quarta-feira, 16 de novembro de 2016

"A violência está sempre ligada à visão monoteísta de mundo", diz poeta Adonis em entrevista

A guerra na Síria é o pano de fundo, presente mas indizível, assunto delicado, complicado. E não, não se fala aqui do Nobel que todos os anos traz o nome do poeta Adonis às listas de candidatos. É um tema que ele detesta.
Veio do frio de Paris para o outono ameno de Cascais e está a aproveitar a tarde clara na esplanada do hotel, virado para a pequena praia entre as rochas, com o rumor constante das pequenas ondas a acompanhar a conversa. Falará disso mesmo, da musicalidade da natureza e do corpo humano. Falará de poesia. E será de um ponto de vista poético que vai abordar a política e a religião, da violência em que ambas se baseiam e se contaminam, fugindo a um ponto de vista mais pessoal, mais íntimo na sua ligação à terra onde nasceu. No fim aparece Paulo Branco, que o convidara para o LEFFEST, e Adonis oferece-lhe uma aguarela que pintou. O que lhe dá esperança? A poesia e o amor. E a mulher.
Nasceu na Síria e o país está parcialmente destruído pela guerra. Voltou lá recentemente?
Desde início dos acontecimentos, não voltei à Síria, in felizmente. Fui a Beirute mas não voltei à Síria.
Como era o ambiente em Beirute, a sua segunda cidade?
Atualmente ou antigamente?
Atualmente.
Damasco e Beirute são duas irmãs, historicamente e mesmo no plano humano, sobretudo no plano humano. Há uma influência recíproca entre as duas cidades. Mas é muito delicado, muito pessoal, para mim. Porque amo as duas cidades como duas irmãs. É nesse sentido que é complicado.
E Alepo?
É a mesma coisa. É a terceira irmã.
Há uma quarta irmã que é Paris, onde vive desde há muito tempo.
Isso é um outro mundo. É uma amizade, uma amizade entre Beirute e Paris.
Paris sofreu atentados recentemente.
O mundo inteiro sofreu, não foi apenas Paris. Paris sofreu diretamente, claro, mas é completamente diferente do que conheceu o Iraque por exemplo, ou do que se passa em Alepo e em todo o norte sírio, sobretudo contra os sírios cristãos e os yazidi. Na Síria é quase uma exterminação. Em França, foram ataques terroristas. É diferente.
Estou a falar da violência no Islão, título do seu livro, um tema que o tem preocupado, que o tem feito refletir.
Perturba-me há muito tempo mas, para melhor compreender a violência no Islão, é preciso compreender a violência nos outros dois monoteísmos - o judaísmo e o cristianismo. A prática da violência é conhecida antes do Islão, há muito tempo, e também no seio do Islão. Ainda hoje falamos da Inquisição e coisas no género. A violência está estreitamente ligada à visão monoteísta do mundo e do ser humano. Porque o monoteísmo é uma negação do outro.
Uma negação da diferença?
Exatamente. O Islão é uma variação desta visão monoteísta e neste momento ele é o mais eficaz. Mas tem por trás causas históricas e o ocidente não está longe dessas causas. Para compreender melhor a violência no Islão, é preciso compreender também a política americana e europeia. E colocar a questão que muita gente evita: saber porque é que a política americana, a política ocidental, apoia sempre aqueles que sustentam a violência.
Não se trata de um problema que surja com a eleição de Donald Trump, já está em marcha há muito tempo?
Não estamos a falar disso e é preciso falar. Não se pode compreender a violência atual nos países árabes sem colocar essa questão. Repito. Porque é que a política americana ou europeia continua a sustentar os regimes que apoiam e que financiam a violência?
Mesmo que se digam democráticos ou de esquerda?
A democracia tornou-se vaga, já não existe no sentido profundo da palavra. Entre nós, não existe, nunca existiu, mas mesmo na Europa é preciso repensar esse conceito.
Pensa que há um regresso ao passado, no que se vive no Médio Oriente, na Europa, nos Estados Unidos? Que está a acontecer um retrocesso?
Está a perguntar se existem raízes na origem disto?
Exatamente.
Sim, creio que há. Há uma memória histórica, uma memória que remonta às próprias cruzadas, mesmo na Andaluzia. Essa memória foi recalcada durante algum tempo mas atualmente está a despertar. Não podemos evitar falar disso, devemos falar dessa memória. Há razões para isso. Dir-se-ia que há uma determinada política americana e europeia fundada numa certa vingança daquilo a que chamamos o Islão. Mas infelizmente a maioria do povo não tem nada a ver com isso.
Está a falar do povo americano e europeu ou do Médio Oriente?
Em todos esses lugares. É preciso repensar esta política. Este não é um problema nosso, este é o vosso problema, vosso, dos ocidentais, dos intelectuais. Estão calados, infelizmente. Os intelectuais ocidentais neste momento estão sobretudo do lado do regime, tornaram-se quase funcionários dessa política. Portanto, é um problema vosso.
Um dos seus temas é a separação do estado e da religião. Esse caminho também está a voltar para trás? Há uma contaminação?
Concordo. Mas para evitar essa amálgama não se pode fazer uma guerra contra uma religião. Não se pode estar contra uma religião. É preciso estabelecer que a religião é um direito dos seres humanos. O homem tem o direito de procurar qualquer coisa que possa resolver os seus problemas com o desconhecido, com o além, com a morte. Ele tem esse direito e é preciso defender esse direito. Dito isto, ninguém tem o direito de institucionalizar a sua religião e impô-la a toda uma sociedade. Tal como temos o direito de acreditar, temos o direito de não acreditar. E nessa perspetiva é preciso separar o Estado, que é comum a todos, da religião, que é pessoal, um assunto tão pessoal como o amor, e que não compromete se não a própria pessoa. Insisto nisto porque dizem que eu sou contra a religião. Não se pode ser contra a religião, muito menos eu, porque defendo os direitos do ser humano. Não se pode ser contra um direito do ser humano. Mas sou contra a agressão. Se tem o direito de acreditar e não me dá o direito de não acreditar, torna-se agressivo contra mim. Sou contra a agressividade, pela liberdade e os direitos humanos para todos.
Historicamente, essa contaminação Estado/religião correu mal sempre.
Aí está. É preciso evitar essa amálgama.
E como se faz isso?
Isso é muito claro, é uma questão política. Ao utilizar a religião como instrumento de influência, como fez por exemplo Trump na sua campanha - ele não o fez diretamente, mas indiretamente - dá-se esse mesmo direito à igreja, à mesquita, à instituição religiosa. E isso não é bom, isso desarruma tudo.
Como concilia a preocupação política constante com o distanciamento que a poesia pressupõe?
Isso depende das pessoas. Uma pessoa que tem essencialmente a inquietação política é um caso, tal como há quem tenha essencialmente a inquietação da poesia e não ligue à política. Eu estou entre aqueles que tem a poesia como essencial enquanto vida, inquietação, espírito. Vejo a política de um ponto de vista poético, e não o contrário. Depende das pessoas, das sociedades, embora hoje infelizmente seja a política que toma conta de tudo. Comigo não é assim. Critico sempre a política de um ponto de vista poético e não como um político, mas antes como um platónico que ama fundar a sociedade com um ponto de vista humano, sobre os direitos e também sobre os deveres.
Acredita no homem?
Continuo acreditar no homem.
E isso é o essencial?
As religiões, num sentido lato, inventaram um outro mundo e afastaram o mundo onde nós realmente vivemos. Fizeram dele um símbolo do mal, do pecado. Mas para mim o mundo mais belo que alguma vez existiu é a Terra. É isto, isto aqui. Veja como é belo. Nunca farei parte dos que dizem que tudo isto é falso e inventam um outro mundo. Não posso aceitar isso. Mas não sou contra uma pessoa que acredita nisso. Não estou contra ela por acreditar nisso, é livre de fazê-lo, mas sou contra quando tenta impor-me aquilo em que acredita.
O que procura para pacificar a sua alma? Chamo-lhe alma como poderia chamar ser.
Este é um momento extraordinário. Escute as ondas: é poesia. O mar tenta abraçar a areia, as poeiras, tudo. É um ser aberto. Não há diferença entre a água e aquele pássaro, olhe para ele. E as rochas e as árvores que conseguem brotar das rochas. Esta unidade quase mística dentro da natureza é simbólica. É preciso que o homem veja e compreenda isso. Na vida política é o oposto: o homem é o lobo do homem, sempre. Porque é mobilizado pelo poder, pelo dinheiro. E as instituições da sociedade, em vez de desencorajá-los, encoraja-os a isso. A vida é uma floresta, a vida quotidiana nas sociedades. Todos estão contra todos.
Estamos aqui a ver o mar, a praia, a natureza, tudo isso é belo, mas temos ali uma casa e por trás está uma cidade. Como se sente numa cidade? Há construções humanas que lhe dão prazer?
Isso depende de muitas coisas. A cidade como conceção é uma grande invenção, é a modernidade e é o velho. Um café, um restaurante, um hotel são símbolos da modernidade. Teoricamente é muito belo. Mas com o tempo, o dinheiro, o uso, a política, tornaram-se lugares para violar os direitos do homem. Isso depende das civilizações, das mentalidades, dos países. Lisboa, Paris, Londres, Nova Iorque não são a mesma coisa. A construção de cada cidade é diferente. E as cidades orientais, por exemplo, Beirute, Damasco, Alepo, são um outro mundo. É preciso vê-las de perto, viver lá para ver as diferenças. Em princípio, a cidade é um lar mas esse lar tem de ter relações humanas ao nível dessa ideia extraordinária. Infelizmente não conseguimos fazer da cidade uma casa, um lar.
Foi sempre uma utopia?
Nem mais. Há um lado na ciência que também é contra o homem. Há sempre dois aspetos, em todas as criações humanas. Um lado humano e um lado bárbaro, selvagem. Porquê não sei , é preciso analisar, recorrer aos sociólogos, aos antropólogos, para perceber por que é que o lado bárbaro, o lado selvagem, toma conta de tudo.
A sua arte é a poesia, mas há outras artes que o tocam?
Esse lado bárbaro também tentou fazer da arte um ato bárbaro, chegou mesmo a deformar a arte.
E a destruí-la.
Sim, destruí-la. É uma doença da modernidade. Se comparar uma casa da época romana ou da Idade Média com um edifício moderno, há uma grande diferença. Sinto ali que falta alguma coisa. Nos edifícios antigos sente na pedra o homem, o cansaço, os sonhos, a sua humanidade, nos novos talvez a inteligência, as máquinas. O dinheiro deforma a arte em geral. Um quadro tornou-se uma mercadoria. Não consigo entender como é que um quadro pode valer 40 ou 100 milhões de dólares. Deixa de ser arte, como se detestassem a arte, ou melhor, como se desprezassem a arte. Esse preço é um sinal do desprezo pela arte.
A poesia não corre esse risco.
Desprezam-nos de outra forma. (Risos)
Costuma ouvir música? De que música gosta?
Como amo o corpo humano, penso que a obra maior do criador, seja ele quem for, não é o espírito mas o corpo. Se existe espírito, ele é o próprio corpo. Portanto, o corpo enquanto musicalidade, ritmo, dança, movimento, é a beleza absoluta. Quando vejo por exemplo Michael Jackson dançar com aquele ritmo, aquele movimento, penso - é um outro Beethoven. Mas quando vemos os que imitam Jackson ou os outros grandes... É como no domínio da arte e da poesia. Há Picasso mas os picassianos...
O que sentiu com a morte de Leonard Cohen?
Era um grande homem, um poeta, um músico, um cantor. A minha tristeza ficou maior.
Na sua tristeza, o que vê de positivo para o presente, para o futuro?
O amor e a poesia. O nosso céu, o nosso oceano, a nossa musicalidade. Escute o ruído das ondas, é música, é poesia.
E as mulheres?
As mulheres são o centro de tudo, porque são o centro do amor.
Perguntei isso por causa do papel da mulher no extremismo muçulmano.
No Islão, a mulher, falando com profundidade, não existe. É um nome, um número, um meio, um utensílio para a vida. E não estou a falar do lado sexual. Mas no judaísmo e no cristianismo também. No Islão não existe praticamente, no judaísmo existe teoricamente. E não existe sequer em deus. Imagine um deus, um criador que criou o homem macho à sua imagem. Não criou o masculino e o feminino. Criou o homem macho, não criou a mulher à sua imagem. É esse o deus do monoteísmo. O problema é com deus, não é com a religião. É preciso recusar esta visão divina. A mulher deve ser criada também à imagem de deus, não pode vir da costela do homem. O que é isso?
Continua a escrever poesia?
Escrevo poesia para compreender melhor aquilo de que temos estado a falar, para me compreender melhor a mim mesmo, para compreender melhor a minha relação com o outro, para compreender melhor o outro. Para compreender melhor o mundo. É por isso que escrevo poesia. E se numa cultura inteira, a filosofia, a história, a antropologia, a sociologia, a ciência não têm nada mais a dizer sobre o homem, sobre a natureza, sobre o universo, resta em teoria a arte que tem sempre algo a dizer. E na prática o amor, que também tem sempre algo a dizer.

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