremos após a morte os seres que nos são queridos". Sem Deus pessoal
e salvador, na morte só resta a dissolução no Todo impessoal e anónimo. "Na medida
em que se acredita, a promessa de Jesus é incomparável, infinitamente mais exaltante
e mais sedutora do que a de ser um grão de pó cósmico, cego e anónimo, para a
eternidade." É cada um que é pessoalmente convocado e que pessoalmente tem de
decidir. "O que confere à promessa de imortalidade uma aura propriamente inigualável"
é que está em conexão com "uma filosofia do amor de uma rara profundidade. É pelo
amor que somos salvos da morte". Deus é amor e o amor é mais forte do que a morte.
5 Em A Gaia Ciência, Nietzsche pôs um louco a proclamar a morte de Deus: "Para
onde foi Deus? Matámo-lo. Nós somos os seus assassinos." E este foi o maior feito
da humanidade. Mas agora é o niilismo. E "que significa o niilismo?", pergunta
Nietzsche, para responder: "Que os valores mais altos perdem o seu valor." Por isso,
continua o louco: "Para onde nos leva a nossa corrida? Há ainda um em cima e
um em baixo? Não andamos à deriva através de um nada infinito? Deus morreu.
Como nos consolaremos?"
É preciso ser consequente: se tudo caminha para o nada e se afunda no nada, já tudo
é nada. E o que é que verdadeiramente vale?

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